terça-feira, 31 de março de 2020

HIGH FI✌E: março

Cinco produções que merecem destaque no mês de março: 

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PL►Y: A Arte da Autodefesa

Jesse: faixa amarela no Clube do Dojo. 

A Arte da Autodefesa é um daqueles filmes que você assiste sem entender muito bem o que está acontecendo, estranha as ironias do roteiro, a ordem dos fatos, algumas situações inusitadas até perceber que tudo está ali para compor uma piada obscura. Ajuda muito a acompanhar esta esquisitice a atuação de Jesse Eisenberg, que depois de se repetir à exaustão parece cada vez mais ter criado um tipo para si: o sujeito estranho. Embora ainda seja franzino e tenha aquele jeito de adolescente, Jesse já tem 36 anos e está cada vez mais com cara de adulto. Embora seu trabalho mais famoso seja por sua indicação ao Oscar por A Rede Social (2010) ele tem vários personagens filmes marcantes na carreira (seja em Mais Forte que Bombas/2015, O Duplo/2013, A Lula e a Baleia/2005, Lex Luthor...) e este  aqui deve ter lá o seu fã-clube, já que recebeu boas críticas e algumas indicações a prêmios do cinema independente. A história começa quando o introvertido Casey (Eisenberg) sai de casa à noite para comprar ração para o cachorro e acaba perseguido por uma gangue de motoqueiros. Casey é apanha um bocado e se torna mais recluso e retraído, causando preocupação nos familiares e amigos. As coisas mudam quando ele se inscreve numa escola de caratê do bairro. Ali, ele retoma sua autoestima e deixa que aquelas aulas influenciem diretamente sua personalidade que muda bastante... mais confiante e animado ao receber a "faixa amarela", Casey nem percebe as coisas estranhas que existem por ali, especialmente pela liderança soturna do seu carismático professor (mais um bom trabalho do sempre subestimado Alessandro Nivola). Parte da graça do filme é criar uma atmosfera quase surreal em torno dos personagens que frequentam aquela escola de artes marciais. Existem alguns momentos bem absurdos que tendem a enriquecer ainda mais aquelas relações (mesmo que por um caminho inusitado) até que um tom meio Clube da Luta começa a pairar no ar. Embora  filme não tenha a magnitude da obra de David Fincher, tem algumas semelhanças que podem incomodar algumas pessoas, já que o espectador mais esperto aos poucos já vai captando o que está por vir. No entanto, não estragou minha surpresa de ver a transição do protagonista perante seus medos e seu mestre. A Arte da Autodefesa tem momentos dramáticos, engraçados, tensos, revoltantes e até absurdos, mas funciona justamente por ser um filme imprevisível. Este é o segundo filme do diretor Riley Sterns, que antes dirigiu (o inédito por aqui) Faults (2014) que parece seguir pelo mesmo caminho. Se não chega a ser uma obra brilhante, A Arte da Autodefesa ao menos desperta a curiosidade pelas obras de seu diretor e roteirista que gosta de olhar fora da caixinha. 

A Arte da Autodefesa (The Art of Self Defense / EUA - 2019) de Riley Sterns com Jesse Eisenberg, Alessandro Nivola, Imogin Poots, Steve Terada, David Zellner e Jason Burkey. ☻☻☻ 

PL►Y: Bacurau

Sonia (ao centro): faroeste no sertão. 

Antes de escrever qualquer outra coisa, acho importante ressaltar que gosto muito de O Som ao Redor (2013) e Aquarius (2016), acho os dois bastante evocativos sobre a realidade que conhecemos tão bem em nosso país. No primeiro sobre a sensação de insegurança e o segundo sobre a desvalorização da história/memória através da trama centrada em uma personagem forte (defendida com força impressionante por Sonia Braga). Dito isso, vamos ao novo filme de Kleber Mendonça Filho, Bacurau que foi exibido e premiado (Grande Prêmio do Júri, espécie de segundo lugar) no Festival de Cannes. Vale dizer que o filme se tornou um sucesso nos cinemas brasileiros, uma espécie de unanimidade entre a crítica... o tipo de produção que tenho até medo de assistir pela expectativa gerada e, especialmente, por qualquer coisa que eu venha escrever aqui no blog. Talvez seja bom eu adiantar que não acho Bacurau um filme ruim, apenas acho que merecia ser mais lapidado. A história não se pode contar demais para não estragar as surpresas que reserva, já que retrata a história de uma cidade que da noite para o dia se dá conta que não está mais no mapa. Começa a ser rodeada por situações estranhas (um casal de motoqueiros que aparece não se sabe de onde, um disco voador que aparece voando por aí... é verdade, um disco voador e se você considera isso estranho aguarde até a carnificina começar). Este deve ser o roteiro mais carregado de Kleber Mendonça Filho (assinado com o co-diretor Juliano Dornelles), existem tantas simbologias na trama que seria complicado tentar abordar todas elas aqui, mas assim como nos filmes citados anteriormente, elas estão no compasso do que muitos brasileiros observam e temem em nossa realidade, por isso mesmo, a identificação com a história é imediata por aqui. No entanto, em nome de tantos elementos a serem trabalhados, Kleber  e Juliano abrem mão de aprofundar vários temas que tentam abordar, deixando que estes apenas se misturem. No entanto, o que mais me incomoda é a ausência de desenvolvimento dos personagens, a única que recebe mais contornos é Domingas (Sonia Braga), um personagem pequeno, mas importante. Eu não sei se o fato dos diretores gostarem de trabalhar com atores amadores cria essa sensação de quem ninguém está exatamente atuando além de Sonia, mas a ideia de um realismo improvisado fica bastante evidente e por vezes incomoda. Em contraponto temos aqui outro rosto conhecido, o alemão Udo Kier, que simboliza aqui tudo o que há de mal no mundo. Em sua primeira parte Bacurau se arrasta apresentando a cidade seus moradores com cenas um tanto soltas até chegar à uma verdadeira guerra pela sobrevivência. Parece um faroeste no sertão, só que ao invés dos caucasianos exterminarem índios, eles exterminam a população local que precisa utilizar a violência para não perecer. É evidente como nesta parte o filme ganha ritmo e tensão, mas os personagens já estão pelo meio do caminho faz tempo. Bacurau em seu desfecho com conchavos desmascarados e a história colocada à mostra enquanto conta seus mortos é um filme sobre o horror do extermínio de pessoas invisíveis no mapa. Não sei até que ponto a direção dividida com Juliano Dornelles (diretor de O Ateliê da Rua Brum/2016) influenciou este resultado final, que é bem menos sutil do que as outras obras de Kleber. Em Bacurau tudo é exposto, tudo está à mostra sem a habitual elegância do aclamado diretor de Aquarius

Bacurau (Brasil/2019) de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com Sonia Braga, Udo Kier, Karine Teles, Bárbara Colen, Silvero Pereira, Antonio Saboia e Danny Barbosa. ☻☻☻

segunda-feira, 30 de março de 2020

Ciclo Ghibli: Meu Amigo Totoro / O Serviço de Entregas da Kiki / O Reino dos Gatos

Totoro: amizade mais que especial. 

Ótima pedida para este período de confinamento é assistir aos filmes do Estúdio Ghibli que estão disponíveis na Netflix! São mais de uma dezena de filmes do consagrado Estúdio japonês de Hayao Miyazaki (e com previsão de outros aparecerem em breve). Eu estou assistindo e para não me estender muito irei comentar três por vez. Vou escrever sobre os três primeiros que assisti (sim, já tem outros prestes a serem comentados), o primeiro é o classicão Meu Amigo Totoro (que eu pronunciei a vida inteira como sendo Totoró...) lançado em 1988 (e lançado por aqui somente em 1995!!!), o longa foi um verdadeiro marco para o estúdio. O filme conta a história de duas meninas que sofrem muito com a ausência da mãe e, ao se mudarem, descobrem que moram perto de uma floresta mágica, cheia de criaturas peculiares. A mais impressionante delas é Totoro, que parece um enorme coelho de pelúcia e que tem a bondade proporcional à sua altura. A serenidade do personagem faz com que as meninas atravessem a fase difícil com mais leveza e torna o filme um programa delicioso para todas as idades! O filme é um belo exemplo do estilo Ghibli, o traço é fofo, os desenhos cheios de detalhes e somado às cores, existe a composição de um verdadeiro espetáculo visual. Existe uma nitidez impressionante em cada quadro e uma verdadeira perfeição em juntar o ambiente rural em que as meninas vivem com o toque de fantasia que as criaturas trazem para narrativa. O filme fez tanto sucesso que até hoje os brinquedos inspirados nos personagens são vendidos no Japão. Belo e sensível, Totoro é uma influência para o cinema até hoje, basta ver Okja (2017) de Bong Joon-ho que você irá perceber algumas referências. Hayao Miyazaki arrasa! No ano seguinte, o diretor lançou O Serviço de Entregas de Kiki (1989) outro filme saboroso de assistir! Desta vez saem as criaturas fofas e entra em cena uma bruxinha adolescente que precisa escolher uma cidade para viver. Kiki tem apenas 13 anos e conforme manda a tradição bruxa, ela precisa encontrar um lugar para viver longe da família. Assim, ela parte com uma vassoura e seu fiel gato preto falante, Jiji, para uma cidade no litoral. No início a situação é meio difícil por ela perceber que a cidade não simpatiza muito com bruxas, mas após ela criar um eficiente serviço de entregas ela começa a conquistar seu espaço. Miyazaki acrescenta à esta história sentimentos típicos da adolescência: a busca pela identidade, as inseguranças, o primeiro amor, a sensação de perda... vários outros elementos estão presentes e abordados com muito humor.

Kiki e Jiji: a bruxice como heroísmo. 

 A protagonista é uma graça em suas virtudes e defeitos, além de ser rodeada por coadjuvantes muito carismáticos, seja o casal dono da padaria, uma amiga pintora ou o pequeno inventor chamado Tombo  (de visual que parece inspirado nos quadrinhos de Onde Está Wally?). Tombo revela outro aspecto interessante do filme, se Kiki tem lá os seus feitiços (os quais ainda precisa aprender a lidar) ela está rodeada de pessoas que também tem lá suas formas de fazerem mágica no dia a dia, seja o padeiro com as massas, a mãe de Kiki com experiências químicas ou as invenções do amigo um tanto desastrado. Miyazaki conta esta história com cores serenas e alguns momentos de aventura que funcionam muito bem. Particularmente gosto muito das cenas em que a menina ainda está aprendendo a dominar a vassoura em seus voos, tenho a impressão que aprender a voar em uma vassoura é exatamente daquele jeito. Para terminar esta modesta resenha, Reino dos Gatos é um filme irresistível para quem curte felinos. A história gira em torno de uma menina que não consegue se encaixar bem na escola, mas tem bom coração suficiente para ajudar os gatinhos que cruzam seu caminho. Ela não faz ideia que a gratidão dos bichanos irá coloca-la em maus lençóis, a começar pelos presentes indesejados que todo dono de gato conhecem bem (como um bando de camundongos mortos, por exemplo...). Tanta devoção à menina irá leva-la para um mundo diferente, onde os gatos são os únicos habitantes e criam até uma conspiração perante o rei. A trama é bastante viajante e pode causar mais estranhamento do que gargalhadas, mas é uma boa pedida, principalmente pelas surpresas que reserva aos gatos antropomórficos que apresenta. O Reino dos Gatos foi uma produção para a televisão japonesa que chegou aos cinemas em outros lugares do mundo e, talvez por isso, seu traço seja mais simples do que o presente nos filmes cinematográficos do estúdio, mas o uso das cores e a atmosfera de fantasia funcionam muito bem sob a direção de Hiroyuki  Morita, que trabalhou como desenhista em várias animações, entre elas Serviço de Entregas da Kiki e o clássico Akira (1988) de Katsuhiro Otomo. Reino dos Gatos foi seu primeiro e único filme na direção. 

Reino dos Gatos: estranha fábula felina. 

Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro / Japão - 1988) de Hayao Miyazaki com vozes de Hitoshi Tagashi, Noriko Hidaka, Reiko Suzuki e Chika Sakamoto. ☻☻☻☻

O Serviço de Entregas da Kiki ( Majo no takkyûbin / Japão - 1989) de Hayao Miyazaki com vozes de Minami Takayama, Keiko Toda, Rei Sakuma e Kappei Yamagushi. ☻☻☻☻

Reino dos Gatos (Neko no engaeshi / Japão - 2002) de Hiroyuki Morita com vozes de Chizuru Ikewaki, Aki Maeda, Kenta Satoi e Mari Hamada. ☻☻

PL►Y: Dois Papas

Anthony e Jonathan: diferenças em pauta. 

Eu não sou católico, mas acho que qualquer pessoa que respeita religião reconhece que a cena do Papa Francisco concedendo a benção Urbi et Orbi extraordinária diante da basílica de São Pedro, no Vaticano, diante do vazio foi de arrepiar em tempos de Corona Vírus. A imagem é de uma força incrível, emociona, faz chorar e parecia coisa de cinema. Ela até poderia constar no filme Dois Papas do brasileiro Fernando Meirelles caso o filme fosse lançado posteriormente. O longa lançado ao final do ano passado pela Netflix foi lembrado nas indicações a prêmios na temporada de ouro, sobretudo pelo trabalho excepcional de seus protagonistas: Jonathan Pryce e Anthony Hopkins.  O mais legal é que se me perguntassem quem seriam os atores ideais para viverem Francisco e Bento XVI, eu também escolheria os dois atores! A começar pela semelhança física e a segunda por conta do talento inquestionável de ambos (tanto que ambos foram lembrados no Oscar deste ano, respectivamente como melhor ator e ator coadjuvante). Embora seja inspirado em uma história real, fica evidente que o filme criou muito sobre as conversas que existiram entre Bento XVI e Francisco, no filme estas conversas transcendem o catolicismo. Fala-se de fé, de política, de medos, de crescimentos, culpa, extremismos... é um filme que através dos diálogos entre duas personalidades conhecidas aborda questões muito atuais sobre o mundo que vivemos, sem perder de vista os marcos históricos que se relacionam com ambos (e por isso mesmo o roteiro também foi lembrado no Oscar). Se o mundo hoje vive um momento político altamente polarizado, tenso e marcado por discursos radicais, Bento e Francisco são sujeito que sabem exatamente a que ponto isso pode chegar, seja na Europa ou na América Latina. É neste ponto que o filme se enriquece, justamento por lançar uma perspectiva histórica sobre o mundo que temos hoje e os fantasmas que de vez em quando voltam a assombrá-lo. Notável também é o respeito que o texto apresenta em torno dos personagens, algo fundamental para que o filme funcione através de diálogos acerca de visões de mundo tão diferentes (um mais liberal e outro de viés mais conservador).  Mais do que dois papas, o filme apresenta uma espécie de dois lados da mesma moeda, seja da igreja, seja do mundo e os caminhos que seguem por vezes convergindo e por vezes se afastando. O filme é um grande acerto de Fernando Meirelles que andava desanimado depois da fria recepção do seu gélido caleidoscópio 360 (2012) e aquela ideia estranha que foi condensar a excelente série Som e Fúria (2009) em um filme que não foi visto por ninguém. Aqui ele demonstra mais uma vez domínio narrativo e uma preocupação com a estética  num casamento perfeito e, me arrisco a dizer que este é o seu filme mais maduro até agora - sem falar que aquela deliciosa cena durante os créditos finais é um verdadeiro achado! Sensacional! Mais um filme que em 2019 soube retratar a realidade em que vivemos (ao lado de Parasita e Coringa). 

Dois Papas (Two Popes / Reino Unido - Itália) de Fernando Meirelles com Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Minujin, Luis Gnecco e Cristina Banegas. ☻☻

domingo, 29 de março de 2020

PL►Y: Jonas

Maritaud: mais um papel complicado no currículo. 

Filmes como Jonas são sempre interessantes por contar uma história dramática como se fosse um drama. Para tanto, o diretor Christophe Charrier precisa guardar o segredo de seu protagonista até o fim sem deixar o espectador entediado. Ele consegue, mas para isso começa o filme pelo meio do caminho e, segue indo e vindo entre dois tempos distintos até chegar no desfecho. Até lá estaremos curiosos para saber o que aconteceu para que a vida de um tímido adolescente saia dos eixos. Quando conhecemos Jonas ele tem quinze anos (Nicolas Bauwens) e está visivelmente assustado, não vai demorar muito para que o vejamos dezoito anos mais velho (agora vivido por Félix Maritaud) com ar visivelmente perdido. Homossexual assumido, Jonas se mete em confusões em uma boate gay, briga com o namorado e até o trabalho em um hospital revela mais sobre ele do que você imagina (e nem vou contar para não estragar). Boa parte da história se passa nas entrelinhas, seja quando Jonas é jovem e se aproxima cada vez mais de um novo colega da escola (Tommy-Lee Baïk) ou quando na fase adulta persegue o paradeiro de um rapaz que não sabemos ao certo quem é. O trabalho de direção e montagem tem como maior desafio costurar estes dois tempos de forma envolvente para manter nosso interesse na narrativa que é lenta, mas que se desenvolve numa envolvente espiral de acontecimentos. Se por um lado vemos o despertar da sexualidade do jovem personagem, aos poucos imaginamos que houve algo de traumático naquele relacionamento, ao mesmo tempo temos receio de quais são as intenções do personagem adulto em sua instabilidade emocional. O estreante Chritophe Charrier faz um belo filme e fica difícil acreditar que foi concebido para a televisão francesa. Exibido por aqui na Netflix, Jonas é um exercício narrativo bastante interessante e ao revelar seu segredo o resultado se torna angustiante. É preciso destacar o trabalho de Félix Maritaud, que repleto de ambiguidades faz com que o espectador projete nele uma gama de suspeitas que só enriquece o filme. Curiosamente, Maritaud é quase um novato no cinema. Ele fez uma pequena participação em 120 Batimentos por Minuto (2017), depois estrelou o pesadão Selvagem (que lhe rendeu o prêmio de ator revelação em Cannes em 2018), atuou em Faca no Coração (2018) com Vanessa Paradis, além de estar no novo filme do controverso Gaspar Noé: Luz Eterna/2019. Sabendo equilibrar despudor e melancolia em papeis complicados, o rapaz merece atenção. 

Jonas (Jonas / França - 2018) de Christophe Charrier com Felix Maritaud, Nicolas Bauwens, Tommy Lee-Baïk, Aure Atika, Marie Denarnaud e Ilian Bergala. ☻☻

PL►Y: A Casa

Javier e Mario: sociopata em busca de status. 

Projetado a hit da Netflix durante este período de reclusão, o suspense espanhol A Casa é um filme bastante eficiente quando precisa criar tensão. A produção também consegue a proeza de ser baseada no ponto de vista de um sujeito asqueroso e não cair na ideia de transforma-lo em vítima das circunstâncias. Javier (Javier Gutiérrez) não vale nada e pronto. No início ele até finge bem, quando procura por emprego e percebe que manter seu padrão de vida será bem difícil no competitivo mundo da propaganda. Veterano no mercado e criador de campanhas conhecidas, ele agora corre  o risco de ser considerado previsível e até obsoleto. Os problemas financeiros acabam fazendo com que saia de seu apartamento de luxo e se mude para um bem menor com a esposa e o filho. O relacionamento com a família também não está muito bom e a tendência é piorar cada vez mais. Neste aspecto é interessante como o filme começa com aquela tradicional cena de família de comercial de margarina, belos, sorridentes, sem problemas como só no mundo ideal existe para, ironicamente, fazer com que Javier passasse a perseguir esta ideia pelo pior caminho. É neste ponto que ele começa a se aproximar de Tomás (Mario Casas). Tomás e sua família moram na aconchegante ex-moradia de Javier e quando Javier percebe que o rapaz tem uma bela família, é bonitão e ainda vice-presidente de uma empresa, a mente de Javier começa a tramar situações para tomar aquela vida para si. Basta descobrir as fraquezas do novo "amigo" e as fissuras naquele casamento para que o vilão consiga o que quer. O filme retoma um gênero que andava meio esquecido, o suspense domiciliar, que já rendeu vários sucessos (sobretudo nos anos 1990) como A Mão que Balança o Berço/1992 (que deixou todo mundo com medo de contratar uma babá doida) e Mulher Solteira Procura/1992 (que deixou todo mundo com medo de dividir o apartamento com uma maluca), assim como os filmes citados (verdadeiros clássicos do gênero), A Casa consegue prender a atenção do espectador, mesmo quando abusa da ingenuidade de seus personagens - e neste ponto a Lara (Bruna Cusí) merecia o Oscar, ou melhor, o Goya da ingenuidade plena. Enfim, eu sei que as coisas acontecem assim para que a trama aconteça e se movimente... mas em alguns momentos eu tive que imaginar que a coisa com o maridão já estava de mal a pior faz tempo. Sorte é que os diretores Álex e David Pastor sabem a hora exata de parar, além de confiarem no talento de Javier Gutiérrez para criar mais um personagem cheio de complexidades (assim como ele fez em O Autor/2017 outro filme de sucesso na Netflix). A Casa funciona. 

A Casa (Hogar/Espanha - 2010) de Álex Pastor e David Pastor com Javier Gutiérrez, Mario Casa, Bruna Cusí e Ruth Díaz . ☻☻ 

PL►Y: Midsommar

Florence: visitante em um culto pagão.  

Quando lançou Hereditário (2018) o diretor Ari Aster deu uma entrevista dizendo que tirando a parte de terror, o drama familiar que os personagens viviam renderia um filme de drama como tantos outros. Ele também disse que a história do filme era baseada em fatos autobiográficos. Depois de assistir seu segundo longa-metragem, Midsommar, eu continuo pensando como foi a vida do diretor. Embora sejam esteticamente bastante diferentes, as duas obras tem bastante coisa em comum. A começar pelo seu foco em rituais pagãos e seu lugar no mundo de hoje. Acho que não é por acaso que o filme começa sombrio, com um suicídio e o desespero de sua protagonista Dani (Florence Pugh, ótima como sempre) na cidade grande. Ela também está diante de um relacionamento que sabe estar prestes a terminar. O namorado Christian (Jack Reynor) parece até um cara legal, mas está doido para terminar o namoro. Eis que no meio do caminho os dois são convidados por um simpático amigo (Vilhelm Blomgren) a conhecer uma comunidade religiosa no interior da Suécia. Os dois vão meio desconfiados e chegando lá o que parecia ser um retiro zen se transforma num filme de terror. Uma série de episódios estranhos começam a acontecer - e vistos com a maior naturalidade pela comunidade local - dexiando sempre a sensação de que algo pior está para acontecer. A postura dos anfitriões também não ajuda muito, já que sempre parecem estar escondendo alguma coisa. Arter segue um ritmo lento e mais uma vez deixa as ideias do roteiro fermentar na cabeça do espectador a maior parte do tempo, até que tudo aquilo que o casal temia acontece, mas da pior forma possível. Os momentos finais de Midsommar são de pura angústia e o melhor é como o filme constrói uma plasticidade que vai contra tudo que vimos em filmes do gênero. O colorido das flores, as roupas brancas, a fotografia que abusa dos tons pastéis, a direção de arte do filme vira tudo isso do avesso e as fazem se tornar sinônimo de algo macabro em nosso inconsciente. Mais uma vez, o diretor demonstra ser ótimo no trabalho com o elenco, fazendo com que todos se saiam bem em momentos extremamente complicados, por exemplo, só de acompanhar os altos e baixos das emoções de Dani eu fiquei exausto! Não foi por acaso que muita gente apostava que Florence Pugh seria indicada ao Oscar por seu trabalho aqui (ela acabou sendo indicada como coadjuvante por Adoráveis Mulheres, mas sabemos que vale para os dois filmes, já que o Oscar tem restrições com filmes de terror -  a Toni Collette de Hereditário que o diga - mas).  Sou fã de Florence desde que a vi magnífica em Lady Macbeth (2016) e em breve ela será a irmã de Scarlett Johansson em Viúva Negra, ou seja, você ouvirá falar muito desta inglesa de 24 anos! Ah claro, você ouvirá falar muito de Ari Aster também, que parece disputar com Robert Eggers (A Bruxa/2015 e O Farol/2019 ) o título de mestre do terror do século XXI, resta saber quem irá convencer melhor a impaciência do espectador contemporâneo acostumado a sustos fáceis e explosões de som. 

Midsommar  - O Mal não Espera a Noite (EUA- Suécia / 2019) de Ari Aster com Florence Pugh, Jack Reynor, Will Poulter, Vilhelm Blomgren, Ellora Torchia e Isabelle Grill. ☻☻

sábado, 28 de março de 2020

§8^) Fac Simile: Saoirse Ronan

Saoise Una Ronan
Filha de um ator imigrante irlandês, Saoirse Ronan é dos raros casos de artista que começa faz sucesso quando criança e não  tem problemas para manter a carreira na vida adulta. Neste ano, a jovem atriz conseguiu sua quarta indicação ao Oscar o que a coloca entre os jovens talentos favoritos da Academia. Foi meio que por acaso que nosso repórter imaginário a encontrou num pub em Nova York antes da pandemia de Corona Vírus e realizou esta entrevista que nunca aconteceu: 

§8^) Qual o segredo para ter 17 anos só de carreira e ainda interpretar personagens adolescentes no cinema?

Saoirse Acho que começar a atuar aos oito anos é um bom começo! Fora isso, acho que fatores genéticos também ajudam bastante... mas se bater aquele desespero tem algumas clínicas estéticas que fazem verdadeiros milagres!

§8^) Você conseguiu sua primeira indicação ao Oscar aos treze anos (por Desejo e Reparação/2003) e até agora já foi indicada outras três vezes, percebe que você é a primeira atriz mirim que cresceu e conseguiu este feito?

Saoirse Espero que a Academia não se console com isso e me indique mais algumas vezes, mas eu gostaria mesmo era de já ter ganho alguma vez. É ótimo ser indicada, mas é como a Meryl Streep diz... que ela ganhou três e perdeu todas as outras dezoito vezes. Por enquanto eu perdi as quatro... não que eu perca o sono por isso, mas... queria ter a sensação de voltar com uma estatueta para casa e as pessoas colocarem no cartaz "A ganhadora do Oscar" antes do meu nome. Talvez as pessoas tenham problemas para lembrar o meu nome na hora de votar... é verdade que a maioria das pessoas não sabe pronunciar direito mas... escrito não tem problema. 

§8^) Eu treinei meses para pronunciar o seu nome...

Saoirse Eu percebi! Você pronuncia direitinho. 

§8^) Eu sou muito seu fã e adoro suas parcerias com a Greta Gerwig! Vi Lady Bird (2017) e Adoráveis Mulheres (2019) e percebo que as pessoas fazem a maior torcida para você namorar Thimotée Chalamet...

Saoirse Sério? kkkkkk as pessoas fazem isso? Que estranho... as pessoas poderiam torcer para o Thimotée ficar com sei lá... o Armie Hammer depois de Me Chame Pelo seu Nome (2017)

§8^) Mas o Armie é casado...

Saoirse Ops, desculpe! Eu quis dizer que este negócio de química é tão engraçado e os dois funcionaram tão bem naquele filme que... ah, deixa pra lá. 

§8^) Eu gostei muito de você com Emory Coen em Brooklyn (2015), eu adoro aquele filme! Vi umas cinco vezes!

Saoirse Ah, o Emory é um fofo! Eu também adoro Brooklyn! Se mistura um pouco com a história da minha família que veio da Irlanda, foi muito emocional para mim. E Desejo e Reparação (2007)? O que você acha?

§8^) Eu gosto, mas aquele menininha que você faz é uma praga! Morri de ódio dela...

Saoirse Nem me fale... 

PL►Y: Adoráveis Mulheres

Emma, Florence, Saoirse e Elisa: as novas irmãs March. 

Esta é a quinta versão do clássico livro de Louisa May Alcott, mas admito que só assisti aquela versão de 1994 que rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz para Winona Ryder (e eu torcia por ela). Aquela versão era dirigida pela australiana Gillian Armstrong (sempre esquecida) com a competência habitual e merece ser revisto. Agora foi a vez da americana Greta Gerwig aproveitar sua ótima fase e se aventurar por mais uma adaptação desta cultuada obra. Desta vez a tarefa de viver a protagonista Jo March ficou por conta de Saoirse Ronan (que foi indicada pela quarta vez ao Oscar). A atriz está tão confortável no papel quanto as suas irmãs Emma Watson (Meg), Elisa Scanlen (Beth) e  Florence Pugh (Amy). O papel da matriarca responsável por cuidar de tudo enquanto o marido está na guerra ficou à cargo de Laura Dern e seu carisma habitual e coube a Meryl Streep fazer o papel da tia endinheirada que nesta versão está menos rabugenta e mais divertida com seu (mau) humor. A história gira em torno de Jo e seu cotidiano as irmãs, os amores, as intrigas, as briguinhas durante um período importante de amadurecimento para todas as personagens. Jo ainda tem ambição de se tornar escritora e vive em dúvida sobre seus sentimentos pelo amigo Laurie (Thimotée Chalamet repetindo a química de Lady Bird/2018). Embora estes elementos sejam caracterizados por muita gente como receita de filme de mulherzinhas (que aliás é o título do livro de Alcott no Brasil), basta assistir o filme para ver que não é bem assim, ele tem recursos para atrair qualquer um que curta bom cinema! Depois de Lady Bird, Greta realiza aqui mais um belo trabalho, principalmente por fugir da armadilha de cair em mais um filme com cara de adaptação de Jane Austen. Aqui ela dita um ritmo ágil (por vezes até demais, o que pode ter sacrificado sua indicação ao Oscar de direção neste ano) que vai e volta no tempo algumas vezes - que pode até ficar um pouco confuso no início, mas que depois funciona. Ela se sai bem ao tentar dar algum equilíbrio para as irmãs na história, mas quem se sai melhor é a excelente Florence Pugh (escrevam este nome, pessoal! Esta moça vai longe e aqui ela foi indicada ao Oscar de coadjuvante pelo papel) que tem o desafio de viver Amy na fase adolescente e na fase adulta de forma bastante convincente - ao ponto de gerar até torcida quando ela e Jo disputam o mesmo rapaz na trama (o rapaz vivido por Thimothée Chalamet), nem vou dizer para quem eu torci... Greta também faz um bom trabalho ao dar um olhar mais contemporâneo para a história, uma verdadeira ousadia diante de uma história já tão conhecida. No entanto, esta tentativa em momento algum parece forçada ou irregular, basta ver a cena em que Jo negocia com um editor sobre quanto receberia de royalties na venda de cada livro e você irá entender que Greta está realmente absorvida por aquela história sem perder o olhar do seu tempo. Se no seu filme anterior ela deixava clara a inspiração autobiográfica da história (que lhe rendeu o Oscar de roteiro original), aqui ela demonstra  um pouco como deve ser uma diretora querendo fazer seus projetos na indústria hollywoodiana (não por acaso foi indicada o Oscar de Roteiro Adaptado). Equilibrando drama e romance com aquele humor delicioso que já apresentou em outros filmes, Gerwig está no caminho certo para ser um dos grande nomes da história do cinema americano.  

Adoráveis Mulheres (Little Women /EUA-2019) de Greta Gerwig com Saoirse Ronan, Florence Pugh, Emma Watson, Elisa Scanlen, Laura Dern, Meryl Streep,Thimothée Chalamet, Louis Garrel e Bob Odenkirk. ☻☻

PL►Y: Star Wars - A Ascensão Skywalker

Adam e Daisy: lutando por um filme decepcionante. 

Admito que fiquei bem empolgado quando a franquia Star Wars retornou aos cinemas pelas mãos de JJ Abrams. Misturando personagens novos com os já consagrados, eu sai bastante satisfeito de O Despertar da Força (2015) e todas as possibilidades que apresentava para este universo. É verdade que havia ali uma certa receita de manual da franquia, alguns elementos reciclados e até revisitados mas a coisa funcionava. A minha empolgação baixou consideravelmente quando vi Os Últimos Jedi (2017) no cinema. Com direção de Rian Johnson, o filme cozinhava em banho maria por duas horas e, para piorar, a maior parte das trama vai do nada a lugar algum. Sorte que os minutos finais me manteve acordado numa mostra do que o filme poderia ter sido nas horas anteriores. Por isso fui um dos que pediram para JJ voltar à direção da franquia e ele manteve tanto segredo sobre A Ascensão Skywalker (2019) que eu estava animadíssimo com o filme. Não deveria. Estou procurando até agora a história do filme. Embora tenha mais ação que o anterior, existem tantos elementos para trabalhar aqui que ao final da sessão tenho a impressão que todos ficaram pelo meio do caminho. O pior deles é o que envolve a origem de Ray (Daisy Riley) que alcança um resultado emocional zero no decorrer da trama com uma saída tosca para algo que se indagava desde o primeiro filme. Nessa confusão quem se deu mal mesmo foi Kylo Ren, que de vilão promissor, foi perdendo espaço cada vez mais até Adam Driver nos fazer acreditar que a transição do personagem foi bem trabalhada nos filmes, não foi (por melhor ator que ele seja o roteiro... não ajudou muito) e para piorar tem aquele final horroroso que só expressa a preguiça de quem escreveu a trama. Sim, existem bons efeitos, cenas de batalhas épicas, mas o fator humano ficou tão de lado que não parece o desfecho de uma história, o ritmo é de um episódio supérfluo, aquele sem graça que você nem se lembra direito do que está acontecendo. Ouvi dizer que o roteiro era bem mais extenso do que aparece na tela e que sua versão em livro deixa claro como toda a história era redondinha e com sentido. Se levarmos em conta que o filme tem duas horas e vinte e dois minutos, talvez fosse mais esperto fazê-lo com três horas e ter algum sentido. Embora o estúdio tenha se virado para dar conta deste desfecho sem Carrie Fischer (que volta em formato efeito especial como a princesa Léa), não espere que o filme dê conta de fechar as histórias de Finn (John Boyega), Poe (Oscar Isaac) ou Rose (Kelly Marie Tran que viu seu personagem virar pó sabe-se lá o motivo). Esta carência de cuidado com os personagens afeta até o arremate do General Hux (Domhnall Gleeson) que mostra-se apressado e sem graça. Não se pode pegar uma franquia como Star Wars que já passou por maus bocados e fazer uma coisa dessas após sua recuperada no prestígio. A Ascensão Skywalker beira o sacrilégio e por isso mesmo decepciona por jogar pelo ralo todas as possibilidades que o próprio JJ sugeriu. 

Star Wars - A Ascensão Skywalker () de JJ Abrams com Daisy Ridley, Adam Driver, Oscar Isaac, John Boyega, Mark Hamill, Carrie Fisher, Anthony Daniels, Richard E. Grant, Donhnall Gleeson e Kelly Marie Tran.  

sexta-feira, 27 de março de 2020

PL►Y: Perseguido pelo Destino

Adèle e Matthias: romance tórrido rumo ao melodrama. 

Eu sempre faço a promessa que não irei falar de filmes que não gostei aqui no blog, mas uma amiga fez o favor de dizer que alertar leitores sobre filmes que detesto é um serviço de utilidade pública de um blog, então nesse ano criei uma sessão para aqueles filmes considero uma perda de tempo e que me convenceram a assisti-lo e até, escrever sobre. Para não tomar ainda mais o meu tempo, tentarei ser bastante conciso. O escolhido da vez foi Perseguido Pelo Destino, vai saber o que se passa na cabeça de uma pessoa quando dá um nome deste a um filme (mas quando chegar ao final da sessão você irá descobrir). O filme começa com o pequeno Gigi fugindo de um cachorro. Quando ele estiver maior ele será grandão (Matthias Schoenarts, coitado...) e ainda terá medo de cachorros. É importante ressaltar isso porque os caninos terão grande importância na trama. Gigi é um cara bem vestido, charmoso e elegante e acaba se envolvendo com uma pilota de corridas chamada Bibi (Adèle Exarchopoulos). Gigi e Bibi (será que o nome tem relação com carros?) engatam um tórrido romance e quando você percebe que está tudo agradável demais, o filme apresenta o grande segredo de Gigi que colocará tudo a perder. Nesta primeira parte o filme prende a atenção, tem cenas ágeis, uma atmosfera de que algo sério irá acontecer na vida dos dois e funciona dento de suas limitações. O que era um romance promissor com doses de ação e suspense termina na primeira hora e precisa inventar assuntos para mais uma hora de filme! O que era um romance de ação acaba virando um dramalhão, primeiro sobre as tentativas da moça engravidar, depois por conta de um grave problema de saúde somado às complicações com a justiça que os personagens precisam enfrentar para ficar juntos. É tanta tragédia, tanta coisa dá errado que a dupla de atores premiados não conseguem dar conta desta presepada. Sinceramente, precisava castigar os personagens deste jeito? O resultado beira o risível e dá todo o sentido para o título esdrúxulo que resolveram dar para este filme belga com graves problemas de identidade de gênero cinematográfico. Ao final da sessão eu fiquei pensando onde eu estava com a cabeça pensando que a coisa iria melhorar perto do final, não melhora em nada. Ao menos os fãs do casal terão algumas cenas para guardar na memória (e não vou dizer quais são), acho que é válido dizer que Matthias tem crédito para fazer uma bomba dessas de vez em quando, já Adèle... a estrela de Azul é a Cor Mais Quente (2013) ainda não me convenceu que é uma atriz de verdade. O que ela consegue é sorrir ou fazer cara de quem vomitou o dia todo e fumou maconha para ver se melhorava... não melhora, já que é pouco para dar conta de uma personagem que precisa carregar metade do filme nas costas. Perseguido pelo Destino começa bem e depois joga tudo ladeira abaixo sem a menor vergonha, um enorme tropeço na carreira de Michaël R. Roskam, diretor que dirigiu o excelente Bullhead/2011 (também estrelado por Matthias) que foi indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro e que nunca foi lançado por aqui. Ok, Roskam... você também tem crédito para errar aqui. 

Perseguido pelo Destino (Le Fidèle / Bélgica - França /2018) de Michaël R. Roskam com Matthias Schoenaerts, Adèle Exarchopoulos, Eric de Staercke, Nabil Missoumi e Thomas Coumans. #

quinta-feira, 26 de março de 2020

PL►Y: 45 Dias sem Você

Rafael e Júlia: viajando para esquecer um amor perdido. 

Não sei se vocês já tiveram esta vontade, mas de vez em quando sinto vontade de ver um filme do qual nunca ouvi falar, que nunca li nada a respeito e que não faço a mínima ideia de onde ele saiu. Na época de serviços de streaming, encontrar um bom filme assim é como achar uma agulha no palheiro dando um tiro no escuro. Foi mais ou menos assim que encontrei o simpático 45 Dias sem Você. A ideia é bem simples: Rafael (Rafael De Bona que acaba de estrear na HBO com a série Todxs Nós) é abandonado pelo namorado sem maiores explicações e parte para visitar amigos em diferentes países. O diretor Marcelo Gomes conduz a história de forma que deixa bem claro que aquela situação pode acontecer com qualquer pessoa. Na primeira escala da viagem, fica na casa de Julia (Julia Corrêa) uma amiga atriz que está cheia de esperanças e dúvidas perante a chance de viver Ofélia em uma adaptação de Hamlet. Na segunda visita ele reencontra um amigo nervosinho (Flávio Lucindo) em Portugal, o amigo está atravessando uma fase estranha no namoro – o que rende situações ainda mais engraçadas do que no primeiro ato. Já voltando para a América, ele faz uma parada na Argentina para rever uma amiga (Mayara Constantino) que irá ajudar a colocar algumas coisas no lugar. A química entre os personagens é sempre presente e o humor do filme é esperto, lembra muito a agilidade que vemos em alguns seriados, mas quando revisita as dores de Rafael o filme fica mais sério, mas sem perder o tom. A edição é bastante eficiente, a trilha sonora também é agradável, a fotografia não tem pudores em demonstrar que foi realizada com uma câmera digital (e o manuseio dela também deixa bem evidente como é mais prática para captar locações e ângulos). Embora seja bastante discreto, Rafael de Bona constrói um protagonista do qual é fácil de gostar. Bem humorado em suas mazelas e sempre disposto a uma boa conversa com seus anfitriões, o filme caminha sem firulas em sua generosidade para deixar os coadjuvantes brilharem quando precisam. Os mais conservadores provavelmente ficarão desconfortáveis com alguns beijinhos e a pequena participação de Ícaro Silva (o rosto mais famoso do elenco) que deixa clara a sexualidade do personagem de forma bastante espontânea. 45 dias sem Você foi realizado com baixo orçamento e tem como maior virtude sua despretensão em contar uma história de amor e amizades com leveza e certa melancolia. Uma ótima surpresa!

45 Dias sem Você (Brasil/2019) de Marcelo Gomes com Rafael De Bona, Mayara Constantino, Júlia Corrêa, Flávio Lucindo, Cath Johnson e Ícaro Silva. ☻☻ 

PL►Y: Doutor Sono

Ewan: como causar sono na plateia.

Uma das minhas resoluções quando retomei as atividades aqui no blog foi que não perderia tempo escrevendo sobre filme que não valem a pena (eu me prometo isso várias vezes desde que comecei os trabalhos por aqui em 2010, mas vivo tendo recaídas). Como sei que não cumprirei a promessa, irei abrir raríssimas exceções para aqueles filmes que merecem comentários, nem que eles sejam ruins. Um deles é Doutor Sono, uma das obras mais decepcionantes que já assisti na vida! Na época que o filme estreou nos cinemas eu estava doido para assistir, afinal, era a história que acompanhava o menino de O Iluminado(1980) na fase adulta. Pois é, o protagonista é aquele garotinho que conversava com o dedo, andava de velocípede por um hotel mal assombrado, tinha visões com gêmeas macabras e via o pai pirar até perseguir a família com um machado. Confesso que nunca li o livro de Stephen King e que a lembrança que tenho da história é do clássico de Stanley Kubrick. Obviamente que é covardia comparar o trabalho de qualquer cineasta com o genial Kubrick. Basta perceber que O Iluminado está bem longe de ter a estética dos filmes de terror tradicionais. Sua atmosfera é mais sugestiva, sua fotografia é banhada de luz e a história acontece quase  nas entrelinhas do relacionamento daquela família. É famosa a história que Stephen King odeia a versão que Kubrick deu para o filme, principalmente por ter mudado vários elementos a despeito do que o escritor achasse. Ironicamente, o filme se tornou um clássico e uma das adaptações mais elogiadas da obra. Retomar esta relação complicada entre  filme e livro faz parte dos desafios desta continuação que fica pelo meio do caminho. Porém, o maior problema não é este, mas a verdadeira confusão que seu roteiro se transformou. Não se pode resgatar um personagem do quilate de Danny Torrance e transforma-lo em um quarentão perdido para ser mero coadjuvante. Quando escolheram Ewan McGregor, eu pensava até que ele estaria presente nas premiações de fim de ano... mas infelizmente seu icônico personagem é subaproveitado numa trama esquisita sobre pessoas que aspiram a alma de crianças. Dá até tristeza imaginando todo o potencial que a vida de Danny após aquele incidente poderia gerar na trama, mas o filme acha que coloca-lo em ambientes decadentes e colocar meia dúzia de cenas com referência ao seu passado já basta para entendermos sua complexidade. Ao invés de ser Doutor Sono, o filme deveria se chamar A Mulher da Cartola, provavelmente ele faria menos sucesso, mas seria mais honesto com as pessoas que pagaram ingresso para ver esta enganação. A tal Mulher da Cartola (Rebecca Ferguson tirando leite de pedra) é a pessoa que lidera o grupo que suga alma de crianças e não faz muito coisa além disso mesmo. Lá pelas tantas aparece uma garotinha na história e Danny tem menos importância ainda na história. Para tentar dar um jeito na propaganda enganosa, o filme leva Ewan para o hotel onde tudo começou e a batalha final acontece por lá. Com duas horas e meia de duração e décadas de espera, a plateia e o personagem do título mereciam maior consideração. O pior é que até a direção de Mike Flanagan (da série A Maldição da Residência Hill/2018), que já fez uma adaptação muito melhor de Stephen King em Jogo Perigoso/2017) me deixou esperançoso com este filme, mas  o resultado é uma grande perda de tempo. Reveja O Iluminado e crie uma fan-fic sobre o menino crescido, com certeza será mais interessante. 

Doutor Sono (Doctor Sleep/EUA-2019) de Mike Flanagan com Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran e Carl Lumbly. #

PL►Y: O Poço

Ivan e Zorion: presos na hierarquia da fome. 

Com os cinemas fechados durante a pandemia, era evidente que a atenção se voltaria para os filmes lançados em streaming e em poucos dias o espanhol O Poço se tornou o hit do momento. Alçado a filme mais visto da semana por conta dos vários comentários em redes sociais, a produção é uma grata surpresa por vários fatores. A primeira é que endossa como a Netflix diversificou o acesso do espectador a produções de vários países e, por conta disso, começamos a nos familiarizar com estéticas diferentes das grandes produções americanas. A segunda é um fruto também deste acesso a produções com diferentes pontos de vista na construção de uma narrativa. Embora ensaie uma explicaçãozinha aqui e outra ali, O Poço está bem longe de criar uma estética realista, pelo contrário, em sua parte final as conotações surreais são as que ganham mais força. O filme parece abordar um experimento social, uma espécie de  plataforma onde diversas pessoas habitam andares diferentes. Uma vez por dia, uma mesa desce a partir do andar mais alto com um verdadeiro banquete, no entanto, as pessoas que estão nos andares de baixo estão sujeitas a comerem o que as pessoas dos andares de cima deixarem para elas. Ou seja, quanto mais os primeiros andares com comerem, menos as pessoas dos andares debaixo terão para comer. São mais de duzentos andares. Vale destacar que as pessoas podem mudar de andares de uma hora para outra, passarem de um onde recebia comida para outro em que apenas restam copos e talheres vazios. Diante da fome, do desespero e um bocado de loucura tudo pode acontecer . Dirigido pelo estreante  Galder Gaztelu-Urrutia, o filme é bastante eficiente nas alegorias que utiliza - e estas caíram como uma luva na histeria coletiva que se espalhou pelo país, especialmente com relação às compras exageradas que comprometem a vida do outro que chegou depois (eu, por exemplo, faço parte do time que não consegue comprar álcool em gel e tenho somente meio frasco em minha cozinha, assim como tenho que dar conta de uma senhora de 78 anos que não consegue achar insulina com a mesma facilidade de antes). Com estética econômica e bem cuidada, trilha sonora que remete ao que Kronos Quartet fez para (o pesadelo) Réquiem para um Sonho (2000) e um punhado de cenas desagradáveis, o filme é separado em três atos. O primeiro talvez seja o mais bem resolvido ao apresentar aquele universo para o espectador através dos olhos de um novato (Ivan Massagué) diante da naturalização do horror pelo veterano (Zorion Eguileor) que considera tudo óbvio. No ato seguinte o filme recebe o acréscimo de uma atriz que fiquei muito feliz em rever, na pele de alguém que entende aquele mecanismo de outra forma,  a excepcional Antonia San Juan (a Agrado de Tudo Sobre Minha Mãe/1999) apresenta um ponto de vista diferente naquele universo. O terceiro ato foi o que considerei o mais cansativo, embora seja bastante enfático sobre como "uma causa" pode se diluir bastante em posturas que estão longe de serem as corretas e se mostra, por vezes, contraditórias na posturas de quem as defende. Suas ideias podem ser nobres, mas sua postura, nem tanto...  Não faltou gente ressaltando que o filme é uma grande metáfora ao capitalismo e suas classes sociais, na verdade o filme é bem mais do que isso. É sobre pessoas presas em seu egoísmo e a gigantesca dificuldade de criar empatia pelo outro. Obviamente que dentro de um sistema em que estes problemas encontram espaço para se propagar a coisa piora consideravelmente, no entanto, será que as pessoas querem realmente mudar a estrutura a que estão presos? Com esta pergunta O Poço mostra que o fundo está logo ali e, quando chegar nele, sempre se pode cavar mais um pouquinho.

O Poço (El Hoyo / Espanha - 2019) de Galder Gaztelu-Urrutia com Ivan Massagué, Sorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale e Mario Pardo. ☻☻☻ 

terça-feira, 24 de março de 2020

Combo: Taika Waititi

05 Boy (2010) é nome do menino que sonha com o retorno do pai que é idealizado como um dos caras mais legais do mundo (mas na realidade não é nada disso). Taika Waititi vive o pai do protagonista e capricha nos exageros para demonstrar o quanto ele está longe de ser exemplar! Este é o segundo longa-metragem do cineasta que tem uma origem incomum: é filho de um fazendeiro maori e uma professora judia. Esta origem multifacetada revela muito da forma como o diretor concebe suas histórias, seja na escolha do elenco, no senso de humor e uma certa nostalgia  na construção de uma atmosfera quase fantasiosa sobre busca das origens. 

04 Thor Ragnarok (2017) Dê milhões de dólares na mão de um diretor que sempre concebeu o cinema como divertimento (mas sempre teve restrições de orçamento), dê a ele liberdade para brincar com heróis de histórias em quadrinhos feitos de carne, osso e CGI e o resultado é o multicolorido Thor Ragnarok! Muita gente levou um susto ao ver o que Waititi fez com o que começou nos cinemas com aura shakesperiana. O filme é uma verdadeira ode ao momento mais psicodélico dos quadrinhos da Marvel e, ironicamente, trata justamente do fim do mundo do Deus do Trovão com muito humor. De onde tiraram a ideia de Waititi dirigir um filme da Marvel? Não sei, mas funciona. 

03 Fuga para Liberdade (2016) Um menino órfão que nunca consegue se adequar às famílias que cruzam seu caminho. Um homem rabugento que não faz a mínima ideia do motivo de sua esposa ter adotado um menino. Eis que o garoto decide fugir e começa uma aventura inusitada onde os dois são perseguidos pelas autoridades locais. O mundo ainda estava conhecendo o frescor do cinema de Waititi quando este filme estreou e fez o maior sucesso na Austrália. Com boas atuações do sumido Sam Neil (que tem aqui um dos seus melhores momentos) e do precoce Julian Dennison (que depois fez Deadpool2), o filme é uma boa pedida para uma sessão da tarde divertida e despretensiosa.

02 O Que Fazemos nas Sombras (2014) Um documentário sobre vampiros estrangeiros de épocas e lugares diferentes que vivem na Nova Zelândia? Quem mais poderia ter uma ideia dessas além de Taika Waititi? Ninguém, oras! Mostrando o cotidiano inusitado de um trio de vampiros, o filme é um dos mais divertidos que eu já assisti! Entre servos, vampiros novatos, lobisomens, caçadores de vampiros, A Besta em pessoa e brigas pela tarefa de casa ser feita, o filme se desenrola com delicioso ritmo fake e fez tanto sucesso que virou até série para a televisão no ano passado.

01 Jojo Rabbit (2019) Quase que este filme fica em segundo lugar, mas quando me dou conta da coragem e do perigo que Taika Waititi assumiu ao criar este projeto... ele merece o primeiro lugar. O reconhecimento pelo equilíbrio que o filme busca entre o humor e a seriedade é ligada com a acidez típica do diretor! O resultado foi premiado no Festival de Toronto e levou para casa o Oscar de Roteiro Adaptado. Quem poderia contar uma história sobre um menino que tem Hitler como amigo imaginário em meio a Segunda Guerra Mundial? Quem além de Taika Waititi levaria uma sandice dessas adiante? Ninguém, oras!

Na Tela: Jojo Rabbit

Taika e Roman: amigo imaginário perigoso. 

Faz um tempo que acompanho a carreira do neozelandês Taika Waititi, tempo suficiente para saber que ele tem uma ideias muito estranhas, mas que casam com seu senso de humor ácido e sem firulas. Quando descobri que depois de ganhar fama mundial com Thor Ragnarok (2017) o novo projeto de Waititi era levar para as telas uma história sobre um garotinho que tem como amigo imaginário Adolf Hitler... juro que pensei que ele havia surtado de vez. Todo mundo deve ter dito isso para ele. Com o roteiro pronto e embaixo do braço, foi difícil conseguir dinheiro para bancar a produção, assim como convencer o elenco a entrar nesta sandice. Embora o mundo hoje esteja vivendo um clima extremista polarizado assustador, o livro que inspirou o filme foi lançado em 2004 e somente uma mente como de Taika poderia imaginar um longa baseado nele para lançar em tempos perigosos. Obviamente que polêmicas em torno do filme não faltam, mas penso que ele foi concebido para ser do jeito que é, incluindo suas provocações. A começar que o Hitler do filme (vivido pelo próprio diretor de origem judaica) não é aquele que conhecemos nos livros de História, mas uma fantasia criada por um menino que sonha em ser um pequeno soldado nazista. Se você considera isso ridículo, basta lembrar de quem idolatra líderes que vivem dizendo sandices por aí com um bando de gente para dar razão ainda. O amigo imaginário do pequeno Jojo pelo menos é feito de forma quase Chapliana por Taika, mas as falas hediondas estão todas ali e, por incrível que pareça, a postura de muitos seguidores na Alemanha da Segunda Guerra Mundial não era diferente do que se vê no filme. É verdade que aqui o apelo cômico está presente através do exagero caricatural, mas que só ressalta o que já foi real. Não podemos esquecer que Hitler não chegou ao poder sozinho e se conseguiu fazer o que fez foi por conta dos fieis seguidores que abraçaram suas ideias questionáveis. Jojo (o ótimo estreante Roman Griffin Davis) é um deles, assim como seu amigo irresistível Yorki (Archie Yates), como freio para as ambições do desastrado Jojo está sua mãe (Scarlett Johansson indicada ao Oscar de coadjuvante), que sabe o filho que tem e, mesmo assim, abriga uma menina judia (Thomasin McKenzie) em segredo enquanto os campos de concentração já existem. É nesta relação entre Jojo e a menina que o discurso em que o menino acredita se desmonta aos poucos. Esta relação já foi vista sob outro prisma em O Menino do Pijama Listrado (2008) e aqui o resultado chega ao mesmo objetivo por caminhos diferentes. Houve gente que reclamou que o filme enquanto comédia "incomoda" - como se isso fosse um defeito, a intenção de Waititi é esta mesma, basta ver a origem da comédia clássica para perceber que o objetivo é este: desmontar o espectador pelo riso para tocar em assuntos sérios minutos depois.  Assistir Jojo Rabbit é perceber um diretor ousando tocar num vespeiro e buscar o equilíbrio o tempo inteiro com o que tem em mãos. Não é uma tarefa fácil e só ajuda o espectador a ficar apreensivo com o que vê na tela. Se nem o Oscar de roteiro adaptado te motiva a ver o filme, vá assistir pelo excelente trabalho de Roman e Archie, os meninos são espetaculares e valem o ingresso!

Jojo Rabbit (Nova Zelândia / EUA / República Tcheca - 2019) de Taika Waititi com Roman Griffin Davis, Taika Waititi, Scarlett Johansson, Archie Yates, Thomasin McKenzie, Sam Rockwell, Rebel Wilson e Stephen Merchant. ☻☻☻         

FILMED+: O Farol

Robert e Willem: à beira da loucura. 

Depois da estreia com o elogiado A Bruxa (2015), o cineasta Robert Eggers segue em seu caminho para se tornar o mestre do terror do século XXI. O Farol é a confirmação de que estamos diante de um talento cheio de estilo e que prefere sutilezas e simbologias do que causar sustos fáceis na plateia. Aqui, mais uma vez, ele prefere construir a tensão cuidadosamente entre os seus personagens, numa espécie de tortura psicológica para quem está na tela ou diante dela. Para esta tarefa ele conta com dois atores inspirados em fases distintas de suas carreiras. Um deles é Willem Dafoe, ator consagrado e que parece se encaixar em qualquer coisa que lhe entreguem para fazer. Apesar de ser um rosto bastante conhecido e aparecer em superproduções hollywoodianas, nota-se que é no cinema independente que Dafoe encontra seu refúgio, prova disso é que o ator foi lembrado no Oscar por dois anos seguidos por seus irrepreensíveis trabalhos em  Projeto Flórida (2017) e O Portal da Eternidade (2018). No primeiro ele vivia um cuidadoso zelador de um hotel precário nos arredores da Disney, no segundo ele vivia o artista Van Gogh no período mais complicado de sua vida. Neste ano, bem que a Academia poderia ter lembrado dele como o experiente faroleiro prestes a surtar com a chegada de um parceiro. Vai entender o motivo de todo mundo ter se rendido ao Brad Pitt em Era Uma Vez em Hollywood (2019) e esquecer da força que Dafoe empresta à narrativa de O Farol. O veterano é seguido de perto pelo trabalho de Robert Pattinson, que todo cinéfilo bem informado já percebeu que está cada vez mais distante do vampiro brilhoso de Crepúsculo (2008). Colecionando bons trabalhos nos últimos anos (vou citar Bom Comportamento/2017 e High Life/2018 só para ficar nos mais recentes), o rapaz demonstra aqui que é preciso leva-lo a sério, já que (assim como seu parceiro de cena) está impecável perante a loucura que o consome vagarosamente diante do isolamento que aquele lugar provoca. Zeggers insere aqui um tom bastante pesadelesco e um tanto surreal na mistura  de referências que utiliza sobre as mitologias em torno da vida no mar (sereias, maremotos, maus presságios...) e esgarça cada vez mais a relação da dupla ao longo da sessão. O estresse chega a um nível insuportável e aquela cena raivosa de Willem Dafoe clamando uma punição ao parceiro é um daqueles momentos que você não consegue nem piscar diante da tela. Feito em belíssima fotografia em preto e branco (única indicação do filme ao Oscar), usando aquele formato de tela quadradamente claustrofóbico, calcado em atuações carregadas do elenco em uma estética que lembra filmes expressionistas alemães o resultado é impressionante. O Farol parece concebido para ser um clássico do horror psicológico e, por sorte, alcança seu objetivo com louvor! Se Zeggers queria nos deixar cada vez mais curiosos com seus projetos futuros, o cara conseguiu. 

O Farol (The Lighthouse / Canadá - EUA / 2019) de Robert Eggers com Robert Pattinson e Willem Dafoe. ☻☻☻☻

segunda-feira, 23 de março de 2020

PL►Y: História de Um Casamento

Scarlett, Azhy e Adam: palavras afiadas. 

O cineasta Noah Baumbach caiu nas graças da crítica com seu terceiro filme, A Lula e a Baleia (2005) que marcou sua estreia no cinema autoral e rendeu sua primeira indicação ao Oscar pelo roteiro original de uma família que tenta juntar os cacos após o divórcio. Elogiado pelo frescor de seu filme (embora o tom fosse bastante pessimista), o cinema de Baumbach ficou ainda mais denso em suas obras seguintes, embora eu goste bastante de Margot e o Casamento/2007, considero O Solteirão/2010 um dos filmes mais insuportáveis da história - pelo menos este filme serviu para colocar Greta Gerwig no caminho de Noah. Depois que Greta se tornou sua musa, seja na tela ou fora dela, com Frances Ha (2012) o cinema de Noah seguiu por outros caminhos e, embora sua ironia permaneça a mesma, agora ela está mais colorida. Portanto é ainda mais interessante que ao revisitar o tema da separação, desta vez o tom é completamente diferente e até mais verdadeiro. Em sua segunda parceria com a Netflix (a anterior foi Os Meyerowitz/2017), Noah conta a história de um casamento com os dias contados. Charlie (Adam Driver) é um consagrado diretor de teatro em Nova York e Nicole (Scarlett Johansson) é sua esposa e atriz de suas peças já faz algum tempo. No começo do filme os dois estão numa sessão de terapia e este é o ponto de partida para o espectador conhecer um relacionamento que está desgastado. Aos poucos conhecemos os sentimentos que começaram a tomar conta daquela relação, as renúncias, as mágoas, os desentendimentos e aqueles pontinhos que vão se juntando e contaminando a rotina até que ela não faz mais sentido. No princípio os dois tentam se separar amigavelmente, mas tão logo a justiça aparece num complicado processo de divórcio aguçado ainda mais pela guarda do filho do casal (Azhy Robertson), a situação vira uma verdadeira guerra. Nas atuações precisas de Scarlett e Adam vemos a dissolução daquele relacionamento, mas sem perder de vista os detalhes que demonstram que o afeto permanece ali, ainda que soterrados por toneladas de mágoas e diálogos pesados. Baumbach cria aqui o seu melhor texto. Os diálogos espertos sempre foram sua marca, mas aqui ele constrói um encaixe perfeito das tensões entre os personagens, não apenas entre o casal protagonista, mas também em quem está ao redor (com destaque especial para a soberba atuação de Laura Dern que levou para casa os prêmios mais importantes de atriz coadjuvante da temporada pela advogada de Nicole). A coisa funciona tão bem que em vários momentos parece que estamos diante da destruição de um casal de verdade. Dói. Incomoda e comove com os momentos mais ternos que Baumbach já concebeu. Scarlett e Adam mereceram suas indicações ao Oscar e poderiam até ter levado para casa suas cobiçadas estatuetas, assim como Baumbach poderia ter sido lembrado na categoria de melhor diretor. Aqui ele demonstra personalidade e, se em alguns momentos seus roteiros lembram muito a escrita de Woody Allen, aqui ele incorpora um pouco de Ingmar Bergman também com muito discernimento na profundidade de seus personagens. História de um Casamento é o filme mais maduro do cineasta, ouso dizer que é sua obra-prima. 

História de Um Casamento (Marriage Story/EUa-2019) de Noah Baumbach, com Adam Driver, Scarlett Johansson, Laura Dern, Azhy Robertson, Alan Alda, Merritt Wever e Ray Liotta. ☻☻☻☻