terça-feira, 7 de maio de 2024

PL►Y: Mil e Um

Teyana e Josiah: segredos de mãe e filho.

Em tempos que muita informação sobre produções do cinema é sempre uma grata surpresa se deparar com um filme que você não faz a mínima ideia para onde vai.  A primeira vez que ouvi falar de A Thousand and One foi por conta das indicações que recebeu para o Independent Spirit Awards (melhor filme e melhor atuação) e tive uma vaga noção de que o filme era sobre a relação de uma mãe com seu filho. Isso está de bom tamanho para não estragar as surpresas que o filme oferece ao espectador, mas existem outros detalhes que posso comentar por aqui, sem dar SPOILER e fazer você ficar ainda mais interessado pelo filme. Posso dizer que Inez (Teyana Taylor) passou um tempo no presídio e ao sair, deseja apenas reaver o filho, o pequeno Terry, agora com seis anos, que mal lembra dela, mas sabe que no tempo em que esteve presa viveu em um abrigo e foi  encaminhado para a adoção. Ela deseja tanto viver ao lado do menino que é capaz até de burlar o sistema para que possam viver como uma família. Começa então uma jornada clandestina de Inez e Terry para seguirem a vida juntos a partir de meados dos anos 1990. A narrativa avançará por anos, sempre demonstrando as dificuldades encontradas pela dupla nos subúrbios de Nova York, com dificuldades, a grana curta e a companhia de Lucky (William Catlett) que se juntará à família quando Terry ainda for menino. A diretora e roteirista A.V. Rockwell se desvia com maestria dos clichês, embora a vida árdua dos personagens seja visível, ela desvia de um cotidiano de crimes, violência e drogas que geralmente são associados aos filmes sobre a realidade das periferias e se concentra na busca dos personagens por uma vida melhor (mas sem perder de vista que uma ação do passado de Inez poderá ter um custo alto que pode colocar o sonho de todos a perder). O espectador assiste o filme torcendo por aquela família e o desfecho deixa um nó na garganta por tudo passaram ao longo de todo o filme. É notável que este seja o primeiro longa-metragem da diretora. É preciso também destacar o trabalho arrebatador de Teyana Taylor, que apesar de ter mais trabalhos como cantora do que como atriz, demonstra um grande controle das emoções da personagem, sempre intensa, ela transparece com maestria as emoções da personagem, mesmo contida em cena, parece prestes a explodir! Pelo trabalho, ela foi lembrada no Independent Spirit e no Gotham Awards e poderia até ter aparecido em outras premiações se o filme não optasse por, no terceiro ato, destacar o trabalho do promissor Josiah Cross, que vive Terry aos 17 anos, prestes a conquistar seu próprio espaço no mundo. Embora o filme utilize algumas analogias pouco sutis (como o apartamento se deteriorando enquanto a família enfrenta seus piores momentos), Mil e Um (que está disponível no TeleCine via GloboPlay) é um filme que consegue conquistar o espectador com uma história que é tão cheia de segredos quanto de esperança. 

Mil e Um (A Thousand and One / EUA - 2023) de A.V. Rockwell com Teyana Taylor, Josiah Cross, William Catlett, Aven Courtney, Aaron Kingsley Adetola, Terri Abney e Delissa Reynolds.

domingo, 5 de maio de 2024

PL►Y: Vidas Passadas

Teo, Greta e Magaro: entre duas vidas. 
 
Quando pequena, Nora (Greta Lee) mudou com sua família para o Canadá. A mudança implicou até no nome de todos de sua família que buscava um recomeço fora da Coreia do Sul. Em sua partida, ela deixou o seu melhor amigo, Hae Sung (Teo Yoo) sem uma despedida apropriada. O tempo passou e Nora se tornou escritora e reencontrou o amigo com ajuda das redes sociais. Porém, o reencontro não ocorre conforme o esperado e os dois perdem contato novamente até que se reencontram vários anos depois. Ela agora é casada com Arthur (John Magaro) e Hae Sung irá viajar para Nova York para se reencontrar com ela. Indicado ao dois Oscars (Melhor filme e melhor roteiro original) o longa de estreia da diretora Celine Song consegue ser elegante, sutil e bastante melancólico ao contar uma história de amor que nunca se concretiza, mas que consegue ser ampliada pelas atuações de Greta Lee e Teo Yoo. Ambos dão vida a personagens que estão amarrados aos rumos que suas vidas tomaram e, ao mesmo tempo, sempre se indagam sobre o que a vida poderia ter sido se a separação nunca tivesse acontecido. Esta sensação fica bastante evidente em Hae Sung, que sempre contido, muitas vezes não sabe reagir diante de sua amiga. São visíveis os sentimentos que o estão mastigando por dentro, por outro lado, Nora quando o vê lembra da menina que foi um dia, mas agora tem ciência de que é a mulher que se tornou quando está ao lado de seu esposo. É neste ponto que outro personagem merece destaque, o marido. O texto e a direção de Celine fazem questão de fazer Arthur tão adorável quando Hae Sung, embora ambos sejam bastante diferentes. É visível a mistura de insegurança e empatia que o personagem sente sobre aqueles dois amigos que se reencontram após tanto tempo. Não por acaso, escolhi a foto que ilustra esta postagem com base na cena que abre o filme em que surgem várias especulações sobre quem são aqueles três personagens, ao mesmo tempo que se trata da conversa mais honesta entre Nora e Sung quase no final da sessão. Falando em conversa, o filme tem alguns dos diálogos mais cirúrgicos dos últimos tempos, sobre isso, por mais que existam algumas conversas sobre as outras vidas que podemos ter vivido antes da atual, o filme tem sua força maior sobre a expectativa do casal protagonista sobre uma vida que nunca teve. E se tivessem ficado juntos? Teria sido melhor? O romance entre os dois teria funcionado? Estariam juntos ainda? Quando chega a última cena a sensação é que nunca saberemos e talvez, aquela mistura de sentimentos sobre quem já fomos alguns dia seja o mais seguro a experimentar. Quando o filme terminou eu confesso que não o achei nada demais, mas conforme eu voltava a pensar nele, suas emoções genuínas o deixavam mais interessantes em minha memória. Não tem como, visto pelo prisma sobre o que deixamos para trás para sermos o que somos hoje o filme se torna ainda mais marcante. O filme saiu do Oscar de mãos abanando, mas se tornou um dos indies mais celebrados do ano passado, foi eleito o melhor filme no Gotham Awards e no Independent Spirit, no qual ainda ganhou o de melhor direção.

Vidas Passadas (Past Lives / EUA - Coreia do Sul / 2023) de Celine Song com Greta Lee, Teo Yoo e John Magaro, Moon Seung-ah e Choon Won-Young. 

sábado, 4 de maio de 2024

PL►Y: Transmissões Sinistras

Shum: impressões traiçoeiras.
 
Um amigo ficou tão instigado com Transmissões Sinistras que recomendou que eu assistisse. O título não ajuda a despertar interesse e o longa está escondido no acervo do Prime Video sem muito destaque. De fato o ponto de partida do longa é muito interessante, já que é baseado em uma história real sobre transmissões piratas que invadiram o sinal de emissoras nos Estados Unidos nos anos de 1963 e 1987 com imagens estranhas e sons bizarros. Nunca foram identificados os responsáveis ou as intenções daquelas imagens, mas algumas pessoas tiveram arrepios com o que viram na tela. Divagando sobre o que aconteceu e inúmeras teorias envolvendo o ocorrido, os roteiristas Phil Drinkwater e Tim Woodall construíram a história de James (Harry Shum Jr), um rapaz que ao final dos anos 1990 trabalha como arquivista de vídeo em uma emissora e se depara com uma das transmissões. Ele não conhece aquela história e começa a desenvolver uma verdadeira obsessão sobre o que aquelas imagens queriam dizer. No entanto, enquanto busca desvendar os mistérios da transmissão, James tem sua objetividade comprometida com acontecimentos mal resolvidos de sua própria vida - o que faz com que associe aqueles vídeos a alguns crimes sem resolução. O diretor Jacob Gentry consegue fazer um bom trabalho durante a primeira metade da sessão, em que consegue explorar o tom de paranoia junto às imagens esquisitas que apresenta e as teorias que começam a surgir no caminho do protagonista. Ainda que seja notório o orçamento curto do filme, ele consegue construir uma tensão envolvente na busca pela verdade sobre aquele sinal pirata que foi até investigado pelo FBI. O problema é que conforme o filme insere outros personagens no caminho de James o filme se embola nas intenções, se torna repetitivo e pouco convincente com os rumos escolhidos. A intenção é até interessante, já que aponta para uma  determinada cegueira do protagonista, que está tão obstinado a encontrar as respostas que deseja que é incapaz de questionar qualquer indicação de que esteja errado. Lembra um pouco o caminho feito por figuras notórias que produzem suas próprias verdades inquestionáveis e ainda atraem seguidores. O desfecho bizarro aumenta ainda mais o tom pessimista do desfecho e reforça a atmosfera de terror que aparecia nas entrelinhas da história. Ao terminar o filme, tive a impressão que este ponto de partida ainda pode ser retomado em uma produção mais ambiciosa e interessante no futuro. 
 
Transmissões Sinistras (Broadcast Signal Intrusion - EUA / 2021) de Jacob Gentry com  Harry Shum Jr, Kelley Mack, Chris Sullivan, Michael B. Woods, Justin Welborn e Jennifer Jelsema.

 

PL►Y: Todos Nós Desconhecidos

Andrew e Paul: de amor e fantasmas.
 
Adam (Andrew Scott) é um escritor que foi morar em um prédio recém inaugurado. Um dia, quando soa o alarme de incêndio, ele vai até a calçada sem muita empolgação. Olhando para o prédio, ele descobre que não é o único morador daquele lugar. Mais tarde ele irá conhecer o vizinho, Harry (Paul Mescal), que bate à sua porta e demonstra um interesse genuíno pelo vizinho, mas Adam não se empolga muito. Pelo menos no primeiro encontro. Desde a primeira cena em que estão juntos, percebemos que os dois são almas solitárias e que podem ser a companhia mais agradável de um para o outro. Poderia ser mais um romance gay urbano idealizado pelo diretor Andrew Haigh, da série Looking (2014-2025) e  Weekend/2011, mas um dia em suas andanças pela cidade, Adam é guiado para casa em que viveu com seus pais até os onze anos. O pai (Jamie Bell) e a mãe (Claire Foy) não aparecem envelhecidos, mas com a mesma aparência de quando o filho ainda era um menino, antes do acidente iria leva-los embora para sempre, ou pelo menos, até aquele encontro inusitado. No celebrado 45 Anos (2015), Haigh já demonstrava saber lidar com histórias de fantasmas na mente de seus personagens, mas aqui ele eleva esta habilidade a outro patamar. O diretor não gasta tempo explicando o que está acontecendo, faz com o que o espectador escolha a melhor leitura para o que observa na tela. Estaria  Adam delirando? Estaria vendo realmente os fantasmas de seus pais? Estaria criando um novo roteiro? As questões acabam ficando em segundo plano na narrativa, já que aqueles encontros servirão para que o protagonista conte aos seus pais sobre sua sexualidade e tenha que lidar com suas reações. A ideia de sair do armário, leva o personagem a confrontar a forma como ele mesmo lida com sua vida, inserindo momentos que até aquele momento ele não precisou lidar perante a ausência dos pais em sua vida adulta. A trama é baseada no livro Strangers de Taichi Yamada e Haigh enriquece a trama ainda mais ao inserir o tema da sexualidade em sua adaptação. Andrew Scott está (mais uma vez) ótimo em cena como um personagem que não demonstra certeza do que está acontecendo em cena, seja nos encontros com os pais ou em sua aproximação com o novo parceiro. Pelo papel, Scott foi indicado ao Globo de Ouro e Gotham Awards e tinha até chances de indicação ao Oscar.  Paul Mescal foi lembrado como coadjuvante no BAFTA, assim como Claire Foy. Todas as indicações foram merecidas, já que o elenco está ótimo em cena e transforma o filme numa jornada emocional bastante sensível. Tudo vai muito bem até o final, que deixa um tom amargo e algumas dúvidas na mente do espectador. Ainda assim, a forma poética como diretor entrega a última cena nos faz até relevar (um pouco) que ele perdeu a chance de fazer um drama romântico perfeito. Faltou ousadia para fazer um final feliz. O filme está disponível no STAR+.

Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers / Reino Unido - EUA / 2023) de Andrew Haigh com Andrew Scott, Paul Mescal, Claire Foy e Jamie Bell.

terça-feira, 30 de abril de 2024

HIGH FI✌E: Abril

 Cinco produções assistidas no mês que merecem destaque:







 
 

4EVER: Paul Auster

03 de fevereiro de 1947 30 de abril de 2024

Paul Benjamin Auster nasceu em Nova Jersey e lançou seu primeiro livro com o nome de Paul Benjamin em 1982. Paul encontrou dificuldades para publicar sua segunda obra: Cidade de Vidro, que foi rejeitada 17 vezes até sua publicação de forma independente em 1985 já assinando como Paul Auster. A obra se tornou a primeira da famosa trilogia de Nova York e o tornou cult. Prolífico, conseguia lançar quase um livro por ano. Seus temas favoritos eram a perda, o luto e a identidade, enquanto suas referências vinham de Dostoiévsky, Hemingway, Fitzgerald, Faulkner, Kafka, Beckett e Proust. Considerado por muitos um dos maiores escritores dos Estados Unidos, Auster se aventurou pelo cinema após a adaptação de seu romance Jogando com a Sorte (1993), que foi seguido pelo roteiro de Cortina de Fumaça (1995). Auster  ficou tão animado com o resultado que co-dirigiu a sequência, Sem Fôlego (1995) de narrativa bem mais fragmentada. Depois dirigiu mais dois filmes com base em seus livros, O Mistério de Lulu (1998) e Kimera (2007). Se alguns críticos identificavam em seus livros a influência do cinema, em seus filmes muitos críticos identificavam um cineasta tímido. O último livro do escritor foi Baumgartner (2023) sobre um professor de Filosofia prestes a se aposentar. Enquanto finalizada o romance, Auster foi diagnosticado com câncer de pulmão que passou a tratar desde então.

NªTV: Bebê Rena

Jessica, Gadd e Nava Mau: sentimentos complicados.
 
Estava eu tentando terminar a primeira temporada de Yellowjackets na Netflix quando todo mundo começou a falar de Bebê Rena. Todo mundo mesmo. Eu não fazia a menor ideia do que se tratava a série e ninguém estava disposto a me contar. Foi com base naquela imagem de uma personagem com um homem preso em um recipiente de vidro que comecei a assistir e confesso que ao final do sexto episódio eu não sabia o que dizer. Entendi perfeitamente toda a comoção provocada pela minissérie, já que a relação entre os dois personagens é tão complexa, tão cheia de camadas e aparentes contradições que os sentimentos do público se embaralham com dos próprios personagens, sendo que estes sentimentos são bastante complicados de serem expressos. Quando descobri que o programa é baseado em fatos reais, aquela impressão de que é uma trama sincera se tornou ainda maior e ao descobrir que o ator principal é o criador da série que resolveu retratar fatos vividos por ele... minha mente deu um nó. A história nos apresenta Donny Dunn (Richard Gadd), um barman aspirante a comediante que ainda não encontrou o sucesso (e está cada vez mais convicto que provavelmente não encontrará), um dia no bar ele se depara com Martha (Jessica Gunning), que está tão triste e sem dinheiro que ele resolve não lhe cobrar o chá pedido por ela. A atenção dada por Donny à moça é o suficiente para que ela se apaixone por ele. A partir daí, ela estará sempre por perto, estreitando cada vez mais a promessa de um laço afetivo. Donny, como também está passando por uma fase difícil, talvez não se dê conta de como toda atenção que Martha lhe oferece, alimenta sua autoestima de uma forma que ele sequer imaginaria. O problema é que Martha começa a passar dos limites e a coisa ganha proporções inimagináveis. As proporções só crescem e quando conhecemos um pouco mais da vida de Donny  junto a um trauma sofrido por ele, tudo se encaixa de forma assustadora. A série, que de início parece uma comédia romântica obscura, começa a ganhar traços cada vez mais intensos conforme destrincha seus personagens e explora como aquelas duas sentiam a necessidade de se agarrar uma outra para encontrar sentido em suas vidas. É uma sucessão de situações tão inesperadas que ao final você não sabe se fica mais compadecido com Martha ou com Donny. Bebê Rena envereda por uma seara de sentimentos complicados que renderiam horas de terapia, especialmente sobre como a sensação de ser amado e especial pode fazer as pessoas se sujeitar a situações degradantes com base na confusão de sentimentos que as atravessa. O que poderia ser uma história de amor se torna em uma grande indagação sobre emoções  que sequer imaginamos que possuímos. Ao final dos episódios me deparando com o sucesso do programa da Netflix e as alardeadas trocas de ofensas entre o protagonista e a antagonista na vida real, só fico pensando como o ciclo vicioso da relação de ambos ainda não terminou, assim como a busca incessante por atenção e reconhecimento. O sucesso de Bebê Rena se sustenta pela forma como nos faz pensar sobre a complexidade do ser humano.
 
Bebê Rena (Baby Reinder / Reino Unido - 2024) de Richard Gadd com Richard Gadd, Jessica Gunning, Nava Mau, Nina Sosanya, Shalom Brunne-Franklyn, Tom Goodman-Hill e Mark Lewis Jones.