quinta-feira, 30 de novembro de 2023

HIGH FI✌E: Novembro

 Cinco produções assistidas no mês que merecem destaque: 

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PL►Y: O Baile dos 41

 
Os 42: escândalo mexicano.

Faz tempo que no México o número 41 é visto como uma alusão à homossexualidade masculina. O motivo está em um famigerado baile que contou com 42 homens na noite de 17 de novembro de 1901 na Cidade do México. Grande parte dos envolvidos fazia parte da elite local e metade se encontrava vestida de mulher durante a ocasião. Na verdade, os bailes já eram rotina na vida daqueles homens, muitos mantinham uma vida de aparências fora dali e aproveitavam para vivenciar naquele espaço um tipo de comportamento que não lhes era permitido no dia a dia. As festas eram secretas e aconteciam num casarão perto do Palácio Nacional, a residência do presidente. Os policiais invadiram a mansão em que o encontro era realizado e, não fosse um que conseguiu escapar, a polícia teria prendido todos. Aos que foram levados para a prisão restou a exposição, a humilhação e a ridicularização perante a sociedade da época. O filme dirigido por David Pablos conseguiu alguma repercussão ao contar essa história e abraçar a história que o quadragésimo segundo participante era na verdade o genro do presidente Porfírio Diaz. Historicamente a trama fica ainda mais interessante quando nos damos conta de que a homossexualidade nunca foi considerada  crime no México, sendo uma postura muito mais ancorada na moral e nos bons costumes no preconceito do que em qualquer suspeita de um crime ter sido cometido. Ainda assim, o escárnio seguiu com músicas com zombarias e gravuras publicadas nos jornais locais. Pura homofobia. Quem tinha dinheiro conseguiu se livrar das punições, os rapazes de origem mais humilde foram mandados para a Guerra das Castas que era travada no sudeste do país e morreram no esquecimento. Diante de um material tão explosivo, eu considerava que o filme O Baile dos 41 seria um verdadeiro achado. Não é bem assim. O cineasta David Pablos faz um filme com o maior jeito de novela mexicana, com planos e enquadramentos que parecem saídos de um melodrama pouco inspirado. Obviamente que o destaque na história fica por conta do genro do presidente, Ignacio de la Torre (Alfonso Herrera) que começa a frequentar os bailes e se apaixona por um outro homem (Emiliano Zurita) e o filme gira em torno disso soando maior do que sua duração de pouco mais de noventa minutos. O capricho visual de Pablos aparece mesmo nos vestidos utilizados pelos participantes do baile e algumas cenas mais apimentadas que criam um contraste com o tom quadradinho do resto do filme - o que só demonstra como o filme possui uma narrativa irregular.  O mais interessante é que nada prepara o espectador para a triste cena final de ridicularização total do personagens que foram obrigados a varrer as ruas usando os vestidos utilizados no baile sob os gritos de uma multidão histérica. Ainda que seja um filme com problemas, o resgate desta história real merece atenção por abordar homens que precisaram construir um mundo paralelo para conseguir viver suas verdadeiras identidades. 

O Baile dos 41 (El Baile de los 41 / México - 2020) de David Pablos com Alfonso Herrera, Emiliano Zurita, Mabel Cadena, Fernando Becerril, Rodrigo Virago, Roberto Duarte e Álvaro Guerrero. ☻☻

MOMENTO ROB GORDON: Mais rentáveis de Stallone

Após assistir ao documentário Sly da Netflix fiquei imaginando quanto de bilheteria Sylvester Stallone arrecadou ao longo da carreira como protagonista (portanto, tirei suas participações especiais em filmes como Guardiões da Galáxia). Imaginei quais de seus filmes tiveram maior sucesso nos cinemas e me dei conta que alguns personagens foram repetidos muitas vezes, arrecadando uma quantia ainda maior de dinheiro para o astro. Este momento é para desbravar a carreira desse ícone dos filmes de ação que nunca pode ter seu apelo subestimado. 

Marion Cobretti

Em Stallone Cobra (1986) de George P. Cosmatos, o poder de fogo do ator perante o público era visto logo no título que destacava o famoso sobrenome ao lado do nome de guerra do protagonista, o tenente mais conhecido como "Cobra".  A trama sobre um grupo de assassinos chamado de Nova Ordem é puro pretexto para violência que os fãs tanto desejavam. Tiros, socos, explosões e Stallone de óculos escuros renderam R$ 160 milhões nas bilheterias e ainda rendeu ao moço um romance com sua coadjuvante no longa, a dinamarquesa Brigitte Nielsen, que vivia a modelo sob proteção do moço. Provando que era capaz de sair de seus personagens mais conhecidos, o ator sempre adiou a sequência que nunca saiu do papel (provavelmente por não ter encontrado um roteiro que prestasse). Recentemente houve o boato de que viraria uma série de TV. 
 
Gabe Walker
 
Depois de amargar o fracasso de suas desventuras por comédias (os horrorosos Minha Filha quer Casar/1991 e Pare, Senão a Mamãe Atira!/1992), Stallone voltou a fazer o que sabia fazer melhor com Risco Total (1993) de Renny Harlim. Com cenas de ação de tirar o fôlego, ele vive Gabe Walker, especialista em escalar montanhas e que recebe a missão de reaver uma mala cheia de dinheiro perdida entre montanhas rochosas. Com saudades do astro em filmes de ação, o público compareceu e rendeu a robusta bilheteria de 255 milhões de dólares. O filme ainda foi indicado a três Oscars: som, efeitos especiais e edição de som. Mais uma vez, uma sequência foi anunciada para capitalizar a fama do filme, mas nunca saiu do papel. 
 
Rambo
 
Reza a lenda que no filme de 1982 o roteiro original, inspirado no livro de David Morrell, o protagonista traumatizado por suas vivências no Vietnã, morria. Stallone não gostou nada da ideia de ver o personagem e tudo o que ele representava perder a vida no final do filme. Ele só não imaginava que Rambo voltaria para mais quatro filmes ao longo de sua carreira (em 1985, 1988, 2008 e 2019). Não me surpreenderia se o personagem aparecesse novamente já que até agora os filmes já renderam 789 milhões de dólares ao redor do mundo. No entanto, torna-se cada vez mais difícil encontrar uma justificativa para as ações do clássico personagem que inaugurou a era dos brucutus em Hollywood.  


Barney Ross

Embora o último filme da franquia tenha rendido numa ninharia nas bilheterias (pouco mais de 51 milhões), a ideia de Stallone para juntar a velha guarda dos filmes de ação com jovens astros se tornou uma das mais rentáveis de sua carreira. No princípio ele vivia o líder de um grupo de mercenários contratados para invadir um país e derrubar seu ditador, mas na verdade a missão é outra e acaba colocando a vida de todos em risco. Este foi só o primeiro filme, já que o personagem retornou para novas aventuras ao lado de seus companheiros. Somados, os filmes renderam cerca de 854 milhões de dólares nas bilheterias. Em pensar que o primeiro longa foi lançado em 2010 quando Stallone já completava 64 anos.

Rocky Balboa
 
Eu ainda fico impressionado com o apelo que Rocky Balboa possui perante o público mesmo tantos anos depois de sua estreia no cinema. Dá para imaginar que um filme sem grandes investimentos, protagonizado e idealizado por um desconhecido ganharia o Oscar de melhor filme derrotando (Taxi Driver, Rede de Intrigas e Todos os Homens do Presidente?) Rocky ainda voltaria para mais seis sequências e para dois spin offs (Creed). Ao longo da carreira, o lutador de Nova York arrecadou aproximadamente 1 bilhão e 700 milhões de dólares de bilheteria. Ah, claro, o personagem ainda garantiu a Sly duas indicações ao Oscar, uma de melhor ator em 1977 e outra de ator coadjuvante quando o filme completava quarenta anos em 2016!!!

.Doc: Sly

Stallone: o homem e o paradigma de si mesmo.

Acho que é justo dizer que Sylvester Stallone é mais do que um astro de Hollywood, ele se tornou um ícone ao longo da carreira, na verdade se tornou um paradigma. Seu corpo ultramalhado se tornou uma referência para os filmes de ação e sua carreira deixou claro que o astro do gênero merecia respeito pelos milhões que era capaz de movimentar na indústria (tanto na produção quanto nas bilheterias). Porém, o documentário Sly em cartaz na Netflix pretende mais do que ressaltar o óbvio sobre a carreira deste senhor de 77 anos de vida e 54 de carreira. A narrativa é costurada por entrevistas, imagens de arquivos, cenas de filmes e vídeos antigos para construir um resumo sobre a trajetória do artista e toma algumas decisões bastante interessantes. A principal delas é contar a carreira do artista a partir dos dois marcos referenciais de sua carreira: Rocky e Rambo. Dois personagens que fizeram história no cinema e geraram inúmeros filmes, que possuem a violência presente em suas trajetórias e certa vulnerabilidade por conta de suas histórias pessoais. É evidente como os dois personagens se tornaram marcas na indústria cinematográfica, assim como deixam seu intérprete orgulhoso, mas gerou ao mesmo tempo uma verdadeira prisão para ele. Ele percebeu isso logo depois do sucesso de Rocky - O Lutador (1976), que levou o Oscar de melhor filme daquele ano e rendeu ao ator sua primeira indicação ao Oscar (a segunda viria trinta anos depois pelo mesmo personagem sendo coadjuvante em Creed/2015). Stallone queria ser levado a sério e acabou mergulhando em projetos que sua legião de fãs não estava muito interessada em assistir até que ele percebeu que seu talento físico encontrava melhor abrigo em filme de ação, com muito tiro, socos e explosões. Foi assim que sua carreira seguiu por muito tempo e lhe trouxe muito dinheiro, mas também algumas frustrações, basta ver o tom melancólico como o filme aborda sua participação em Copland (1997), que ele acreditava que mudaria o olhar das pessoas sobre ele, mas que não chegou a tanto, embora Stallone esteja bastante digno na produção. Outro ponto bem trabalhado no filme é a forma como Sly encontrou na escrita seu alicerce para se impor em Hollywood, afinal, foram suas ideias para roteiros que lhe abriram as portas e proporcionaram que Rocky se tornasse o sucesso que foi. Com relação à vida familiar o filme é bastante discreto sobre sua esposa e filhos, mas, emerge daí o personagem coadjuvante mais instigante da trama: Frank Stallone. Frank era o pai de Sylvester e a relação entre os dois é digna de um desses filmes pesados sobre pai e filho. O filme apresenta situações inacreditáveis entre os dois, com direito até a um plágio escrito pelo pai que queria fazer mais sucesso que o filho, além de recordações de violência física e verbal. Um relacionamento complicado que o deixa bastante vulnerável ao recordar e que acrescenta muito sobre sua imagem construída com base na ideia de força e vigor (sorte que em família, o ator parece ser um sujeito sossegado com a esposa e os filhos). Obviamente que o documentário não deixaria de fora Os Mercenários (2010) outra franquia milionária saída da cabeça de um Stallone maduro e envelhecido que demonstra ciência do que ele representa hoje em Hollywood. Sly é um documentário interessante, que não se desvia dos tropeços do seu artista retratado e surpreende ao retratar a pessoa por trás da fama, alcançando um resultado que merece ser visto. 

Sly (EUA-2022) de Thom Zimny com Sylvester Stallone, Frank Stallone Jr., Quentin Tarantino, Arnold Schwarzenegger, Talia Shire, Henry Winkler e Wesley Morris. ☻☻

PL►Y: Fresh

Daisy e Stan: em busca da metade da laranja.

Acho que a irlandesa Daisy Edgar Jones ganhou uma legião de fãs instantaneamente com a minissérie Normal People (2020), assim como Paul Mescal, seu par na produção. O programa rendeu para ambos indicações aos prêmios mais importantes da televisão, o que carimbou a passagem deles para Hollywood. Se Mescal já foi até indicado ao Oscar, Daisy tem procurado produções instigantes que demonstram que ela é uma atriz marcante. Um desses filmes é Fresh. Confesso que meu interesse pelo filme surgiu principalmente por conta dela e, dia desses, vendo minha lista (gigante) de filmes para assistir estava lá este suspense (disponível faz tempo no Star+) que brinca com a busca pelo par perfeito. Daisy vive Noa, uma jovem que está cansada de procurar sua cara metade em aplicativos de relacionamento. Em determinado momento ela revela que odeia toda aquela tensão do primeiro encontro que é bastante evidente quando um tenta demonstrar para o outro que é a perfeição em forma de gente. Por vezes não parece que se está lá pelo seu interesse no par no encontro, mas para que se prove a melhor opção perante todas as outras. Eis que um dia ela conhece no supermercado o simpático Steve (Sebastian Stan). A conversa flui naturalmente, a faísca da atração mútua aparece, um encontro é marcado e tudo flui como deveria ser... O que poderia ser apenas mais uma comédia romântica logo muda de configuração quando os dois viajam para passar alguns dias juntos e Steve não é nada do que parece. Bem, na verdade pouca gente consegue ser, mas a situação é bem mais complicada. Não vale dizer muita coisa para não quebrar as surpresas que o filme reserva, mas, digamos, que Steve quer devorar Noa. Literalmente. Escrito por Lauryn Kahn e dirigido por Mimi Cave, o filme se torna angustiante a partir do momento em que Noa precisa tentar alternativas para se livrar daquela situação macabra antes que o pior aconteça, restando-lhe pouco mais do que a empatia que seu algoz parecia sentir por ela nos primeiros encontros que tiveram. Embora o filme fique um tanto cansativo (e indigesto) pela repetição sistemática de algumas situações, a melhor sacada é a de resgatar a ideia de existir uma alma gêmea por um outro prisma, naquela sensação de que encontrou alguém semelhante à você, não importa o quão bizarra ela seja ao ser parecida contigo. Neste ponto, os trabalhos de Daisy e Stan ganham destaque ao tornar seus personagens críveis mesmo quando estão evidentemente enganando um ao outro e, talvez, até o público.

 Fresh (EUA-2022) de Mimi Cave com Daisy Edgar Jones, Sebastian Stan, Jojo T. Biggs, Andrea Bang, Dayo Okeniyi, Charlotte Le Bon, Brett Dier e Alina Maris. ☻☻

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

PREMIADOS GOTHAM AWARDS 2023

Vidas Passadas: melhor filme do ano no estranho Gotham Awards
 
Mais alguém achou estranha essa nova roupagem do Gotham Awards? A premiação com 32 anos de celebração ao cinema independente, resolveu mudar e não estabelecer mais limite de orçamento aos seus concorrentes a partir desse ano. A ideia era chamar produções mais conhecidas do grande público, mas os grandes estúdios acabaram não inscrevendo seus principais candidatos para o Oscar que se aproxima. Diante disso, o Gotham resolveu premiar do mesmo jeito alguns dos filmes mais falados da temporada com alguns tributos. Ao que parece, o Gotham quer parar de ser uma referência para as premiações indies e enveredar pela seara de todas as outras premiações, acho que quem sai perdendo são os filmes indies que nem sempre ganham espaço contra os pesos pesados da indústria. Sobre a ideia de não separar mais as categorias de atuação por gênero, sinto falta de ver mais artistas premiados por seus trabalhos (de seis, agora são apenas três). Poderiam ter instituído outras categorias de atuação como artista revelação ou performance cômica. No fim das contas, despontam três pesos pesados para a temporada de ouro: os filmes Vidas Passadas, Anatomia de uma Queda e  Lily Gladstone. Seguem os premiados:
 
Melhor Filme
"Vidas Passadas"
 
Diretor Revelação
"Four Daughters"
    
Melhor Documentário
"A Small Light"
    
Melhor Série de Longa Duração
"Treta"
    
Melhor Performance 
Lily Gladstone (The Unknown Country)
        
Melhor Performance Coadjuvante
Charles Melton (May December)
    
Melhor Performance em Série de TV
Ali Wong (Treta)
    
Melhor Filme Internacional
"Anatomia de Uma Queda"

Melhor Roteiro 
"Anatomia de Uma Queda"
 
Tributo à Carreira
"Rustin de George C. Wolfe
    
Tributo à Carreira
"Ferrari' de Michael Mann
    
Tributo à Carreira
"AIR" de Ben Affleck
    
Tributo à Carreira
"Barbie" de Greta Gerwig
  
Tributo à Carreira 
"Maestro" de Bradley Cooper
  
Tributo à Carreira
"A Thousand and One" de A.V. Rockwell

domingo, 26 de novembro de 2023

PL►Y: Besouro Azul

Besouro: Mais do Mesmo.

Acho que todo mundo já sabe que os filmes baseados nas HQs da DC Comics está passando por uma reformulação pelas mãos de James Gunn. Desde que Adão Negro (2022) não conseguiu tudo o que desejada, estava decretado o que se convencionaram chamar de era Zack Snyder daquele universo. Universo é modo de dizer, já que a Warner nunca teve paciência para articular um universo cinematográfica como a Marvel. Costurou tudo de última hora com pontos frouxos, cenas pós-créditos que nunca geraram as produções prometidas e tudo mais que pudesse dar errado. Alguns filmes até funcionaram isoladamente, mas não havia coerência suficiente para dar suporte ao que se convencionou chamar de DCU. Os maiores triunfos acabaram sendo Coringa (2019) e The Batman (2022), dois filmes com personagens relacionados entre si, mas filmes que não tinham relação um com o outro ou com coisa alguma que a DC levou ao cinema nos últimos anos. No entanto, ambos tem uma coisa em comum: se levam a sério. No entanto, em 2023 ainda é necessário fazer a desova dos filmes que estavam em produção. Foi assim com Flash (2023), será assim com Aquaman2 (2024) e com este Besouro Azul, todos os três em um limbo de incertezas e com estreias num período em que se fala muito da saturação dos filmes de super-heróis (As Marvels que o dia com seus recordes negativos para a rival da DC), mas basta ser esperto para perceber que o problema não é a saturação de um gênero, mas da forma como ele é pensado pela indústria. Os filmes de heróis parecem viver de fases, ganha pompa de sério com uma produção e a perde conforme alguns espertinhos consideram que filme de herói tem que ser apenas engraçado e soca piadinhas o tempo inteiro, não interessa se faça sentido. Isso aconteceu quando Batman & Robin (1997) deu um tempo nesse tipo de filme para X-Men (2000), que tornou-se ainda mais arrojada com a trilogia Cavaleiro das Trevas (2012), até a Marvel mudar o jogo com seus filmes interligados e depois destruir seus paradigmas com filmes do porte de Thor: Amor e Trovão (2022). Resta dizer que não existe problema em fazer a plateia dar risada, mas não a faça de idiota. Estamos mais umas vez na fase da "idiotice" dos filmes de heróis e, ironicamente, cabe à James Gunn colocar as coisas nos eixos com o novo universo da DC. Se levarmos em consideração que no meio do caos heroico de 2023, Guardiões da Galáxia 3 foi um bálsamo, eu desejo acreditar que ele conseguirá reestabelecer paradigmas dignos para o gênero em breve. Até lá, acho que teremos de nos contentar com filmes feito Besouro Azul, que parece escrito em alguma cartilha em que o roteirista só completa com nomes diferentes as lacunas apresentadas. A trama gira em torno de um artefato alienígena que é alvo da cobiça de uma grande empresária (Susan Sarandon), mas que cai por acidente nas mãos de um jovem latino, Jaime (Xolo Madureña) que acaba ganhando uma armadura indestrutível. Parece interessante? A premissa já não me empolgava e só piora com todas as frases feitas como o vilão dizendo que "o amor pela sua família te torna fraco", as piadinhas sobre o que se faz no banheiro, os diálogos sem graça, a tagarelice nas cenas de ação, as lutas genéricas... confesso que cochilei várias vezes durante o filme, mas sempre que acordava parecia estar na mesma cena. É tudo tão parecido, tão genérico e pouco inspirado que exige do fã mais do que paciência, exige uma espécie de masoquismo mesmo. A latinidade é vendida como maior atrativo do filme, mas sinceramente me pareceu um festival de caricaturas e estereótipos. Nada salva o filme. Nem o talento de Susan Sarandon, o esforço de Madureña, o magnetismo de Adriana Barraza,  a presença da brasileira Bruna Marquezine ou a piada com Chapolin Colorado.  Raso, sem graça e pouco inspirado, Besouro Azul é uma grande perda de tempo que grita que algo precisa mudar na forma como os produtores estão vendo os filmes de super-heróis.  Se esse é o tipo de filme que achavam que queríamos ver no cinema, sinceramente, sinto vontade de processar por danos morais. Socorro!

Besouro Azul (Blue Beetle / EUA - 2023) de Angel Manuel Soto com Xolo Madureña, Bruna Marquezine, Susan Sarandon, Adriana Barraza, Belissa Escobedo e George Lopez.

PL►Y: Piscina Infinita

Alexander: busca de inspiração na perda de identidade.

Faz uns seis anos que James Foster (Alexander Skarsgård) lançou seu primeiro livro e não encontrou sucesso, nem de público, nem de crítica. Ele ainda quer ser escritor, mas está sem inspiração. Ele convence então a esposa rica, Em (Cleopatra Coleman) de passar uns dias num resort em um país afastado, muito pobre e de leis bastante rígidas. Hospedados na ilha de La Tolqa com praias magníficas, a situação econômica dos moradores contrasta com a riqueza dos visitantes, tanto que o turismo se tornou a principal fonte de renda do país (enquanto os turistas de tornaram alvo do ódio dos moradores). No resort, James chama atenção de outro casal de turistas, especialmente de Gabi Bauer (Mia Goth) que se apresenta como uma das poucas fãs de seus livro e que ganha a vida como atriz de comerciais (ou "vendedora de produtos para fracassados") isso basta para que os dois casais se tornem amigos e se aventurem para fora da segurança do hotel. Eis que acontece um acidente e James irá conhecer não apenas as leis do país como também as estratégias utilizadas pela justiça do lugar para equilibrar as tradições locais com os rendimentos deixados pelos turistas. Acontece que a experiência irá mexer bastante com a cabeça de James que, graças a um grupo de ricaços que passam férias todo ano por lá, logo irá realizar outras contravenções com a ideia de que com o dinheiro é capaz de se safar de qualquer coisa. Este primo hardcore da série White Lotus é o novo filme do canadense Brandon Cronenberg, que mais uma vez honra o sobrenome de seu pai (David Cronenberg) com um suspense com doses de terror digno de nota. Aqui ele alcança a melhor fluência narrativa de toda a sua carreira e, assim como Antiviral (2012) e Possessor (2020) envereda pelas bizarrices de ficção científica. Ele confirma, mais uma vez, seu talento especial para escolha do elenco, sobretudo de seus protagonistas. Alexander Skarsgård está perfeito como o homem lindo, asseado e sem problemas financeiros, mas com uma dificuldades gigantesca para encontrar satisfação, tanto que embarca em uma estranha jornada sem hesitar. A justificativa pode até ser a inspiração para um livro, mas na verdade é uma inspiração para a vida. A forma como o ator desconstrói o pacato James ao longo da sessão ressalta a ideia de que talvez ele não seja o mesmo desde aquela primeira condenação. Em alguns momentos ele parece tão vazio quanto os milionários que se divertem fazendo troça do mundo que julgam pertencer a eles. Mia Goth (esquisitíssima como sempre) funciona como isca para que o protagonista mergulhe em um jogo estranho pelo lugar que parece o paraíso, mas esconde uma realidade habitada por máscaras macabras (que talvez revele mais do que se imagina sobre as pessoas que as usam). O filme flui que é uma beleza em seus primeiros dois atos, consegue ser estranho e... sexy (!!?) de uma forma arrepiante, graças à atmosfera impressa pelo diretor. Brandon brinca aqui novamente com imagens e sons, como se realizasse um filme experimental para inserir  o espectador na experiência sensorial de um pesadelo. No entanto, em último ato, o filme se atrapalha e perde parte do envolvimento que havia conquistado do espectador. Afim de demonstrar que as ideias não tinham acabado, o filme envereda por um caminho desnecessário antes de seu desfecho - e tudo o que foi feito para provocar, pode girar risadas. Piscina Infinita é um filme curioso e envolvente, mas que padece do mal de seu diretor não fazer a mínima ideia de onde (e como) parar a história que tem em mãos. Não fosse a escorregada perto do final, seria um dos FilmesD+ da temporada. 

Piscina Infinita (Infinity Pool/Canadá - Croácia - Hungria / 2023) de Brandon Cronenberg com Alexander Skarsgård, Mia Goth, Cleopatra Coleman, Jalil Lespert, Adam Boncz e Thomas Kretschmann. ☻☻

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

PL►Y: As Oito Montanhas

Luca e Borghi: amizade reatada ao longo do tempo.

Pietro (Lupo Barbiero) é um garoto da cidade que costuma passar as férias nos arredores dos Alpes Italianos. O pai (Filippo Timi) gosta da sensação de tranquilidade que aquela localidade proporciona e conseguiu transmitir isso ao filho. Longe da correria e do concreto da cidade grande, aquele recanto parece um verdadeiro paraíso para o menino. Não bastasse a beleza e a tranquilidade que aquele lugar inspira, Pietro fez um amigo que sempre reencontra nas férias, Bruno (Cristino Sassella), que tem a mesma idade dele, embora seja mais crescido. A realidade de ambos é visivelmente diferente, enquanto a maior preocupação de Pietro é estudar, a de seu amigo é ajudar o pai a ordenhar as vacas e cuidar de outras responsabilidades rurais. Os dois meninos aproveitam o tempo que tem juntos para brincar e se tornam inseparáveis, pelo menos até que os dois acabam perdendo o contato e se reencontram muito tempo depois, quando já são adolescentes, mas não chegam a se falar. Eles vão reatar o laço que construíram na infância com o falecimento do pai de Pietro e a herança de uma casa, no meio das montanhas a que Bruno se comprometeu com o falecido a restaurar. No entanto, os dois amigos fazem uma promessa um ao outro: a propriedade será de ambos. Talvez por conta dessa premissa, alguns apressados compararam o filme a Brokeback Mountain (2005), mas tenho dificuldades de ver algo de sexual entre os dois personagens. Eles são amigos, ou como o roteiro prefere armar, irmãos. O pai de Pietro teve participação importante na formação de Bruno o que amplia ainda mais a relação de afeto entre ambos e o local herdado. No entanto, os dois agora são adultos e suas personalidades se tornaram distintas, assim como suas vidas.  Pietro (agora vivido por Luca Marinelli) se tornou um rapaz sem raízes, que gosta de viajar e conhecer o mundo, sem ter um paradeiro fixo. Não chegou a se formar ou construir uma carreira, mas ao que tudo indica, consegue viver bem - provavelmente por conta do que herdou do pai falecido. Já Bruno precisou estudar fora da cidade em que nasceu e sonha em ter uma pequena fazenda e produzir queijo. Enquanto Bruno finca raízes no lugar em que nasceu, Pietro continuará em suas andanças e aparecendo de vez em quando. As Oito Montanhas é praticamente isso, o registro da amizade de dois garotos crescidos e os caminhos paralelos que escolheram. Por baixo de toda simplicidade existe algo um tanto mais complicado, afinal, por mais que os dois sejam próximos e se preocupem um com o outro, um não pode transferir ao outro o que o outro precisa. É neste ponto sutil que perpassa a narrativa que se ampara o desfecho até chocante do filme. Feito de forma hipnótica pela dupla belga Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, o filme está longe de ter a energia explosiva de Alabama Monroe (2012), o filme mais famoso da dupla e indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, mas consegue transportar o espectador para dentro de sua história com o privilégio de ter cenários incríveis valorizados pela fotografia espetacular. O texto é bastante correto em sua base no livro de Paolo Cognetti que ganhou o Prêmio Strega (o mais prestigiado da Itália em 2016) deixando sua verve literária bastante evidente, mas na tela tudo fica de pé graças ao entrosamento de Luca Marinelli e Alessandro Borghi que estão muito convincentes como amigos de uma vida toda.  O filme teve uma rápida passagem pelos cinemas brasileiros e já está disponível na Reverva Imovision. 

As Oito Montanhas (Le Otto Montagne / Itália - França - Bélgica - Reino Unido / 2022) de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch com Luca Marinelli, Alessandro Borghi, Fillipo Timi, FRancesca Guasti, Chiara Jorrioz, Gualtiero Burzi. ☻☻ 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

PL►Y: Crescendo Juntas

Rachel, Abby e Ben: adaptação de um clássico dos anos 1970
 
Lançado nos EUA no primeiro semestre do ano e com elogios da crítica, Are You Ther God? It's Me Margaret não foi lançado nos cinemas brasileiros e não foi por conta de seu título gigante, mas porque os distribuidores consideraram que é o tipo de filme que se vê sentado no sofá numa tarde em que não se tem muito o que fazer. Porém, quem assisti-lo irá perceber que o filme da diretora Kelly Fremon tem algo mais a dizer. Disponível na HBOMax com o título pouco inspirado de Crescendo Juntas (uma alusão à relação da protagonista com suas amigas) existe uma campanha de lembrança do filme para a temporada de prêmios que se aproxima, especialmente para o roteiro (inspirado no clássico da cultuada escritora Judy Blume) e para suas atrizes coadjuvantes (Rachel McAdams e Kathy Bates), mas o filme terá que ralar perante seus concorrentes mais robustos na temporada. O filme conta a história de uma menina de onze anos, a Margaret do título, que se muda com a família de Nova York para o subúrbio de Nova Jersey. Essa mudança geográfica se mistura com as mudanças que a protagonista vivencia com a nova fase de sua vida. Entrando na puberdade, começam as curiosidades com relação aos meninos, as mudanças no corpo, a primeira menstruação... mas para fugir do óbvio o livro lançado em 1970 explora também a escolha de uma religião. Graças a Deus não se trata de um filme religioso, mas que aborda a questão  sob o prisma das relações familiares e da nossa percepção do que é religioso e divino. Afinal, Margaret (vivida no filme pela carismática Abby Ryder Fortson que foi a filha pequena do Homem Formiga/2015)  é filha de pai judeu (Ben Safdie) e mãe cristã (Rachel McAdams) e os dois decidiram criar a menina sem influências sobre esse assunto - para que ao crescer ela mesma escolha a fé que deseja seguir. Se a relação entre a família é bastante alegre e saudável, por baixo de sua origem existe um segredo não muito agradável que influencia diretamente a forma como se relacionam com as religiões. É neste ponto que aparecem os avós na história, para dar uma complicada nas ideias de Margaret (com destaque para Kathy Bates como a descolada avó paterna). O destaque do filme, assim como no livro são os diálogos sinceros da protagonista com Deus acerca de seus dilemas como ser a última a menstruar no seu grupo de amigas ou o cancelamento daquela aguardada viagem. Feito na medida para agradar todas as idades, Crescendo Juntas acerta no bom humor com que aborda temas delicados e a simpatia com que apresenta seus personagens. É interessante ver McAdams interpretando uma mãe que tenta dar conta do crescimento da filha, assim como ver o indie Ben Safdie em um papel bem mais caloroso do que estamos acostumados. A dupla forma um casal fofo que se torna bastante convincente de terem uma filha sagaz feito Margaret. Não é um filme que vai revolucionar o mundo em tempos de intolerância religiosa, mas faz pensar em como as relações humanas são mais importantes do que qualquer concepção que possa ser ditada por determinado grupo. Acredito que o filme passará em branco nas premiações, mas ele merece ser visto do mesmo jeito. 

Crescendo Juntas (Are You There God? It's me Margaret. / EUA - 2023) de Kelly Fremon com Abby Ryder Fortson, Rachel McAdams, Ben Safdie, Kathy Bates, Elle Graham, Zack Brooks, Amari Alexis Price e Aidan Wojdak-Hissong.

NªTV: Fim

O solteiro, os maridos e as esposas: o amargo bem feito.

Ontem ficaram disponíveis os dois últimos episódios da minissérie Fim na Globoplay. O programa foi feito com base no primeiro romance escrito por Fernanda Torres, que surgiu a partir da ideia da proposta de outra produção para a TV, no caso um episódio de Os Experientes/2015, mas a mente de Fernandinha continuou em seu processo criativo e imaginou o grupo de personagens que gravitava em torno do protagonista apresentado em seu episódio. O resultado virou um livro que tentei ler durante a pandemia, mas como meu estado de espírito não estava muito bom, acabei o deixando antes do final. O motivo? Achei o livro bastante amargo e deprimente em proporções que nem mesmo o seu humor cortante conseguia apaziguar. Já pensei em retornar a ele várias vezes, mas confesso que me deixa apreensivo (haja terapia!). No entanto, vale ressaltar, nada disso é demérito à escrita de sua autora, pelo contrário, a forma como Torres conta a história de cinco amigos e as mulheres, que dividem a vida com eles ao longo de décadas, é bastante particular (e densa). Há quem compare com as tramas de Nelson Rodrigues, mas não vejo tanta semelhança assim (afinal tudo que envolve casamento e infidelidade acham que parece com Nelson), o interesse da escritora está em outros pontos e o principal deles está anunciado logo no título: o Fim. É uma trama sobre a finitude. A morte. Portanto, por mais que a assinatura de Fernanda Torres (largamente anunciada no material promocional) evoque na mente do espectador as produções bem humoradas que já protagonizou, a atmosfera daqui é outra. É uma reflexão sobre a existência, as amizades, os amores, os vícios, os arrependimentos, a solidão, os segredos... é o trajeto da vida de um grupo de personagens colocado perante uma lente de aumento, no caso da minissérie, perante uma câmera. No primeiro episódio somos apresentados ao que mais se assemelha ao protagonista, Ciro (Fábio Assunção) que está em seu leito de morte. Em seu enterro, a ex-mulher, Rute (Marjorie Estiano, magnífica) sequer aparece. Naquele ambiente fúnebre somos apresentados aos seus amigos, o desgarrado Silvio (Bruno Mazzeo), o bom moço Álvaro (Thelmo Fernandes), o salva-vidas galã Ribeiro (Emílio Dantas) e o sereno Neto (David Júnior), mas também Norma (Laila Garin) que merece o céu por ter sido casada com Silvio, Irene (Débora Falabella) a divorciada de Álvaro e Célia (Heloísa Jorge) a esposa de Neto.  Depois, assim, como no livro, a narrativa vai e volta por diversas fases da vida dos personagens, construindo um painel tragicômico (em alguns casos mais trágico do que cômico) em que os descobrimos jovens e cheios de expectativa até que a vida os deixa calejados e decepcionados com suas escolhas ao longo da vida. Se existe uma crítica que possa ser feita ao programa é o pessimismo perante a vida, perante o que vemos a ideia é que não importa o que você faça, o resultado é triste (seja pela eminência da morte ou da solidão inevitável). Fora isso, tudo é realizado de forma notável. A começar pela escolha do elenco, todos estão muito bem em cena, mas foi Marjorie Estiano que roubou meu coração com a transição brutal de sua personagem, devastada pelo peso de dois segredos (um de Rute e um de Ciro). Débora também está ótima como a mal-humorada Irene, que chega ao último episódio sem saber ao certo que quer da vida. Menos conhecidas, Laila Garin e Heloísa Jorge também acertam o tom de personagens com menos camadas, mas que cumprem sua cota de complexidade perante o material que tem em mãos. O mais interessante é que no livro as mulheres eram coadjuvantes dos personagens masculinos, mas aqui elas são elevadas a um patamar que as tornam até mais interessantes que seus parceiros de cena. Outros destaques do programa são a reconstituição de época (que inclui a ótima trilha sonora), a caracterização de envelhecimento dos personagens e a atmosfera precisa construída por Daniella Thomas e Andrucha Waddington (que faz bonito com o texto da patroa Fernandinha). O tratamento cinematográfico dado ao material faz toda a diferença para que o espectador consiga mergulhar nos dramas dos personagens que, por vezes, parece um pesadelo coletivo do qual se quer fugir. Fim entra fácil entre os meus destaques do ano e, ao lado de Os Outros, demonstra que a Globo (embora esteja errando feio em suas novelas que estão no ar) ainda é capaz de grandes acertos em suas produções, resta saber a direção que elas devem seguir. 

Fim de Andrucha Waddington  & Daniela Thomas com Fábio Assunção, Marjorie Estiano, Débora Falabella, Bruno Mazzero, Laila Garin, Heloísa Jorge, David Júnior, Emílio Dantas, Thelmo Fernandes e Fernanda Torres. ☻☻☻

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

PL►Y: Nyad

Jodie e Annette: dupla de ouro.

Nyad, na mitologia, significa "ninfa das águas" e enquanto se assiste ao filme homônimo em cartaz na Netflix, o espectador escuta isso tantas vezes que jamais esquecerá. Imagino quantas vezes a nadadora Diana Nyad ouviu isso ao longo de sua vida e, o que era poético, acabou lhe atribuindo um peso que talvez o pai dela nem imaginasse. Pois Diana tinha um sonho, cruzar a nado os 160 quilômetros entre Cuba e a Flórida. Ela tentou a proeza aos trinta anos e amargou o sabor do fracasso. Trinta anos depois, aos sessenta anos, ela decide retomar o desafio, que agora além das condições climáticas e seres marinhos para atrapalhar, agora também existem as condições físicas próprias da idade. Obviamente que não foi uma tarefa fácil e demandou várias tentativas, sendo justamente este trajeto que interessou os diretores Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin pela história. A dupla é conhecida por seus documentários, especialmente por Free Solo (2018), que lhes rendeu o Oscar de melhor documentário. Durante a projeção de Nyad, eles fazem questão de utilizar cenas de arquivo para ilustrar a vida real da personagem. Parece confuso, mas funciona muito bem durante a  narrativa e torna tudo bastante envolvente para o espectador. Mais do que um filme sobre "nunca desistir do seu sonho", trata-se de um filme sobre superação, que amplia sua mensagem em tempos em que o etarismo está em discussão, além de ressaltar a importância do trabalho em equipe e, sobretudo da amizade. Este último ponto fica por conta dos excepcionais trabalhos de Annette Bening e Jodie Foster. Annette vive Nyad com todas as camadas que você possa imaginar, existe ali a mulher vigorosa capaz de convencer o mundo com sua energia de que será capaz de realizar a tal travessia, mas também existe a mulher um tanto cheia de si que não percebe que existem alguns fatores que não estão sob seu controle para que a coisa saia como o esperado. A impressão é que a coisa toda funciona somente quando Nyad entende que seu sonho depende não apenas de sua competência, mas da soma de saberes do grupo que está ao seu redor. Ajuda muito o fato do roteiro ter uma dose considerável de bom humor e uma energia positiva que faz tempo não vejo em um filme. Talvez digam que é um feel good movie e não vejo problema nenhum nisso. Existe no roteiro um contraste tão bem trabalhado entre as Nyad e sua melhor amiga treinadora Bonnie (Foster) que elas parecem realmente complementares na vida uma da outra. Soa como uma história de amor entre  duas amigas. Jodie está espetacular, em um papel bastante diferente dos tipos densos a que estamos acostumados a vê-la interpretar. Ela está leve e solar, num trabalho tão espontâneo que somente alguém que sabe exatamente o que está fazendo seria capaz de dar conta. Não por acaso as duas já estão cotadas para as premiações de melhor atriz e atriz coadjuvante. Falando nisso, a certa altura, vendo Diana nadando, nadando, nadando... enfrentando verdadeiros monstros marinhos, tempestades, surgindo queimada, inchada, quase inconsciente e sempre decidida a alcançar seu objetivo, eu parei de ver a Diana e vi Annette, uma grande atriz, indicada ao Oscar quatro vezes e derrotada em todas (ela já merecia ter ao menos duas, uma de coadjuvante por Os Imorais/1990 e outra pelo colosso Beleza Americana/1999). Imaginei até a atriz utilizando frases de Nyad em seu discurso de agradecimento, caso a quinta indicação finalmente vingue. No entanto, voltando ao filme, o filme perde um bocado de ritmo na reta final e torna-se um tanto cansativo, justamente quando o conhecido desfecho se aproxima. No entanto, as duas atrizes permanecem no pique para manter o espectador na torcida. Courage!

Nyad (EUA-2023) de Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin com Annette Bening, Jodie Foster, Rhys Ifans, Eric T. Miller e Luke Cosgrove. ☻☻☻

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Pódio: Michael Fassbender

Bronze: o androide traidor.

3º Prometheus (2012) Nascido em Hedelberg na Alemanha (terra do pai) e criado na Irlanda (terra da mãe), começou a carreira no cinema em 2007 e logo chamou atenção de grandes diretores por sua capacidade de expressar muito em interpretações econômicas, talvez seja por isso que Ridley Scott o considerou a melhor escolha para viver o ardiloso androide David, que pode até parecer confiável, mas tem suas próprias ambições de brincar de Deus com seus criadores. Esqueça os aliens, o foco deste filme e de sua sequência (Covenant/2017) é David e seus experimentos. Pouca gente curtiu, mas ainda aguardo o fim da trilogia.

Prata: o prisioneiro faminto.
2º Fome (2008) Michael John Edward Fassbender começou sua carreira no audiovisual em 2001 na série Band of Brothers e depois de uma participação em 300 (2006) de Zack Snyder já se tornou um ator badalado no filme seguinte dirigido por Steve McQueen. O filme ambientado em 1981 narra o cotidiano de um presídio com prisioneiros vinculados ao IRA, até que uma manifestação gerou a famosa greve de fome liderada por Bobby Sands. Fassbender está magnífico na pele de Sands em sua extremada verve política e sua personalidade um tanto assustadora. O filme foi exibido no Festival de Cannes, onde ganhou o Caméra D´Or, destinado a diretores estreantes e lançou luz à carreira do ator e do diretor. 

Ouro: o ninfomaníaco depressivo.
1º Shame (2011) Em seu filme seguinte, McQueen escalou novamente Fassbender para protagonista e lhe rendeu alguns desafios: cenas de nudez frontal, sexo e a personalidade complexa de um sujeito viciado em sexo. No entanto, o filme é pesaroso, melancólico e deprimente. O ator vive Brandon, que vê sua rotina de vícios ruir quando a irmã passa a viver com ele. Não sabemos muito sobre a vida deles, mas quando ela diz que "nós não somos pessoas ruins, apenas passamos por coisas ruins", a mente do espectador viaja imaginando o que os dois já passaram. Fassbender foi eleito o melhor ator no Festival de Berlim, foi indicado ao Globo de Ouro e foi esnobado no Oscar (talvez por conta daquela famosa piada de George Clooney sobre taco de baseball).

domingo, 12 de novembro de 2023

PL►Y: O Assassino

Fassbender: melhor papel em muito tempo.

Um assassino profissional  (Michael Fassbender) planeja meticulosamente cada detalhe de seu novo serviço. Ele fala longamente com o espectador em um fluxo de pensamentos contínuo que nos faz imaginar que ele seja um dos melhores do ramo. Não sabemos quem é o seu alvo ou o motivo para que alguém tenha encomendado a sua morte, mas diante das reflexões deixadas pelo profissional, isso pouco importa. Só que nem tudo corre como o planejado e o protagonista sofre as consequências de seu erro, no entanto, ele está longe de querer ser um alvo e planeja se livrar da retaliação que se aproxima. Só David Fincher é capaz de dar conta de um fiapo de roteiro manjado desse de forma majestosa e elevar a produção ao state of the art de encher os olhos. Além disso, faz a boa ação de trazer Michael Fassbender novamente para o cinema após uma abstinência de quatro anos sem filmar - seus últimos trabalhos foram X-Men Fênix Negra (2019) e Boneco de Neve (2017), o que deixa claro que fazia tempo que ele não tinha um bom material em mãos. O ator alemão está perfeito na pele do metódico assassino (que conforme Isabela Boscov ressaltou muito bem em sua análise, traz muito do próprio David Fincher no perfeccionismo que se exige a cada serviço), mesmo nos momentos mais dramáticos de seu personagem, o ator precisa fazer pouco para expressar o que está sentindo. Acho que a esta altura não é preciso chover no molhado e dizer que Fassbender é um dos atores mais interessantes do cinema mundial (patamar alcançado já em 2008 quando interpretou Bobby Sands em Fome/2008), ele que mantém o filme de pé por duas horas aparecendo em praticamente todas as cenas e nos convencendo de que você não gostaria de ver aquele sujeito na rua. Claro que Fincher dá ao filme um tratamento visual perfeito, gélido e um tanto asséptico, mas que desmonta quando a violência invade a tela e o protagonista precisa enfrentar os seus algozes. Aqui ele ressalta mais uma vez sua inspiração no mestre Alfred Hitchcock, especialmente nos minutos iniciais em que parecemos ver uma variação de Janela Indiscreta (1954) para o século XXI. Bom também é ver a habilidade com que o cineasta escolhe cada peça de seu elenco. É um deleite ver Tilda Swinton quase em um monólogo perante seu parceiro de cena ou a briga planejadamente desajeitada entre o profissional e seu inimigo Bruto (Sala Baker). Porém, seria covardia não ressaltar os trabalhos de cada artista que aparece em cena, todos com chance de ficar na memória do espectador, não importa o pouco tempo que fique em cena (e isso inclui a brasileira Sophie Charlotte em um papel pequeno, mas de destaque no estofo emocional do personagem principal). O Assassino é uma das produções que a Netflix guarda para a temporada de ouro do ano, mas o longa deve passar longe das premiações. Feito no capricho mas sem o apelo "sério" do filme anterior do cineasta, Mank/2020 que também foi feito para Netflix, concorreu a 10 Oscars e foi lembrado somente em design de produção e fotografia. Pensando que o protagonista de O Assassino pode ser inspirado em Fincher e sua relação com o trabalho, seu longa anterior pode ser visto como o ambicioso serviço meticulosamente planejado para ganhar o Oscar, mas que se revelou um tiro que errou o alvo. Este seu novo serviço mira apenas no espectador e acerta em cheio (agora bem que a Netflix poderia se animar e convidar Fincher para fazer uma terceira e última temporada de Mindhunter).

O Assassino (The Killer / EUA - 2023) de David Fincher com Michael Fassbender, Tilda Swinton, Sophie Chartlotte, Charles Parnell, Arliss Howard, Kerry O'Malley, Emiliano Pernía, Gabriel Polanco e Sala Baker. ☻☻☻☻

#FDS Pré-Oscar: Terra de Deus

Elliot Croesset Hove: a história de seis fotografias.

Terminando nosso #FimDeSemana com filmes que disputam uma vaga no páreo de Melhor Filme Internacional no ano que vem, temos um filme que entrou em cartaz em pouquíssimas salas durante o ano e que agora está disponível no serviço de streaming da Filmicca. Terra de Deus é o filme selecionado pela Islândia para ter chances no Oscar do Tio Sam e é um dos filmes que se estivesse na disputa nos anos 1980 ou 1990 ficaria fácil entre os cinco selecionados, com as mudanças que a Academia atravessou nos últimos anos ele pode perder espaço para filmes mais moderninhos. O diretor islandês Hlynur Pálmason faz um filmão à moda antiga, com muitos planos abertos (que valorizam ainda mais as inacreditáveis paisagens islandesas) e ritmo lento, o que pode tornar a produção um tanto árdua para aqueles que gostam de cenas de ação e montagem de cortes rápidos. O longa é contemplativo mesmo, gosta de expor as cenas sem pressa e se estende por duas horas e vinte minutos. No entanto, a trajetória do padre Lucas (Elliott Crosset Hove) prende atenção pela forma bem construída com que o diretor apresenta os momentos em que a fé do rapaz é posta à prova em sua missão de fundar uma igreja nos cafundós da Islândia no final do século XIX. Lucas é dinamarquês e parte em uma árdua jornada para chegar ao seu destino. A distância, as paisagens e os obstáculos naturais tudo o faz repensar se vale realmente à pena seguir seus votos, por vezes suas orações é quase um pedido de desculpas a Deus por não dar conta da missão que lhe foi confiada. O que ajuda a passar o tempo é sua paixão pela fotografia. Diferente dos dias atuais, naquele tempo uma fotografia era um artefato raro e exigia muita destreza de quem fosse realizá-la. O registro exigia imobilidade absoluta e a revelação era feita de forma precária, assim, não era raro estragar o registro tão trabalhoso. A fonte de inspiração do próprio filme é a fotografia, já que a trama foi escrita pelo diretor a partir de seis fotografias datadas do final do século XIX encontradas enterradas em uma caixa em um lugar remoto de seus país. A partir delas, a imaginação do roteiro coloca o bom moço Lucas em situações que testam não apenas a sua religiosidade, mas também sua ética, moral e valores. Se o caminho é difícil, a coisa não melhora muito quando chega ao seu destino e precisa lidar com as pessoas que o cerca, as interações humanas começam a parecer um prato cheio para pecar, seja por amor ou ódio, nesse aspecto personagens como o velho Ragnar (Ingvar Sigurðsson), o anfitrião Carl (Jacob Hauberg Lohmann), sua filha Anna (Vic Carmen Sonne), a caçula Ida (Ída Mekkín Hlynsdóttir) e até o tradutor (Hilmar Guðjónsson) parecem obstáculos para a santidade do jovem padre. Não é por acaso que a natureza no filme surge tão bela quanto assustadora em sua amplitude, seja nas enormes cachoeiras, nos desfiladeiros gigantes, na chuva, na lama, na lava fétida da região, no rio revolto, diante de tanta grandiosidade os personagens sempre parecem pequenos a mercê de seus caprichos (incluindo os da própria natureza humana). Terra de Deus é um belo filme sobre o homem em conflito diante da fé, que aqui é colocada à prova sem sensacionalismos. Exibido com elogios no Festival de Cannes do ano passado, o longa metragem pode surpreender ao render uma indicação para a Islândia, algo que não acontece desde 1992, quando entrou no páreo com Filhos da Natureza. Se em 2022 o folk horror de Lamb chegou perto, quem sabe uma vibe mais clássica encanta a Academia? 

Terra de Deus (Vanskabte land / Dinamarca - Islândia /2022) de Hlynur Pálmason com Elliott Crosset Hove, Ingvar Sigurðsson, Hilmar Guðjónsson, Vic Carmen Sonne, Jacob Hauberg Lohmann e Ída Mekkín Hlynsdóttir. ☻☻☻☻

sábado, 11 de novembro de 2023

#FDS Pré-Oscar: Tenho Sonhos Elétricos

Daniela e Reinaldo: relação explosiva.

Eva (Daniela Marín Navarro) é uma adolescente de 16 anos que mora com a mãe, a irmã mais nova e um gato temperamental. Apesar da mãe fazer o possível para manter um estilo de vida confortável para as filhas, Eva deseja cada vez mais morar com o pai que deixou a família faz algum tempo. O pai, Martín (Reinaldo Amien) ainda não encontrou um lugar para chamar de seu e vive atualmente de favor na casa de um amigo, ex-parceiro de banda, chamado Pombo (José Pablo Segreda Johanning). Eva nem se importa com isso e tenta ajudar o pai a arranjar um apartamento com dois quartos para que possam finalmente viver juntos. Entre as idas e vindas entre a casa da mãe e os dias com o pai, Eva tenta encontrar o seu espaço enquanto lida com as suas inseguranças e os hormônios da adolescência. Tenho Sonhos Elétricos é o filme selecionado pela Costa Rica para disputar uma vaga na disputa de Melhor Filme Internacional no próximo Oscar. O país apostou em um tipo de história que pode acontecer em qualquer lugar do mundo, mas que não foge muito do que já vimos várias vezes em tramas sobre ritos de passagem. O que o faz fugir do lugar comum é o tom impresso pela diretora e roteirista Valentina Maurel que, em seu primeiro longa-metragem, demonstra bastante segurança e habilidade para imprimir sinceridade em cada cena, seja a mais sensível até a mais bruta. Bruta porque de início não sabemos o motivo do pai não conviver mais com a família, mas existem algumas falas aqui e ali que sugerem o que possa ter acontecido. Depois surgem algumas ações e... melhor parar por aqui. Embora o roteiro invista em situações bastante comuns a esse tipo de filme ( como o pai perdido e a filha que parece mais responsável que ele, a mãe que vez por outra perde as estribeiras, o bicho de estimação que ninguém quer...), o filme surpreende mesmo que quando apresenta aquelas cenas sentidas como um verdadeiro soco no estômago. Confesso que fiquei bastante impressionado com o trabalho da protagonista Daniela Marín Navarro, que quase não diz o que se passa na cabeça da personagem, mas que consegue externalizar cada pensamento com o olhar ou um gesto, seja naquele flerte desengonçado com um homem mais velho ou quando contem a raiva (deixando as bochechas vermelhas) naquele maldito elevador. Maurel não enfeita seu filme, o faz de forma direta, seca e um tanto crua, sem glamourizar situações ou locações. As casas que servem de cenário soam bastante realistas e até o uso do gato arranhando qualquer um que atravesse seu caminho funciona como uma metáfora bastante interessante a situação de toda aquela família. Tanta sinceridade faz Tenho Sonhos Elétricos ter algo de biográfico. O filme está em cartaz na MUBI e embora tenha poucas chances no Oscar2024 pode ser um programa interessante para quem gosta de produções sobre famílias disfuncionais.

Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Eléctricos / Costa Rica - 2022) de Valentina Maurel com Daniela Marín Navarro, Reinaldo Amien, José Pablo Segreda Johanning, Vivian Rodriguez, Adriana Castro García e Mayté Ortega Floris. ☻☻☻

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

#FDS Pré-Oscar: Retratos Fantasmas

Cine São Luiz no Recife: cinema, nostalgia e história.

Abrindo nosso #FimDeSemana dedicado aos filmes indicados para uma vaguinha ao Oscar de Melhor Filme Internacional está o elogiado documentário de Kleber Mendonça Filho. O filme chamou atenção  quando foi exibido no Festival de Cannes desse ano. A escolha do Ministério da Cultura garantiu ao filme projeção em sua carreira nos cinemas do país e agora ele também pode ser visto na Netflix. Kleber fez um filme bastante pessoal, nutrido diretamente de sua relação com o cinema, seja como espectador ou diretor de filmes. Ele inicia relacionando essa dualidade com o próprio apartamento que cresceu, imóvel financiado junto à Caixa Econômica pela mãe, professora de História, que fez várias reformas para deixar aquele espaço mais parecido com uma casa que servisse de lar para viver com seus dois filhos. Foi nesse espaço que Kleber realizou a maioria dos seus filmes, incluindo O Som ao Redor (2013) e Aquarius (2016), deixando que alguns dos relatos do diretor evidencie as inspirações para ambas as produções. Para além do apartamento, o diretor passa a contar histórias também sobre a vizinhança, ampliando sua lente  para os arredores que incluía três grandes cinemas de rua (termo usado para especificar salas de cinema que não eram localizadas em shoppings ou galerias). É proposital que o cineasta, que também assume a narração, por vezes apareça diante da câmera, misture sua história pessoal com os cinemas de sua cidade e, por consequência, com os personagens que gravitaram em torno deles. Passando por projecionistas, donos de cinema estúdios, empresários e heróis locais, Kleber elabora mais do que uma viagem nostálgica, mas uma viagem no tempo que, não por acaso é habitada pelos fantasmas que dão título ao filme. São personagens que estão imortalizados em imagens presentes no longa, mas também destaca registros de acontecimentos, como a exibição de Tora! Tora! Tora! (1970) para militares durante a ditadura ou a construção do cinema para propagar a ideologia de uma Alemanha fascinada por seu führer. Kleber costura as imagens de forma bastante orgânica e fluente, ainda que possa parecer dispersa, a maneira como o cineasta tece suas considerações criam um mosaico pleno de sentidos - que nem sua narrativa monocórdia é capaz de atrapalhar. Algumas de suas reflexões sobre a relação entre cinema, tempo e espaço são muito interessantes, sobretudo quando ressalta a trajetória das salas de cinema como um registro histórico, seja das transformações sociais, dos sucessos de bilheteria, das relações das pessoas com a arte, com status ou poder. Fico pensando se os eleitores do Oscar irão perceber essas nuances na hora de votar no longa, se uma história apresentada como tão particular pode proporcionar uma leitura mais universal de um dos cinco melhores filmes internacionais do ano ou quiçá um dos melhores documentários (categoria que no Oscar possui ainda mais concorrentes por incluir longas de língua inglesa). Por fim, não posso deixar de registrar a curiosa cena final, uma espécie de anedota  bem-humorada de que em tempos de culto exacerbado à imagem registrada por câmeras, alguém ainda possa se deixar invisível, ainda que tarde demais após a câmera já tê-lo capturado para a eternidade. Já era, fantasma...

Retratos Fantasmas (Brasil/2023) de  Cleber Mendonça Filho com Kleber Mendonça Filho, Maeve Jinkins e Rubens Santos. ☻☻☻☻

PL►Y: Garotos do Leste

 

Kirill, Daniil e Olivier: crônica de meninos perdidos.

Muller (Olivier Rabourdin) é um homem maduro e bem empregado que em uma de suas andanças pela estação de trem Gare du Nord de Paris conhece Marek (Kirill Emelyanov), um jovem que anuncia não ter medo de fazer de tudo por cinquenta euros. Encontro marcado, Muller acaba caindo em um golpe orquestrado pelo grupo de jovens a que Marek pertence. Trata-se de um grupo de adolescentes imigrantes do Leste Europeu que aplicam golpes a quem demonstre algum interesse por seus corpos. No entanto, conforme o filme quer apresentar, estes meninos são muito mais do que a aparência. O diretor Robin Campillo (do posterior 120 Batimentos por Minuto/2017 e realizador de Les Revenants/2004 que inspirou a cultuada série) faz questão de esticar os dois primeiros atos ao infinito, como se estivesse com a câmera escondida esperando que algo importante aconteça, este ar quase documental emprega realismo às cenas, mas tornam o início um tanto árduo para o espectador. Os primeiros minutos se arrastam. A cena da invasão na casa de Muller também, mas consegue expressar a tensão necessária para que o espectador aguarde o que virá depois, algo que se assemelha ao começo de “Funny Games” (1997) de Michael Haneke. O que vem depois é Marek procurando por Muller para prestar seus “serviços” e voltando outras vezes até que algum sentimento maior surja entre os dois. Aos poucos Muller começa a se dar conta de toda a complexa realidade atravessada por aquele adolescente até que ele chegasse naquele ponto. A sebilidade empregada por Rabourdin (que lembra muito Kevin Spacey) deixa claro o desconforto perante toda a vulnerabilidade de Marek. Existe obviamente uma atração afetivo-sexual entre os dois, mas quando o filme chega em sua segunda parte, Campillo prefere deixar a atração entre os dois de lado e deixar que Muller se torne apenas uma figura paternal para virar uma espécie de herói a livrar Marek da dura realidade em que está preso. Embora cheia de boas intenções, acho essa guinada muito desengonçada, já que precisa de um bocado de boa vontade da plateia para acreditar na nova etapa do relacionamento dos personagens. Mas até a concretizar de vez, Campillo envereda até pelo suspense, apresentando uma realidade de submundo daquele grupo de jovens organizados feito uma verdadeira gangue. Cheio de crítica social à uma realidade mundial, que muitas vezes ignora ver aqueles personagens como seres de carne, osso e sentimentos, o filme de Campillo nunca se contenta em ser “mais um filme gay”, mas não precisava mudar radicalmente as emoções de Muller no meio do caminho. Obviamente que muitas pessoas irão classificar que é decorrência de “consciência social” ou de “vergonha” por se aproveitar de toda aquela situação, mas da forma apressada como tudo acontece, parece que Campillo preferiu ler a cartilha do bom moço e tirar o que o seu texto poderia ter de mais envolvente.

Garotos do Leste (Eastern Boys/França - 2013) de Robin Campillo com Olivier Rabourdin, Kirill Emelyanov, Daniil Vorobyov, Edéia Darcque e Bislan Yakhiaev ☻☻