domingo, 28 de abril de 2024

PL►Y: Dias Perfeitos

Koji Yakusho: merecido prêmio de atuação em Cannes2023.

Faz um tempo que assisti Dias Perfeitos na Mubi, mas não me sentia preparado para escrever sobre ele. Até agora acho que ainda não estou pronto. A começar porque é um daqueles filmes que tem uma vibe que acho difícil de me conquistar: o filme de ficção que pretende ser um recorte da vida real de um personagem. Não sei se deu para entender, mas é aquele tipo de filme que não quer soar como um filme, mas como um pedaço da vida de alguém. Sei que é o tipo de filme mais difícil de se fazer, já que invariavelmente soa artificial, pedante e por vezes deixa a sensação que nada acontece. Com Dias Perfeitos não acontece nenhum desses problemas. O filme soa tão honesto e real que achei muito fácil ser levado pelo cotidiano do protagonista que é um dos responsáveis por limpar os banheiros públicos (de estética única) nas ruas de Tóquio. Ele é Hyraiama, vivido por Koji Yakusho (eleito melhor ator no Festival de Cannes de 2023), um senhor de poucas palavras que parece gostar bastante do seu dia a dia sem grandes acontecimentos. Ele tem algumas interações com outros personagens ao longo do filme, mas não parece ter vínculos fortes com nenhum deles, embora o roteiro coloque aqui e ali a promessa de laços afetivos que nunca avançam (talvez o mais interessante seja a pessoa misteriosa através de um registro em um papel deixado escondido em um dos banheiros em que trabalha). Sabemos que ele também gosta muito de ler e ouvir álbuns clássicos de Lou Reed, Van Morrison e Patti Smith, o que consegue tornar o filme muito agradável de se ouvir. Dirigido pelo alemão Win Wenders, Dias Perfeitos nasceu de uma ideia que girava em torno de um documentário sobre os estilosos banheiros públicos de Tóquio, mas logo ganhou corpo de um filme de ficção sobre um senhor que parece não ligar muito para a solidão. Em tempos acelerados e de redes sociais, Hyraiama não faz ideia do que é Spotify e quase surta quando seu colega de trabalho (Tokio Emoto) propõe que venda uma de suas fitas cassete (e Hyraiama tem uma vasta e apetitosa coleção). Ele parece sempre na contramão. É um filme que avança sem grandes acontecimentos, mas que ao final nos faz indagar sobre a história daquele homem e o que pode ter lhe acontecido para ter escolhido viver afastado da família e sem "grandes ambições" (e é importante ressaltar as aspas, porque, afinal de contas, quais são as ambições do protagonista? Por que as que são ambientadas seriam menores que as de outras pessoas?). Até agora não saberia dizer muito bem o motivo, mas o fato foi que o filme me deixou bastante  comovido, muito por conta da interpretação de Yakusho. Talvez em alguns momentos eu tenha lembrado de mim mesmo, de minha relação com o trabalho (que piorou muito no último ano), o gosto por ouvir música o dia inteiro e o fato de também morar sozinho distante da família (nem tão distante, são três horas de viagem). Quando o filme terminou eu só queria conhecer mais sobre aquele personagem que termina o filme quase do mesmo jeito que começou. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Dias Perfeitos tinha poucas chances de levar o prêmio para casa, mas sabe como tornar marcante a sua forma sutil de contar a história de pedaço da vida de um personagem que parece ser alguém de verdade.

Dias Perfeitos (Perfect Days / Japão - Alemanha / 2023) de Win Wenders com Koji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Min Tanaka e Reina.

PL►Y: Propriedade

Malu: as desigualdades sociais movendo a barbárie.

A estilista Tereza (Malu Galli) passou por um grande trauma após se tornar refém de um homem armado nas ruas da cidade. Diante da resolução violenta da situação, Tereza desenvolveu um trauma que impossibilita que volte a sair de casa. Sua sensação de insegurança faz com que seu esposo, Roberto (Tavinho Teixeira) blinde o carro da família para que ela se sinta mais segura para voltar a ter vida social. Ele pretende leva-la até a fazenda de sua família para passar alguns dias, mas ao chegar lá, o casal é surpreendido pela revolta dos empregados da fazenda que descobriram que a propriedade será transformada em um hotel e que, provavelmente, eles terão que arranjar um novo lugar para trabalhar.  No momento em que Roberto e seus empregados se encontram na fazenda, o caldo já entornou faz tempo e o se ele pensa que os empregados não deveriam se meter em seus negócios, existe a contraposição na ideia de que eles teriam direito a continuarem ali. Tudo poderia se resolver com uma conversa, mas aí não haveria filme, então tudo vai de um conflito sobre desigualdades sociais em um caso de barbárie. O cineasta Daniel Bandeira começa seu segundo filme de forma interessante, mas ao optar por criar uma tensão crescente entre os personagens através da violência, alguns pontos importantes se perdem pelo caminho. Tudo aqui é resolvido na força bruta, ao ponto de Tereza encontrar refúgio no carro blindado, que aos poucos ao invés de expressar segurança se torna sua prisão até o final do filme. Na tentativa de criar situações cada vez mais extremas, o roteiro revela algumas situações que não fazem sentido (como a gasolina de um carro blindado consegue ser retirada de forma tão fácil? Como a enorme fazenda tem uma internet tão boa em todos os cantos? Por que umaa família que viu que tudo aquilo daria errado, resolve deixar o filho mais novo no meio da confusão? Sem falar na personagem que ao encontrar com a protagonista prefere fazer um vídeo de celular para seus cúmplices). Se havia alguma intenção séria na trama do filme, ela se enfraquece com tantos tropeços no seu texto. Talvez a ideia do filme seja essa mesmo, que a tensão entre as pessoas faça com que todos percam a razão, até o roteirista. O que poderia ser um drama de suspense interessante sobre as diferenças sociais, se torna numa obra um tanto trash sobre um problema social sério. Bandeira não julga as atitudes de seus personagens, mas também não lhes oferece tridimensionalidade suficiente para que sejam percebidos como pessoas de carne osso. Quem consegue se sair melhor em cena é Malu Galli, mas a complexidade de sua personagem não chega a ser bem aproveitada na situação horripilante em que se meteu. No fim das contas, Propriedade parece um filhote de Bacurau (2019), que ainda que eu não considere o filme maravilhoso que muitos dizem, ainda consegue trabalhar a violência sem perder de vista suas intenções. 

Propriedade (Brasil/2023) de Daniel Bandeira com Malu Galli, Tavinho Teixeira, Anderson Cleber, Zuleika Ferreira, Sandro Guerra, Roberta Lúcia, Marcílio Moraes e Nivaldo Nascimento.

#FDS Madonna: Destino Insólito

Madonna e Giannini: parceria traumatizante.

Acho que todo o casal tem o direito de fazer uma loucura, mas é sempre bom lembrar que existem consequências. Talvez algum dia alguém consiga explicar o que se passou na cabeça de Madonna e Guy Ritchie para inventarem um remake de Por Um Destino Insólito (1974) da italiana Lina Wertmüller que é historicamente lembrada como a primeira diretora a ser indicada ao Oscar de melhor direção. O filme era uma metáfora sobre luta de classes, a relação entre ricos e pobres, patrões e empregados encaram a vida, sendo que em determinado momento a lógica é invertida por conta de um naufrágio. Wertmüller era esperta para perceber que as relações da hierarquia social em si já são carregadas de tensão, mas ao adaptar o texto, Ritchie optou por tornar tudo mais exagerado e caricato. Destino Insólito conta a história de uma dondoca endinheirada Amber (Madonna) e um empregado humilde (Adriano Gianinni, filho do ator que encarnava o papel original) que surpreendidos por uma tempestade durante um passeio de iate, se separam da tripulação indo parar numa ilha deserta. Na tal ilha, o empregado demonstra ter as habilidades necessárias para que os dois sobrevivam àquela desventura e, obviamente que se imagina que os dois irão viver um romance. Se existem as mesmas tintas de crítica social na refilmagem, ao carregar demais as tintas, Guy cria um grande problema para estabelecer uma química entre os protagonistas (some isso ao desconforto de Adriano ter que interagir com a esposa do diretor nas cenas de amor e ódio e você entenderá ainda mais porque as coisas complicam). Também não ajuda o fato de Amber ser apresentada ao público como uma megera sem salvação - e Madonna torna a mulher insuportável, mas o que poderia ser um mérito se torna um problema quando a interpretação precisa lidar com a transição da personagem de mulher intragável em mulher apaixonada. Difícil. Nesta transição o filme começa a perder ainda mais o foco e depende cada vez mais da dinâmica entre os personagens para manter o interesse do público. O que era para ser um comédia com tintas de crítica social se torna num romance pouco convincente até naufragar (sem trocadilho) no melodrama. A dupla principal se esforça, mas não há muito o que fazer diante da base equivocada do projeto. Madonna e Guy casaram em 2000 e tiveram um filho (Rocco) e já haviam estabelecido parcerias anteriormente, seja em um comercial da BMW ou no clipe de What it Feels like for a Girl que possuem uma vibe parecida com os trabalhos anteriores do cineasta. Quem conhece a carreira de Guy (ele vinha de um sucesso mundial com Snatch/2000) sabe como Destino Insólito destoa completamente de seu estilo, talvez por isso Madonna tenha assumido a responsabilidade sobre o projeto. Ela estava animada depois dos elogios por Evita/1997 e o relativo sucesso de seu filme anterior, Sobrou Para Você (2000). Destino Insólito custou dez milhões de dólares e arrecadou pouco mais de um milhão ao redor do mundo, desagradando público, crítica e a própria Madonna. Ela ficou tão aborrecida com o massacre em torno do filme que anunciou que jamais atuaria novamente. Em seus recentes trabalhos com o cinema, a artista escolheu ficar atrás das câmeras, trabalhando como cineasta nos filmes Sujos e Sábios (2008) e W/E (2011). Por conta de todas as críticas exageradas que recebeu por seus trabalhos no cinema, a artista chegou a declarar que sofreu bullying por parte da imprensa (basta lembrar do Framboesa de Ouro de Pior atriz do século). Madonna e Guy se divorciaram em novembro de 2008. 

Destino Insólito (Reino Unido / Itália - 2002) de Guy Ritchie com Madonna, Adriano Giannini, Bruce Greenwood, Elizabeth Banks, Jeanne Triplehorn, David Thornton e Yorgo Voyagis. 

sábado, 27 de abril de 2024

#FDS Madonna: Evita

Banderas e Madonna: polêmica adaptação de uma opera rock.   
 
Fazia quase dez anos que Madonna havia começado seus trabalhos no cinema e, tirando os elogios que havia recebido por seus trabalhos em Dick Tracy (1990) e Uma Equipe Muito Especial (1992), no saldo de seus trabalhos como atriz havia mais críticas do que sucessos. A sua não indicação nas premiações também a deixou desapontada, para ter ideia a vez em que ela chegou mais perto do Oscar foi quando Sooner or Later da trilha sonora de Dick Tracy foi premiada como melhor canção original. A apresentação na cerimônia do Oscar rendeu um dos momentos mais icônicos da carreira da rainha do pop e até hoje surpreende muita gente pela destreza vocal que apresenta. No entanto, logo depois, Madonna chegou ao auge da polêmica. Em 1992, ela havia lançado um livro (o famigerado SEX) e um álbum baseado em suas fantasias sexuais (Erotica). Houve também um filme (Corpo em Evidência/1993) que foi massacrado pela crítica em que Madonna vivia uma mulher que havia matado o marido rico por excesso de sexo. A rejeição do público foi grande e a loura precisava reciclar sua imagem, começou a fazer músicas mais românticas e no cinema fez participações especiais em produções independentes, enquanto seu papel dos sonhos não aparecia: viver Eva Perón no cinema. Quando o diretor Alan Parker começou a tocar o projeto, Madonna fez de tudo para conseguir o papel, mas reza a lenda que bancou o clipe da música Take a Bow (do álbum Bed Time Stories de 1994) para convencer o cineasta de que era a escolha certa para o  papel. Levando em conta que o filme era na verdade uma adaptação de uma opera rock da Broadway, a escolha de uma cantora que parecia fisicamente com a icônica figura política argentina não soava tão absurda (ainda mais depois que Meryl Streep e Michelle Pfeiffer desistiram do papel). Madonna foi escolhida e fez tudo conforme manda o figurino. Ficou comportada, ganhou alguns quilos para o papel, fez aulas de canto para dar conta da árdua exigência vocal da produção que desde o início sabia que seria uma cantoria infinita. Fazer um musical quando o gênero estava em baixa em Hollywood era um risco e o barulho era ainda maior levando em conta todos os protestos dos peronistas argentinos de verem uma figura histórica santificada vivida por uma artista com o histórico de Madonna. Alan Parker parecia não se intimidar. O diretor já tinha obras importantes no currículo, inclusive musicais cultuados como The Wall (1982) e The Commitments (1991), além de duas indicações ao Oscar (uma por O Expresso da Meia-Noite/1978 e outra por Mississipi em Chamas/1988), ou seja, Madonna estava em ótimas mãos. Vale destacar que a produção do filme é impecável, mas o problema está que a peça escrita por Tim Rice é feita para os palcos e não para uma aula de História, não tendo pudores em ter algumas imprecisões (como colocar Che Guevara, vivido por Antonio Banderas, como uma figura próxima da protagonista). O longa conta a história da mulher de origem humilde, filha bastarda de um agricultor que parte para a cidade e chama atenção de Juan Perón (vivido pelo inglês Jonathan Pryce) prestes a se tornar um cultuado político no país. O filme explora bem a construção de um mito ao redor da personagem, que tinha grande apelo entre a população mais pobre do país e que potencializava o apelo populista do marido. O filme se esquiva de discussões sobre a índole do casal (que ostentava uma vida luxuosa em um país pobre), mas aborda um pouco da tensão política que os países latino-americanos viviam no período. Se historicamente a produção tem seus problemas, como filme ele funciona muito bem se você não se incomodar com personagens que cantam o tempo inteiro. Sim, é artificial e a ideia é essa mesmo, o que não impede de ter alguns momentos memoráveis como I'd Be Surprisingly Good for You e da clássica Don't Cry For Me Argentina que se converteu em hit no repertório da cantora). Entre o elenco, Madonna é realmente o grande destaque com uma presença luminosa que é lembrada como sua melhor performance como atriz. Ela foi cotada para o Oscar, mas teve que se contentar com o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Comédia ou Musical (que ironicamente, recebeu ao derrotar a futura ganhadora do Oscar de melhor atriz daquele ano: Frances McDormand por Fargo). Por suas qualidade, Evita apareceu em algumas listas de melhores filmes de 1996 e foi indicado em cinco categorias do Oscar: fotografia, cenografia, montagem, som e ganhou a categoria de melhor canção original com You Must Love Me, que rendeu a primeira apresentação de Madonna após dar a luz à sua primogênita, Lourdes Maria. Confesso que sempre achei melancólico ver Madonna se visivelmente tensa para dar conta de cantar "Você Precisa me Amar" quando sua maior chance de indicação ao Oscar não se concretizou. 

Evita (EUA/1997) de Alan Parker com Madonna, Jonathan Pryce, Antonio Banderas, Jimmy Nail, Olga Merediz, Laura Pallas, Gary Brooker e Adrià Collado.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

#FDS Madonna: Procura-se Susan Desesperadamente

Rosana e Madonna: a cara dos anos 1980.

Aproveitando a chegada de Madonna em terras brasileiras na próxima semana para seu show da Celebration Tour, aproveito para fazer um #FimDeSemana dedicado à sua controversa carreira no cinema. Reza a lenda que quando Madonna Louise Ciccone partiu da cidade de Detroit para Nova York com 20 anos e apenas 35 dólares no bolso, a então estudante de dança sonhava em se tornar atriz. Ela havia feito um curta (The Egg/1974) e um longa obscuro (Um Certo Sacrifício/1979), mas ela queria mais. Acontece que conforme absorvia o universo da música enquanto trabalhava como dançarina, ela acabou seguindo por um outro caminho. Com o primeiro álbum lançado em 1983 e o segundo no ano seguinte, Madonna sabia muito bem como chamar atenção não apenas com suas músicas provocativas. Com shows, vídeos e apresentações precisas, sua imagem logo chamou atenção do cinema. Ela fez uma pequena participação em Em Busca da Vitória (1985) cantando o hit Crazy for You, mas foi a diretora Susan Seidelman que lhe rendeu o primeiro papel de destaque em Hollywood. Seidelman acabava de alcançar algum reconhecimento com sua estreia no indie Smithereens (1982) e estava disposta a trazer alguma novidade quando produzia Procura-se Susan Desesperadamente. A história girava em torno de Roberta (Rosana Arquette), uma dona de casa insatisfeita que faz tempo que não vê sentido em sua rotina com o marido (Gary Blum), para escapar de seu cotidiano pouco inspirador, ela acompanha começa a acompanhar os classificados de um jornal em que Jim (o galã sumido Aidan Quinn) que publica anúncios procurando sua amada, a descolada Susan (Madonna). Roberta fica obcecada por aquela história e acaba procurando descobrir o desfecho que o encontro entre os dois possa ter. Só que nem tudo sai como o esperado e uma troca de jaquetas misturado  com uma amnésia em Roberta irá render uma série de situações imprevisíveis, já que ela passa a ser confundida com Susan que descobrimos ser perseguida por um grupo de bandidos. Ela passa a contar então com a ajuda de Jim, enquanto Susan não está nem aí para o moço e tem mais coisas para se preocupar do que encontrar o amor de sua vida. O tom de comédia romântica se desenvolve como um típico filme de aventura urbana dos anos 1980, embalado pelo hit Into the Groove de Madonna e ajudou a impulsionar a carreira de muita gente como John Turturro, Laurie Metcalf e Giancarlo Esposito. Quando foi lançado o filme foi acolhido pelo público, mas não convenceu a crítica. Recentemente o filme passou por uma revisão, que não apenas o percebe como um retrato convincente do da estética urbana de seu tempo além de outros méritos até então pouco destacados, especialmente na justaposição de suas duas personagens como reflexo de uma realidade feminina que passava por transformações, seja pela insatisfação domiciliar de Roberta ou a total falta de interesse de Susan em se render ao mocinho da trama. Ainda que não fosse muito levado a sério na época, o César (o Oscar francês) indicou o longa ao prêmio de Filme Estrangeiro (ao lado de Ran de Kurosawa e o ganhador A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen). Rosanna Arquette foi premiada no BAFTA na categoria de atriz coadjuvante e indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz de comédia ou musical, mas... e Madonna? Bem, como a futura Rainha do Pop interpreta uma variável de si mesma, ela acabou chamando menos atenção nas premiações que sua colega de elenco. No entanto, recebeu alguns elogios pela performance que foi considerada promissora. O principal foi que ela ajudou o filme a se tornar um sucesso de público que estava curioso em vê-la na tela grande. Curiosamente, o filme indicou algo que se reproduziu na vida real com muitas mulheres sendo influenciadas por sua imagem de mulher independente e sexualmente bem resolvida. Ainda que Madonna não pareça fazer muito esforço em cena (motivo que dizem ter rendido conflitos entre ela e Rosana), o fato é que Seidelman percebeu na jovem cantora a energia necessária para se tornar uma influência sobre seu tempo.

Procura-se Susan Desesperadamente (Desesperately Seeking Susan / EUA - 1985) de Susan Seidelman com Madonna, Rosana Arquette, Aidan Quinn, John Turturro e Gary Blum.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

PL►Y: Suzume

Suzume: por trás dos terremotos japoneses.
 
O anime japonês Suzume de Makoto Shinkai teve uma torcida absurda para cravar uma indicação ao Oscar de melhor animação em 2023. Embora fosse um dos mais premiados do gênero daquele ano e conquistado uma indicação ao Globo de Ouro de animação, o filme acabou ficando de fora das cinco vagas na disputa. Os fãs ficaram indignados, mas a ausência entre os indicados não diminui em nada os méritos do filme que agora pode ser visto na Netflix. Shinkai é um dos nomes mais interessantes das animações japonesas, ele estreou em 2004 com O Lugar Prometido de Nossa Juventude, mas começou a chamar atenção com Viagem para Agartha (2011) e ganhou fama com Seu Nome (2016). Se todo cuidado com estética visual de suas histórias já chamava atenção, aqui ela atinge seu auge. Em Suzume o detalhamento dos traços e o uso das cores é realizado de forma a cair o queixo do espectador, mas o diretor não deixa de lado os momentos de ação e o bom humor que se faz muito presente durante todo o filme. Suzume é uma menina de 17 anos que conhece um  rapaz misterioso. Ela não faz ideia que ele é guardião de portais que quando abertos podem provocar grande destruição em nosso mundo. Acontece que ela acaba atrapalhando a missão do mocinho e passa o resto do filme tentando consertar a confusão que desencadeou. Acho que é o tipo de filme que se contar mais do que isso perde a graça por estragar as surpresas que o filme reserva. Basta dizer que no meio da relação entre os portais e os terremotos (estes fenômenos naturais que sempre assombram o Japão) existe ainda um gato falante e uma cadeira "viva" de três pernas que servirá de companhia para a protagonista. Existem muitos elementos de fantasia e aventura em Suzume, mas o que prende mesmo a atenção é como o roteiro consegue entrelaçar a realidade dos espaços abandonados por conta dos terremotos com elementos de fantasia ao longo de toda a história. Além disso, a forma como a história da própria Suzume se mistura com estas ocasiões cria um suporte emocional bastante eficiente ao longo da trama. O filme tem um visual deslumbrante, cenas de tirar o fôlego e demonstra como Shinkai está disposto a se tornar uma referência do gênero. Recentemente em entrevistas, o cineasta disse o quanto se incomoda ao sempre ser comparado com o mestre Hayao Miazaki, assistindo Suzume as referências são visíveis, mas Shinkai demonstra talento para ter voz própria faz tempo.
 
Suzume (Japão/2022) de Makoto Shinkai com vozes de Nanoka Hara, Houto Matsumara, Eri Fukatsu, Sairi Itô e Kotone Hanase.

domingo, 14 de abril de 2024

PL►Y: Viver

Bill: pensando sobre a vida que resta.

Bill Nighy é um rosto bastante conhecido dos cinéfilos. Com 74 anos de vida e mais de quatro décadas de carreira, o ator inglês já participou de inúmeras produções para teatro, cinema e televisão. Apesar de ser mais conhecido por seus trabalhos em comédias, Bill tem uma cota de personagens sérios respeitáveis, mas que o Oscar parecia não dava muita bola até que em 2022 ele atuou neste filme de Oliver Hermanus. Viver conta a história de Sr. Rodney Williams (Nighy), burocrata de Londres que chefia um grupo de funcionários que são responsáveis por obras na cidade. Sisudo e fleumático, Williams não é muito aberto a intimidades com seus colegas e parece aquele tipo de pessoa que passou todo o tempo agarrado em seus compromissos - enquanto a vida passava junto aos ponteiros do relógio sem que ele se desse conta. Sua rotina rígida é quebrada quando ele descobre que possui câncer e alguns meses de vida. Naquele momento ele percebe que a vida não poderia ser só aquilo que fez até ali e deseja fazer algo diferente no tempo que lhe resta. O roteiro segue então pelo caminho mais óbvio, que é inserir o personagem por noitadas, com mulheres, bebidas e gastos que não caberiam na vida de um sujeito tão regrado. A diferença é que mesmo nesses momentos, Sr. Williams não parece encontrar satisfação, deixando que algo mais se revele em momentos mais intimistas, como aquele em que toma coragem para bancar um projeto que há muito tempo é barrado no trabalho ou nos momentos em que passa a se encontrar com uma jovem colega de trabalho, a senhorita Margaret Harris (Aimee Lou Wood), momentos em que a suspeita de um romance tardio ganha menos espaço do que a sensação de tempo perdido ao longo da vida. São nos detalhes que a atuação de Bill Nighy se revela merecedora de espaço entre os indicados ao Oscar de melhor ator de 2023, seu trabalho é sutil, preciso e consegue transparecer a sensação de quem está no fim da vida e não há muito mais o que se fazer além de aproveitar o tempo que resta. O filme só me parece curto demais para dar conta das nuances do personagem junto aos outros que o cerca, isso acontece tanto com Margaret quanto com o novato Peter (Alex Sharp), que parece ser o dono do olhar sobre o protagonista oferecido pela produção. Viver é na verdade uma adaptação da adaptação, já que é baseado em Ikiru (1952) de Akira Korosawa que é pautado pela obra A Morte de Ivan Ilich de Tolstói. O texto aqui ficou por conta do romancista Kazuo Ishiguro, que é craque em sutilezas e transporta o dilema do protagonista num encaixe perfeito para a realidade britânica. Mesmo que você não a considere uma produção empolgante, Viver deixará a sensação de uma reflexão sobre a forma que encaramos a vida ao indagar se entre nosso compromissos cotidianos estamos realmente a viver.

Viver (Living / Reino Unido - Japão - Suécia / 2022) de Oliver Hermanus com Bill Nighy, Alex Sharp, Aimee Lou Wood, Michael Cochrane, Zoe Boyle, Hubert Burton e Oliver Chris. 

sexta-feira, 12 de abril de 2024

4EVER: Eleanor Coppola

04 de maio de 1936 12 de abril de 2024
 
Eleanor Jessie Neil nasceu em Los Angeles na Califórnia, filha de um cartunista que faleceu quando ela tinha apenas dez anos de idade. A mãe, Delphine, ficou então responsável por criar os três filhos sozinha. Eleanor se formou como design na UCLA e quando trabalhava em um set de filmagem no início dos anos 1960, conheceu o futuro esposo, Francis Ford Coppola, com quem se casou em 1963 e teve três filhos, Cian Carlo, Roman e Sophia. Eleanor dirigiu apenas seis filmes ao longo de sua carreira, mas era presença constante nas produções do clã mais cinematográfico de Hollywood. Foi seu olhar sobre as filmagens que renderam seu aclamado filme de estreia, "O Apocalipse de um Cineasta" (1991), o marcante documentário sobre o estafante processo de filmagem da obra-prima "Apocalipse Now" (1979), que quase levou Francis Ford Coppola à loucura. Em 2016, Eleanor dirigiu seu primeiro longa de ficção (Paris Não pode Esperar) e em 2020 lançou Todas as Formas de Amor, que se tornou sua última obra. A cineasta faleceu em sua residência e a causa da morte não foi divulgada. 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

FESTIVAL DE CANNES 2024

Motel Destino: filme brasileiro disputa a Palma de Ouro.
 
Depois de ver o ganhador da Palma de Ouro e do Grande Prêmio do Júri, respectivamente Anatomia de Uma Queda e Zona de Interesse, chegarem com força no Oscar2024, o Festival de Cannes confirma cada vez mais sua influência no que será pauta no universo cinematográfico nos próximos meses. Não faltam obras aguardadas de diretores renomados que atiçam a curiosidade do público. Vários queridos do Festival estão de volta, com direito até a um filme brasileiro de Karim Aïnouz entre os concorrentes à Palma de Ouro. Karim tem uma relação muito próxima com o Festival, já que foi lá que exibiu pela primeira vez seu longa de estreia, Madame Satã (2002) e desde então participou outras quatro vezes do Festival, em uma delas foi premiado na mostra Un Certain Regard com A Vida Invisível (2019). A seguir todos os filmes confirmados no Festival que acontecerá entre os dias 14 e 25 de maio:
 
    Filme de Abertura
    The Second Act (Quentin Dupieux)
 
    Competição
    All We Imagine as Light (Payal Kapadia)
    Anora (Sean Baker)
    Bird (Andrea Arnold)
   Feng Liu Yi Dai (Jia Zhang-Ke)
    Emilia Perez (Jacques Audiard)
    Grand Tour (Miguel Gomes)
    Kinds of Kindness (Yorgos Lanthimos)
    L’Amour Ouf (Gilles Lellouche)
    Limonov: The Ballad (Kirill Serebrennikov)
    Marcello Mio (Christophe Honore)
    Megalopolis (Francis Ford Coppola)
    Motel Destino (Karim Ainouz)
    Oh Canada (Paul Schrader)
    Parthenope (Paolo Sorrentino)
    The Apprentice (Ali Abbasi)
    The Girl With the Needle (Magnus von Horn)
    The Shrouds (David Cronenberg)
    The Substance (Coralie Fargeat)
Diamant Brut (Agathe Riedinger)
 
   Um Certain Regard
    Armand (Halfdan Ullman Tondel)
Gou Zhen (Guan Hu)
Les Damnes (Roberto Minervini)
    L’Histoire de Souleymane (Boris Lojkine)
    Le Royaume (Julien Colonna)
Boku No Ohisama (Hiroshi Okuyama)
    Norah (Tawfik Alzaidi)
    On Becoming a Guinea Fowl (Rungano Nyoni)
    Santosh (Sandhya Suri)
    September Says (Ariane Labed)
    The Shameless (Konstantin Bojanov)
    Viet and Nam (Truong Minh Quy)
    The Village Next to Paradise (Mo Harawe)
    Vingt Dieux! (Louise Courvoisier)
    Who Let the Dog Bite? (Laetitia Dosch)
 
Fora de Competição
    Furiosa: Uma Saga Mad Max (George Miller)
    Horizon: An American Saga (Kevin Costner)
    Rumours (Evan Johnson, Galen Johnson, Guy Maddin)
    She’s Got No Name (Chan Peter Ho-Sun)
 
Cannes Premiere
    C’est Pas Moi (Leos Carax)
    En Fanfare / The Matching Bang (Emmanuel Courcol)
    Everybody Loves Touda (Nabil Ayouch)
    Le Roman de Jim (Arnaud Larrieu, Jean-Marie Larrieu)
    Miséricorde (Alain Guiraudie)
    Rendez-Vous Avec Pol Pot (Rithy Panh)
 
Sessões da Meia-Noite
    I, the Executioner (Seung Wan Ryoo)
    Les Femmes au Balcon (Noemie Merlant)
    The Surfer (Lorcan Finnegan)   
 Twilight of the Warrior Walled In (Soi Cheang)

Exibições Especiais
    Apprendere (Claire Simon)
    Le Fil (Daniel Auteuil)
    Ernest Cole, Lost and Found (Raoul Peck)
    The Invasion (Sergei Loznitsa)
    La Belle de Gaza (Yolande Zauberman)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Pódio: Andrew Scott

Bronze: o vilão doido.    

3º Sherlock (2010-2017) Nascido em Dublin na Irlanda em 1976, Andrew Scott começou a atuar no teatro até começar sua carreira no cinema em 1995. Apesar de ter participado de muitas produções para televisão e para a tela grande, o grande público parece ter reparado nele somente quando viveu o vilão Moriarty na cultuada série protagonizada por Benedict Cumberbatch que trazia os personagens de Arthur Conan Doyle para os dias atuais. Na pele do grande inimigo do detetive, o ator carrega nos exageros para criar um personagem estranho mas de inteligência inquestionável em suas armações contra o genial protagonista. Pelo papel ganhou o BAFTA de coadjuvante em 2012.

Prata: o grande enganador.   

Ripley (2024) Tive que resistir muito para não colocar o trabalho do ator na série da Netflix no lugar mais alto do pódio. Acho magnífica a forma como o ator desenvolve o personagem antológico de Patricia Highsmith nos detalhes de sua atuação. Um leve movimento de sobrancelha, um pequeno esboço de sorriso ou até mesmo aquele olhar fixo de quem está estudando seu interlocutor para saber exatamente o que deve ser feito e dito. É um trabalho tão bom que merece aparecer em outras temporadas que explorem as desventuras seguintes de Tom Ripley e sua escalada amoral de golpes, falsificações e enganações variadas. O moço merece todos os prêmios da temporada. Imperdível. 

Ouro: o padre gato.   
Fleabag (2016-2019) O famoso "padre gato" da série de Phoebe Waller-Bridge quase perdeu a medalha de ouro, mas acho que por um bom tempo, sempre que eu pensar em Andrew Scott, irei lembrar de vários de seus momentos espirituosos na pele do padre que se torna alvo dos desejos mais impróprios da protagonista. Mais do que um ótimo trabalho do ator, a série consegue aproveitar ao máximo a química entre Andrew e Phoebe e constrói uma dinâmica irresistível entre os dois personagens. O resultado: a segunda temporada recebeu muito mais atenção que a primeira e fez com que muita gente implorasse por uma terceira temporada que nunca foi prometida. O personagem lhe rendeu duas indicações ao SAG Awards.

NªTV: Ripley

Andrew: Tom Ripley de respeito.

Em 2024, o ator irlandês Andrew Scott esteve cotado para receber sua primeira indicação ao Oscar pelo filme indie Todos Nós Estranhos, mas apesar de ter colhido indicações ao Gotham Awards e ao Globo de Ouro, não foi dessa fez que o ator caiu nas graças da Academia. Na verdade, apesar de Andrew ter dezenas de papéis no cinema, a impressão é que Hollywood ainda não sabe o que fazer com ele. Será que é por conta do rapaz ter assumido sua homossexualidade em 2013? Se for por conta disso, Hollywood é que sai perdendo. Não apenas pelo preconceito, mas principalmente por perder a chance de ter um baita ator no alto dos créditos. A sorte é que enquanto o cinema não lhe dá a devida atenção, ele coleciona bons papeis na televisão. A última  grande conquista do ator foi ser escolhido para viver o antológico Tom Ripley na minissérie Ripley da Netflix (que se tudo der certo, deverá render novas temporadas. Oremos!). Tom é o personagem mais famoso da escritora Patricia Highsmith (1921-1995), que rendeu cinco obras cultuadas e que já foram levadas ao cinema algumas vezes, mas sem a configuração de uma franquia cinematográfica. O público deve lembrar da versão de O Talentoso Ripley (1999) de Anthony Minghella em que Matt Damon viveu o personagem, um filme que aprecio muito, mas sei que trai as origens de seu personagem amoral.  Nesta versão da Netflix. Ripley surge em sua essência, um americano que vive de pequenos golpes, mas que tem a grande chance de mudar de vida quando um milionário pede a ele que vá até a Itália convencer que o filho volte para casa. O filho em questão é Richard Greenleef (Johnny Flynn), o herdeiro que foi curtir a vida na Itália enquanto tenta se tornar um artista. No entanto, o que sobra de dinheiro para manter a vida de Richard, ou melhor, Dickie, falta em talento. Ele passa os dias ao lado da namorada Marge (Dakota Fanning) e não faz a mínima ideia de quem é aquele homem que diz conhecê-lo dos tempos de escola. Talvez não conheça mesmo, já que ambos habitam esferas totalmente diferentes. O fato é que enquanto Ripley convive com Richard, começa a desejar aquela vida, ou talvez mais, começa a desejar ser o próprio Dickie. Começa então uma sucessão de situações nem tão planejadas que mudarão a vida dos personagens para sempre, especialmente de Tom que se supera a cada passo para conseguir o que quer. Andrew Scott está estupendo na pele de um personagem desprovido de qualquer senso moral ou culpa, mas dotado de uma engenhosidade impressionante para mentir e enganar quem cruze o seu caminho. Mesmo quando tudo se complica, a impressão é que ele sempre saberá o que fazer para se safar. A adaptação da obra por Steven Zaillian se afasta o máximo possível da adaptação feita por Minghella e acerta ao utilizar o formato de minissérie para ser ainda mais meticulosa ao desbravar as entranhas do personagem. Colabora muito na construção da identidade da produção a magnífica fotografia em preto e branco, que pinta cada cena como um quadro de homenagem ao cinema noir. O jogo de luzes e sombras é impressionante, seja nas cenas internas ou externas, construindo de um espetáculo que merece se repetir em novas temporadas (por favor, Netflix!). Adoraria ver o personagem ser aproveitado com tamanho esmero à obra de Highsmith em novos episódios, além disso, ver Andrew arrasador em um personagem tão complexo é um deleite para os sentidos. Forte candidata à minha série favorita do ano. 

Ripley (EUA / 2024) de Steven Zailian com Andrew Scott, Johnny Flynn, Dakota Fanning, Kenneth Lonergan, Margherita Buy, Eliot Summer e Maurizio Lombardi.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Na Tela: O Homem dos Sonhos

Cage: o verdadeiro Freddy Krueger?
Paul Matthews (Nicolas Cage) é um professor de biologia em uma Universidade não muito famosa, mas Paul também não é. Embora planeje lançar um livro, ele é um daqueles sujeitos que ninguém nunca lembra direito e que não recebe muito crédito. Por isso mesmo, torna-se surpreendente que este homem comum comece a aparecer no sonho de um bando de gente. Pessoas que o conhecem e outras que não fazem a mínima ideia de quem ele seja. Casado com Janet (Julianne Nicholson) e pai de duas adolescentes, Sophie (Lily Bird) e Hannah (Jessica Clement), sua vida continuaria a ser muito tranquila se aos poucos o estranho acontecimento não chamasse a atenção da mídia. Vale dizer que mesmo nos sonhos, Paul não faz nada de especial, surge observando os acontecimentos ou apenas seguindo seu caminho. Mesmo que não tenha controle sobre isso, uma empresa chega a cogitar que ele pudesse fazer propaganda enquanto aparece no sonho dos outros, embora ninguém faça a mínima ideia de como executar uma coisa dessas. O maior problema é que após ganhar fama, Paul começa a mudar sua postura nos sonhos alheios, apresentando uma postura violenta e agressiva que faz com que as pessoas comecem a evitá-lo na vida real por conta dos pesadelos. Paul não entende o motivo de começar a ser repreendido pelo que as pessoas sonham e revoltado com o que acontece, as coisas só pioram. O Homem dos Sonhos é uma deliciosa sandice nascida da mente do norueguês Kristoffer Borgli que já havia chamado atenção com outra sandice, Doente de Mim Mesma (2022). Embora os filmes abordem uma sociedade fascinada por "famosos", Paul é o total oposto da desvairada personagem do filme anterior e a trama segue pelo caminho contrário,  construindo uma analogia muito interessante sobre a cultura do cancelamento, especialmente com base nas interpretações que o imaginário social constrói sobre alguém (troque sonhos por redes sociais, ou vice-versa, e fica ainda mais interessante). Borgli é um sujeito esperto e sabe equilibrar o humor bizarro de sua trama com a dose certa de dramaticidade da fantasia que constrói. Da mesma forma, sabe transitar entre sonhos e pesadelos com uma desenvoltura invejável, em determinados momentos até flerta com o terror (sem perder de vista a ideia de que Paul poderia ser o Freddy Krueger da vida real). Conforme todo mundo entra em crise, Paul segue pelo mesmo caminho e o papel cai como uma luva (com ou sem laminas cortantes) em Nicolas Cage (indicado ao Globo de Ouro de melhor ator de comédia pelo papel) que tem aqui mais um trabalho interessante em sua nova fase. Ainda que o filme tenha um final aquém do esperado, o longa bem que merecia uma indicação ao Oscar de roteiro original (difícil engolir que Maestro merecia mais), mas algo me diz que em breve a criatividade de Kristoffer Borgli chamará atenção dos votantes da Academia, ou estou sonhando demais?

O Homem dos Sonhos (Dream Scenario / EUA -2023) de Kristoffer Borgli com Nicolas Cage, Julianne Nicholson, Dylan Baker, Marc Coppola, Sophie Matthews, Jessica Clement, Tim Meadows, Paula Boudreau, Kaleb Horn e Michael Cera.

KLÁSSIQO: O Franco Atirador

Meryl e De Niro: as cicatrizes do Vietnã.

Mais interessante do que lembrar que filme ganhou o Oscar de melhor filme em determinado ano e ver quem estava na disputa ao seu lado. Em 1979 os indicados eram Amargo Regresso, O Céu Pode Esperar, O Expresso da Meia-Noite, Uma Mulher Descasada e o prêmio foi para O Franco Atirador de Michael Cimino. Muita gente imaginava que Amargo Regresso de Hal Ashby levaria o grande prêmio da noite, especialmente depois que ao longo da entrega dos prêmios havia recebido o de roteiro original, ator e atriz. O Franco Atirador já havia levado duas categorias técnicas (som e edição) além da estatueta de melhor ator coadjuvante, para Christopher Walken por interpretar o personagem mais memorável do filme, quando o longa levou o prêmio de melhor direção era certa sua vitória na categoria principal. Por algum tempo ouvi muita gente acusando o filme de ser um melodrama de guerra e quando fiquei sabendo de sua duração (três horas) fiquei bastante receoso de assistir. Com o tempo o filme passou a ser reconhecido como um marco nos filme de guerra, um dos exemplos de um novo gênero: filme antiguerra. Assim, se firmou cada vez mais como um clássico do gênero, abaixo somente de Apocalipse Now que foi lançado no ano seguinte. Cimino tinha apenas um filme no currículo quando embarcou neste projeto ambicioso que conta a história de um trio de amigos da Pensilvânia que são enviados para a Guerra do Vietnã. Mas ao invés de se concentrar somente na realidade da guerra, o filme prefere expandir esta marca em quatro atos distintos. No primeiro conhecemos a realidade daqueles amigos, cheios de planos e um tanto inconsequentes. Esta parte se concentra no dia do casamento de um deles, Steven (John Savage), mas o destaque fica por conta de Michael (Robert DeNiro) e Nick (Christopher Walken), que são os melhores amigos do grupo. Nick é apaixonado por Linda (Meryl Streep) que precisa lidar com o pai abusivo. O grupo de amigos se completa com Stan (John Cazale), John (George Dzundza) e Axel (Chuck Aspergen), o trio que não foi convocado para ir à guerra. Nesta parte o roteiro apresenta os personagens sem pressa, mas com um tom vibrante, alegre e apesar do clima de que o melhor está por vir, paira sobre Steven, Michael e Nick a ida para a guerra. No segundo ato, os horrores da guerra são apresentados com a intensidade necessária para mudar o trio de personagens para sempre, sobretudo quando se tornam prisioneiros e se tornam alvo de torturas psicológicas envolvendo a prática de roleta russa (algo que se tornou marca do filme). No ato seguinte, Michael tenta  voltar a ser ele mesmo após tudo o que viveu, até que precisa cumprir com uma promessa do passado que o leva de volta ao Vietnã no último ato do filme. A proposta é uma verdadeira odisseia que mergulha em traumas de guerra e seu efeito num micro-universo que retrata bastante o fantasma que pairou sobre a sociedade americana por várias décadas. O efeito devastador daquelas histórias são ainda mais valorizadas pelas interpretações de Savage, Walken e DeNiro. Eles dão conta de transições impressionantes em seus personagens, sobretudo Walken que de um charmoso rapaz (tente resistir às cenas do moço enamorado por Streep, especialmente nas cenas em que ele dança - e Walken foi realmente dançarino) se torna uma espécie de zumbi com olhos vazios. DeNiro demonstra aqui mais uma vez a intensidade que o tornou um dos maiores astros de Hollywood, oscilando entre uma aparência de galã e o total descontrole. Não por acaso ele conseguiu sua terceira indicação ao Oscar. Meryl Streep foi indicada ao Oscar pela primeira vez por um papel pequeno, mas que ela soube ampliar muito bem entre os amigos sobreviventes. Quem não se deu muito bem foi o diretor Cimino, que torrou uma fortuna em seu filme seguinte e gerou um fiasco. O Portal do Paraíso (1980) fez os produtores repensarem a autonomia de diretores consagrados com orçamentos inchados e o resto você já sabe. Cimino acabou dirigindo somente outros cinco filmes ao longo de sua carreira até seu falecimento em 2016. O Franco-Atirador é sua obra-prima e o coloca entre os grandes nomes do que era conhecido como a geração da nova Hollywood.

O Franco Atirador (The Deer Hunter / EUA - 1978) de Michael Cimino com Robert De Niro, Christopher Walken, John Savage, Meryl Streep e John Cazale. 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

PL►Y: Reality

Sydney: atuação de respeito.

Reality Winner era uma tradutora contratada pelo governo dos Estados Unidos que se tornou responsável por um dos vazamentos de informações confidenciais mais escandalosos da história do país. Ela foi presa por cinco anos e muitos questionaram que sua ação tenha chamado mais atenção do que o fato que ela havia tornado público. A situação chamou atenção da mídia e ao que parece a transcrição do seu interrogatório pelo FBI se tornou público. A dramaturga Tina Satter transformou o interrogatório em peça de teatro e ano passado fez um filme que leva aqueles diálogos na íntegra para a tela do cinema. O filme foi exibido no Festival de Berlim em 2023, recebendo muitos elogios pela atmosfera tensa ao longo de uma hora e vinte de narrativa e a interpretação contundente de Sydney Sweeney como protagonista. Este é o filme de estreia de Satter e ela merece atenção por fazer aquele tipo de filme que é bastante complicado de acertar: uma única locação, poucos atores e ação através de diálogos. Ela não usa muitos outros artifícios para contar essa história, mas ancorada nas atuações e nos diálogos, ela constrói uma pequena joia de tensão cinematográfica. Quando conhecemos Reality em seu contato com o FBI ficamos imaginando que ela seria incapaz de ter cometido um crime. Sua preocupação constante com seus animais de estimação, a forma polida como controla o stresse e a naturalidade com que conta suas atividades nos fazem até imaginar que tudo não passa de um engano. Satter sabe exatamente a hora de revelar o que precisa ser dito e fico imaginando o filme se construindo em sua mente quando leu a transcrição do interrogatório. De ponto em ponto, ela captura o espectador para aquela tensão e por vezes torna difícil até piscar no meio das conversas com o FBI. Muito dessa atmosfera precisa se deve à forma como Sydney Sweeney (que ficou famosa com a série Euphoria da HBO e se tornou uma das atrizes mais badaladas da atualidade) encarna a personagem. A forma como sua espontaneidade aos poucos se torna calculada  até que seu controle desmorone perante a acusação que recai sobre ela demonstra um domínio impressionante da personagem, um trabalho de primeira grandeza que revela o quanto ela merece papeis interessantes no futuro. Para além dos méritos de fazer tanto com tão pouco recurso, Reality ainda provoca uma interrogação na mente do espectador sobre o mundo em que vivemos, um mundo repleto de informação, mas que esconde segredos que sequer imaginamos. Na era da pós-verdade e de propagação de fake news, fica a impressão que o conhecimento da realidade pode custar mais caro  do que se imagina. O filme está disponível atualmente na MUBI e merece ser conferido. 

Reality (EUA-2023) de Tina Satter com Sydney Sweeney, Josh Hamilton, Marchánt Davis, Benny Edledge e John Way.

NªTV: O Regime

Kate e Matthias: atração carnal em meio à crise. 

Não há dúvidas de que Kate Winslet é uma das maiores atrizes de sua geração, mas faz algum tempo que ela percebeu que limitar seu talento somente ao cinema é um desperdício e, por conta disso, ela firmou sua terceira parceria com a HBO quando resolveu co-produzir a sátira O Regime. A minissérie difere de seus outros programas na emissora por estar longe de ter a seriedade de Mildred Pierce (2011) e Mare of Easttown (2021), mas assim como estas deve garantir à atriz vaga nas premiações televisivas,  isso se os votantes entrarem no clima de uma ambiciosa produção que de vez em quando escorrega em seus objetivos. Na minissérie (que teve o último episódio exibido ontem pela HBO e já está completa para maratonar no Max), Kate encarna a chanceler Elena Vernham, que assume o posto que antes era ocupado por seu pai em um fictício país europeu famoso por sua produção de beterraba-sacarina e que chama atenção do mundo pela descoberta de fontes de cobalto. No entanto, a situação do país está tensa com alguns conflitos com a classe operária, além da presença de políticos e empreendedores locais que sempre querem levar vantagem. Se Elena parece ser uma governante forte, aos poucos esta imagem se desconstrói com suas neuroses e manias, são elas que abrem a porta de seu palácio para Herbert Zubak (Matthias Schoenaerts), um militar envolvido em um incidente desastroso que como "punição" fica responsável por medir a umidade de cada local que a chanceler adentrar. Elena tem horror à umidade e um tanto de atração e repulsa por Herbert. A relação entre os dois personagens irá render os acontecimentos mais inusitados do programa e, por vezes, o roteiro irá encontrar problemas para colocar as coisas nos eixos novamente perante  a quantidade de absurdos em tom de galhofa que o programa apresenta até a instauração de  uma guerra civil. Não existe problema algum de falar de temas sérios em tom de sátira, mas é preciso ter um roteiro bastante preciso para que a coisa funcione como deveria. Basta lembrar o que Armando Ianucci fez no cinema com Conversa Truncada/2010 (que lhe indicou ao Oscar de roteiro adaptado) e A Morte de Stallin/2017, ou nas temporadas de Veep (2012-2019) também da HBO, mas o criador desta aqui, Will Tracy (da aclamada série Succession), encontra dificuldades na elaboração da trama que se perde nas excentricidades de sua governante, comprometendo as alfinetadas políticas e o ritmo de alguns episódios, além do tom que a direção do veterano Stephen Frears e Jessica Hobbs precisam encontrar para que a coisa continue funcionando. A sorte é que a química de Kate e Matthias (já testada no esquecido filme Um Pouco de Caos/2014) segura as pontas quando tudo beira o ridículo. No entanto, a dupla também concede espaço para que outros membros do elenco brilhem, como Andrea Riseborough como a fiel governanta do palácio que está unida à chanceler por um laço afetivo inusitado, Hugh Grant como um prisioneiro político e Guillaume Galliene como o esposo traído de Elena. No fim das contas, O Regime é um programa que se assiste pela curiosidade em saber o que irá acontecer com aqueles personagens defendidos por um elenco de ouro, mas quando termina, você pensa que tudo poderia ter sido mais amarradinho e coeso. 

O Regime (The Regime / EUA - Reino Unido / 2024) de Will Tracy com Kate Winslet, Matthias Schoenaerts, Andrea Riseborough, Guillaume Galliene, Hugh Grant, Henry Goodman, Martha Plimpton, Louie Mynnett e Rory Kennenan. 

domingo, 7 de abril de 2024

PL►Y: Meu Nome era Eileen

Thomasin e Anne: uma relação sombria.
 
Eileen (Thomasin McKenzie) é uma jovem que trabalha em uma instituição para jovens infratores. O ambiente é marcado pela hostilidade e uma masculinidade agressiva que povoa o imaginário da mocinha quase que como um fetiche. Os momentos em que ela tem fantasias com guardas e rapazinhos que vivem por lá parecem ser os melhores momentos do dia para ela, já que ao chegar em casa, ela precisa lidar com o pai (Shea Wigham), um policial aposentado e abusivo. A protagonista segue sua rotina de invisibilidade até que chega a nova psicóloga do local, a doutora Rebecca (Anne Hathaway) que é completamente diferente das outras pessoas que habitam a localidade. Além de inteligente, Rebecca ainda se penteia, se veste e se comporta como uma diva do cinema (e Anne Hathaway a encarna com um gosto impressionante). O cinema é uma referência bastante forte neste novo filme do diretor William Oldroyd, já que a fonte dos créditos e a fotografia investem em uma referência ao cinema do anos 1970, como se fosse uma alusão no que a história tem de transgressora. A trama é baseada no livro de Ottessa Mosfegh que também assina o roteiro (ao lado de Luke Goebel) e a produção. As transgressões aparecem na perspectiva diferente que Rebecca possui do seu trabalho e se intensificam quando o filme destacam o jovem Lee Polk (Sam Nivola), um dos prisioneiros do local. Lee foi parar lá por conta de um crime que causou revolta na população local, mas que toca diretamente em alguns elementos da vida da personagem título. Da mesma forma, quando o interesse mútuo entre Eileen e Rebecca se intensifica, a história da família Polk surge para dar conotações mais sinistras, especialmente após a visita da mãe (um ótimo trabalho de Marin Ireland) do rapazinho. Meu Nome Era Eileen segue por um caminho que denota que algo de muito ruim irá acontecer na trama e quando surge uma guinada assustadora no roteiro a coisa se torna arrepiante. O cineasta William Oldroyd é responsável por um dos melhores longas de estreia do século, o elogiado Lady Macbeth (2016) que apresentou Florence Pugh para o mundo. Oldroyd demonstrou uma precisão absurda ao contar aquela história e aqui ele faz o mesmo ainda que o roteiro não o ajude muito. Embora saiba criar a tensão necessária entre todos os personagens, o filme é repleto de diálogos que parecem gastos e alguns aspectos mereciam um trato mais aprofundado do que uma cena apenas (como a relação de Rebecca com os homens locais ou o comportamento dos jovens detentos). Com pouco mais de hora e meia de duração, o filme soa apressado e o final embora faça sentido, soa incompleto frente às possibilidades da narrativa. Ainda assim, o filme é bastante atmosférico, tanto que rendeu uma indicação ao Independent Spirit de melhor direção para Oldroyd, assim como para as performances coadjuvantes de Anne e Marin. No fim das contas, são os três que fazem o filme valer a pena. 
 
Meu Nome era Eileen (Eileen / EUA - Reino Unido - Coreia do Sul / 2023) de William Oldroyd com Thomasin McKenzie, Anne Hathaway, Shea Whigham, Sam Nivola, Siobhan Fallon Hogan, Owen Teague, Marin Ireland e Patrick Ryan Wood.   

PL►Y: Verdades Dolorosas

Tobias e Julia: quando a verdade dói. 

Beth (Julia Louis-Dreyfus) é uma escritora casada há décadas com Don (Tobias Menzies), um psicanalista. Eles tem um filho, Elliot (Owen Teague) que agora também pretende seguir a carreira de escritor. O trio parece compor uma família feliz, que conta ainda com a companhia constante de Sarah (Michaela Watkins), a irmã de Beth que vende acessórios chiques para residência de gente endinheirada, e Mark (Arian Moyaed), o marido ator de Beth. Todos são apresentados como pessoas comuns, com vidas confortáveis, como todos os outros personagens que já vimos na filmografia da diretora e roteirista Nicole Holofcener. Se você conhece os filmes da diretora, sabe que em algum momento haverá um nó que os personagens precisarão desatar para que seus cotidianos voltem a ser como era antes. Aqui o nó acontece quando Beth escuta uma conversa do esposo argumentando que não gostou muito do último manuscrito dela, um novo projeto que não conseguiu agradar a editora. A partir dali, Beth entra em crise ao imaginar quantas vezes seu esposo mentiu para ela, algo que em sua imaginação se torna um verdadeiro poço sem fundo, que afeta não apenas o cotidiano de seu casamento como a imagem que a personagem possui de si mesma e de sua profissão. Não se contentando em lidar apenas com o efeito da descoberta na vida da personagem, o roteiro de Verdades Dolorosas começa a ampliar a relação de todos os personagens com o trabalho, isso é feito com leveza, mas sem perder a chance de construir alguns momentos com diálogos interessantes. A diretora retoma aqui uma atmosfera bastante parecida com um dos seus filmes mais elogiados, Sentimento de Culpa (2010), demonstrando mais uma vez seu talento para lidar com situações aparentemente pequenas e bastante reveladoras. Ela retoma aqui sua parceira com Julia Louis-Dreyfus com quem havia trabalhado em À Procura do Amor (2013), mas eu só ficava imaginando como teria ficado a versão hollywoodiana de Força Maior/2014 , Downhill/2020 (também estrelado por Julia) se tivesse na direção uma pessoa com o olhar tão astuto sobre as relações de um casal. O papel de Beth parece ter sido escrito para Julia utilizar seu talento nas inseguranças de sua personagem, assim como Don cai como uma luva para Tobias Menzies exercitar sua capacidade de tornar um sujeito comum em algo atraente. Ao final as verdades do filme podem não resultar tão dolorosas assim, mas fica claro que o nível de dor também está relacionado à forma que lidamos com nossas verdades. Um filme simples, bem feito e que pode nos fazer rir de nós mesmos em nossas pequenas tempestades do dia-a-dia. 

Verdades Dolorosas (You Hurt my Feelings/EUA-2023) de Nicole Holofcener com Julia Louis-Dreyfuss, Tobias Menzies, Owen Teague, Michaele Watkins, Arian Moyaed e Zach Cherry. 

PL►Y: Zona de Interesse

Friedel: o diretor vizinho de Auschwitz.

O campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, era visto durante a Segunda Guerra Mundial como um verdadeiro exemplo em como exterminar um milhão e meio de pessoas. O que o tempo provou ser um exemplo do horror do Holocausto, no período era celebrado como um marco de eficiência e inovação. Estas características arrepiantes se devem ao diretor local, Rudolf Höss. Höss morava ao lado do campo de extermínio com sua esposa e filhos, numa casa confortável com jardim paisagístico, horta, piscina, estufa e tudo o mais que a família sempre havia sonhado para ver seus filhos crescerem. No entanto, obviamente, a rotina da família era perpassada pelos odores dos crematórios, tiros, gritos e demais horrores que já vimos em diversos filmes sobre o tema. O escritor Martin Amis imaginou as camadas desse cotidiano em seu livro Zona de Interesse que ganhou uma adaptação no ano passado pelas mãos de Jonathan Glazer, diretor nascido na Inglaterra em uma família judaica. Glazer altera a estrutura do livro para chegar ao que ela possui de mais incômodo: como a família Höss poderia viver na comodidade do lar ao lado das atrocidades praticadas do outro lado do muro? Assim, quando vemos o cotidiano daquela família na tela, com as crianças brincando, as visitas conversando trivialidades, os banhos de piscina e os cuidados com o jardim, o que habita nosso imaginário é tudo o que ocorre próximo dali. O filme, assim como o livro, constrói então uma analogia perfeita sobre a banalização do mal. Obviamente que a família Höss tinha uma particularidade nisso tudo, já que as atrocidades eram marcas para a eficiência de um homem que foi nomeado para transformar um antigo quartel polonês em um campo de extermínio, no entanto, o longa ilustra mais uma vez como tudo aquilo ocorreu devido a adesão de pessoas comuns que compraram o discurso de ódio propagado por führer e seu partido. Jogando isso para os dias atuais é triste perceber como o mecanismo de discurso e convencimento ainda dá sinais de eficiência. Glazer executa o filme com rigor absoluto, misturando situações triviais com detalhes que só ressaltam o horror ao redor da família, dos serviçais que conviviam com a tensão daquele período, das discussões sobre como matar com mais eficiência e até uma visitante que se dá conta do pesadelo que ronda a família. Os desatentos poderão até pensar que em Zona de Interesse nada acontece, quando na verdade, a alma do filme reside justamente nesta sensação de que a vida de algumas pessoas seguia normalmente enquanto um massacre. Neste ponto vale destacar as atuações de Christian Friedel (como Rudolf Höss) e Sandra Hüller (no papel de sua esposa, Hedwig), que constroem personagens que querem apenas manter o patamar de conforto que conquistaram. Glazer coloca sobre eles a sua lente e amplia sutilmente a alma desses personagens, mas encontra dificuldades para arrematar o filme, embora aquela cena em que Höss olha para a câmera e seu legado é apresentado ao espectador se torna um dos cortes mais incômodos da história do cinema. Zona de Interesse ganhou o Grande Prêmio do Júri e foi premiado com os Oscars de Melhor Filme Internacional e Melhor Som, concorreu ainda roteiro adaptado, melhor filme e direção. Porém,  o discurso de agradecimento de Glazer no Oscar virou alvo de polêmicas sobre os conflitos envolvendo Israel. Glazer começou sua carreira no cinema em 2000 com Sexy Beast, prosseguiu com Reencarnação (2004) e Sob a Pele (2013), seus filmes costumam dividir opiniões e ganharem admiração ao longo do tempo. Talvez ele aguarde a plateia digerir suas ideias e demore tanto para lançar uma produção. Dez filmes separam seu penúltimo filme de Zona de Interesse, seu longa mais aclamado e premiado, talvez por estar em plena sintonia com o mundo que vemos agora. Mesmo que seu discurso de agradecimento tenha gerado polêmicas, ele revela o espírito do diretor que não pensa em agradar, mas incomodar. 

Zona de Interesse (The Zone of Interest / EUA - Reino Unido - Polônia / 2023) de Jonathan Glazer com Christian Friedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus, Luis Noah Witte, Lilli Falk, Medusa Knopf, Max Beck e Julia Babiarz.

sábado, 6 de abril de 2024

4EVER: Ziraldo

24 de outubro de 1932 06 de abril de 2024
Ziraldo Alves Pinto nasceu em Caratinga, Minas Gerais. O nome incomum veio da combinação do nome da mãe (Dona Zizinha) e do pai (Geraldo). Desde pequeno demonstrava talento para o desenho, tendo um deles publicado no jornal Folha de Minas quando tinha apenas seis anos. Sua carreira começou com várias publicações em jornais e revistas na década de 1950. Em 1960 ele foi responsável pela publicação da primeira revista HQ brasileira de um autor só, a Pererê (que décadas depois virou série de TV). Vieram depois os personagens Supermãe, Mineirinho e Jeremias o Bom. Em 1969 foi um dos fundadores do semanário O Pasquim, um tabloide de humor com críticas ao regime militar da época. Em 1980 o autor lançou O Menino Maluquinho que se tornou um dos maiores sucessos editoriais de nosso país. O livro virou filme de sucesso em 1996 e gerou uma continuação dois anos depois. Outra obra do autor que chegou aos cinemas foi Uma Professora Muito Maluquinha (2011) estrelado por Paolla Oliveira. Lançado em diversos idiomas ao redor do mundo (e premiado diversas vezes), Ziraldo recebeu em 2016 a medalha de honra ao mérito da Universidade Federal de Minas Gerais.  O cartunista, desenhista, jornalista, cronista, chargista, pintor e dramaturgo brasileiro faleceu de causas naturais em sua residência no Rio de Janeiro aos 91 anos.