domingo, 30 de abril de 2023

HIGH FI✌E: Abril

 Cinco filmes assistidos em abril que merecem destaque:




 

#FDS Lars von Trier: Os Idiotas

Albinus:  a idiotice segundo o Dogma95.

Não por acaso, a data em que o blog fecha o #FimDeSemana com filmes do cineasta Lars von Trier é o dia de aniversário do controverso dinamarquês. Lars nasceu em 1956 e sua família sempre prezou por sua criatividade com esperança de que se tornasse artista na idade adulta. No entanto, seus pendores artísticos sempre penderam para a polêmica por desafiar muitas vezes o que consideravam convencional.  Em 1995, Lars ao lado de outros cineasta lançaram o manifesto Dogma95 com regras para se fazer filmes de maneira mais simples, menos comercial e provocadora. Foi no Festival de Cannes de 1998 que foram lançados os primeiros filmes integrados ao movimento, um foi Festa de Família (1998) de Thomas Vinterberg que colheu elogios e foi até indicado ao Globo de Ouro, do outro lado estava Os Idiotas (1998) de Lars von Trier que fez com que muita gente deixasse a sessão antes da metade e gerou vários questionamentos sobre o que se via na tela. Visto hoje, Os Idiotas pode soar ofensivo demais ao retratar um grupo de pessoas que fingem ter algum  déficit cognitivo para testar a reação de quem está por perto. No entanto, lembro que quando o filme foi lançado, ele foi cercado de uma polêmica danada e não foi por conta das imitações realizadas no filme, mas por conta de uma cena de orgia em que uma cena bastante explícita foi realizada por um casal de atores pornográficos (que serviram de dublê para o elenco). Se antes muita gente a considerou sem propósito, hoje ela parece apenas sem graça com seus atores nus amontoados fingindo que estão fazendo algo sexual (e os dublês estão lá só para desviar nosso olhar do descontrole geral diante da câmera). Falando em descontrole, tudo parece tão improvisado que por vezes eu até esquecia que se tratava de um filme (sendo lembrado pelo microfone que insiste em aparecer em várias cenas). Além das "pegadinhas" feitas pelo grupo, o roteiro parece ser realizado de pontos que servem de partida para as ações do elenco, um desentendimento aqui e outro ali, uma despedida sofrida acolá, discussões de relações, crítica à lógica burguesa/capitalista das relações sócio-econômicas, o tom autoritário do líder (vivido por Jens Albinus) e doses de melodrama em torno de Karen (Bodil Jørgensen), a personagem que cai nos truques do grupo e que aos poucos se integra às ações deles. Ela os acompanha numa espécie de retiro em que o sentido está em não seguir regras e fazer o que quiser, não importa o quão bobo pareça (a este estado eles chamam de "paranoia"). A presença de Karen é um dos assuntos que aparecem quando o filme toma ares de documentário fake e no final sabemos que ela possui um drama pesado para carregar (e que talvez por isso ela repita o tempo inteiro que nunca foi tão feliz quanto os dias que passou ao lado do grupo de desconhecidos). É a personagem que faz com que os críticos incluam Os Idiotas na trilogia Coração de Ouro de Trier, embora era tenha bem menos destaque na trama que as protagonistas dos outros que compõem a trilogia. Os Idiotas tem aquele visual bastante característico dos filmes do Dogma95, fotografia tosca, câmera tremida, uso de luz natural, ausência de trilha sonora, não apego aos gêneros cinematográficos, zero efeitos especiais, não identificação do diretor na abertura, alguns destes fatores já servem para afastar muita gente, some isso às cenas de nudez mostradas com aquela naturalidade nada glamourosa e você vai entender o motivo do filme ter se tornado um dos mais polêmicos do diretor que adora que falem dele (mesmo que seja falar mal). No fim das contas, Os  Idiotas pode gerar duas leituras, uma sobre a sociedade que os personagens criticam e outra  sobre a postura alienada dos personagens disfarçada de intelectualidade. Talvez o que o filme queira dizer é que não devemos levar o que é convencional tão a sério, mas, e quando o anticonvencional se torna a severa convenção de um grupo? Essa autocrítica pode ser a maior provocação que o filme traz em suas entrelinhas.  

Os Idiotas (Idioterne / Dinamarca - França - Países Baixos - Alemanha - Suécia - Itália /1998) de Lars Von Trier com Bodil Jørgensen, Jens Albinus, Anne Louise Hassing, Troels Lyby, Nikolaj Lie Kaas, Louise Mieritz e Luis Mesonero. 

sábado, 29 de abril de 2023

#FDS Lars von Trier: Ondas do Destino

 
Emily: até que a morte os separe. 

O segundo filme do final de semana especial com Lars von Trier é o seu primeiro filme a cair no radar do Oscar e, também, o que inaugura a aclamada trilogia "Coração de Ouro". Aqui ele conta a história da jovem Bess (Emily Watson), que vive em uma rígida comunidade religiosa ao norte da Escócia. Ela está decidida a casar com o namorado, o dinamarquês Jan (Stellan Skarsgård) que trabalha em plataformas de trabalho. O início deixa bem claro que para se casar, ela terá que desafiar os preceitos do grupo em que foi criada, o que provoca certo escândalo na comunidade local. No entanto, o fato de ser mal vista pelo grupo, não altera a fé de Bess - que acredita cegamente no nas palavras que Deus destina às suas orações e pedidos (e a forma como EmilyWatson conduz estas cenas específicas com um misto de ternura e estranheza são um destaque à parte, além de colaborar muito para entendermos que a saúde mental da personagem já passou por maus bocados). Com a cerimonia feita e a vida sexual mais do que satisfatória, ela entra em desespero quando descobre que o marido irá se afastar a trabalho e um desejo secreto e um acontecimento trágico irá contamina-la de uma culpa devastadora. Certa de que Deus atendeu seu pedido (ainda que por linhas tortas), a vida do casal está para sempre transformada e um pedido de Jan irá tornar a jornada de Bess irá se tornar um martírio. Misturando o amor ingênuo de sua protagonista com doses de culpa e expiação, a protagonista se torna a primeira personagem a comer o pão que Lars Von Trier amassou. Ela sofre de forma crescente em seu percurso e, acredita, que assim possa ter uma espécie de "graça alcançada". O filme traz vários elementos agregados à religião (religião,  fé, casamento, pecado, moral, excomunhão, culpa, milagre, sacrifício, santidade…), o que constrói uma trama quase paralela ao realismo impresso ao filme (e sempre ressaltada pela cunhada viúva de Bess, a enfermeira Dodo vivida por Katrin Cartlidge). Conforme tenta atender aos pedidos do esposo, Bess se torna uma pessoa mal vista e se depara com perigos cada vez maiores. Da fotografia tosca, passando pela edição crua e o uso de luz natural, nota-se aqui já alguns elementos que fazem parte do manifesto Dogma95 do qual Lars von Trier é um dos membros fundadores. Aqui ele deixa para trás a estética clássica de seu filme anterior (Europa/1991) e inicia sua jornada por filmes mais perturbadores e controversos. Neste contexto, o filme marcou a estreia da inglesa Emily Watson com vários elogios e prêmios, culminando com uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz por todo seu esforço na pele de uma heroína romântica desconstruída em situações um tanto degradantes. Apesar de todo o cinismo que possa ser enxergado no filme, os sinos ao final da sessão é uma mostra de  debaixo  de toda provocação de Trier ainda existe um tantinho de fé (embora não seja cega feito a de sua protagonista). 

Ondas do Destino (Breaking the Waves / Dinamarca - Suécia - França - Reino Unido / 1996) de Lars von Trier com Emily Watson, Stellan Skarsgård, Katrin Cartlidge, Jean Marc-Barr, Adrian Rawlins, Udo Kier, Roef Ragas e Sandra Voe. ☻☻☻

sexta-feira, 28 de abril de 2023

#FDS Lars von Trier: Europa

Jean e Barbara: nas ferrovias do passado europeu. 

Confesso que demorei um pouco a fazer esse #FDS com filmes do dinamarquês Lars von Trier (e faz um tempo que a MUBI está com vários filmes dele disponíveis), afinal, o moço está no pódio de diretores tão amados quanto odiados ao redor do mundo. Se por um lado existem cinéfilos que exaltam o valor artístico de seu estilo provocador, por outro existem vários outros que mantém o pé atrás com as intenções do cineasta. Após uma declaração desastrosa no Festival de Cannes em 2011, acusações da conduta abusiva dele com Björk no set de Dançando no Escuro (2000) e denúncias de assédio sexual em sua produtora, a situação do diretor não parou de complicar. Hoje, lidando com o diagnóstico de Parkinson, o diretor está mais recluso e teve como último trabalho o terceiro ano de sua cultuada série  O Reino (2022). Falando em terceiro, muitos críticos costumam separar a carreira de Lars em trilogias (Europeia, Coração de Ouro, Terra de Oportunidade e Da Depressão). Europa fecha o primeiro ciclo da obra do cineasta ao explorar sentimento relativos à identidade do velho continente - a ideia se iniciou com Elemento de Um Crime (1984), teve segmento com Epidemia (1987) antes de chegar ao seu episódio mais elogiado. Neste início de carreira, Lars já demonstrava habilidade em lidar com técnicas cinematográficas diferenciadas, sendo Europa o mais elaborado visualmente comparado aos seus antecessores. Além da  cenografia bem cuidada, preto e branco,  projeções e sobreposições de imagens, ele tb cita referências que vão de Fritz Lang a Hitchcock, alcançando um resultado visualmente tão artificial quanto interessante. Tanto capricho lhe valeu o grande prêmio do júri no festival de Cannes e prestígio mundial. Aqui ele já conseguia atrair nomes famosos do cinema europeu para sua produção e o orçamento também foi maior que em suas obras anteriores (reza a lenda que só um estúdio beira da falência aceitou o risco de bancar a ideia do diretor). Ambientado log depois da Segunda Guerra Mundial, o filme conta a história de um jovem americano chamado Leopold (o então muso francês Jean Marc-Barr) cujo tio rabugento (Ernst-Hugo Järegård) lhe arranja o emprego em uma ferrovia na Alemanha, a Zentropa. O tio é um chato, o trabalho é árduo, mas ele tem bom coração e se apaixona pela herdeira da ferrovia, Katharina (Barbara Sokowa). O que poderia ser apenas uma história de amor se torna um intrincado jogo de segredos, espionagem e atentados que revelam que as feridas do passado recente ainda não estavam cicatrizadas. O pano de fundo histórico se torna fundamental para que o roteiro explore a construção de poder e fortuna em torno da ferrovia e sua participação na Guerra e no Holocausto. Lars von Trier brinca com a linguagem cinematográfica a todo instante, ora soando nostálgico aos filmes antigos, ora soando como um pastiche dos clássicos, mas sempre mantendo o tom inquieto e provocador quanto à Europa e seus signos. Com relação ao elenco, Europa  proporciona a Jean Marc-Barr seu melhor trabalho como ator, o que não é pouco se pensarmos no seu arquétipo de bom moço a certa altura não sabe mais qual o melhor caminho a seguir. Ele traz muito das características das protagonistas femininas que aparecem posteriormente nas obras do diretor (especialmente na trilogia seguinte, a "Coração de Ouro" formada por Ondas do Destino/1996, Os Idiotas/1998 e Dançando no Escuro/2000). Ainda com todo o virtuosismo autoral, Europa é considerado o filme mais acessível do diretor. 

Europa (Zentropa/ Dinamarca - França - Alemanha - Suíça / 1991) de Lars von Trier com Jean Marc-Barr, Barbara Sukowa, Udo Kier, Ernst-Hugo Järegård, Jørgen Reenberg, Max Von Sydow, Eddie Constantine e Erik Mørk. 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

PL►Y: Alpes

 
Angeliki: altruísmo ou problema psicológico?

Yorgos Lanthimos apareceu em escala mundial com  Dente Canino (2009) que fez sucesso em festivais e ganhou uma surpreendente indicação ao Oscar de filme estrangeiro (entrando para a história como o um dos filmes mais estranhos a concorrerem na categoria). Dois anos depois, Lanthimos lançou Alpes que obteve recepção mais discreta, mas que agrega elementos um tanto diferentes do anterior. Se a cena de abertura evoca com Carmina Burana a tragédia de seu antecessor, existe um contraste com a leveza da ginasta (Ariane Labed) que se apresenta ao som daquela música. Ao final do treino ela se volta ao treinador e diz que gostaria de se apresentar ao som de algo mais pop e a severidade do treinador é apresentada logo em seguida. Este é o ponto inicial para conhecermos um grupo que realiza o serviço de substituir pessoas falecidas para aqueles que amargam o luto. O líder do grupo o denomina de Alpes em alusão aos alpes europeus e cada um dos integrantes passa a usar como codinome o nome de uma montanha. Os membros do grupo aprendem a se comportar como os falecidos, a se vestir como eles, falar como eles, ajeitar o cabelo feito eles, incorporando até mesmo ações realizadas pelos falecidos. Quem recebe mais destaque na história é uma enfermeira (Angeliki Papoulia), que, digamos, assume "vários trabalhos" ao longo do filme, ao ponto de quebrar regras do grupo ao assumir o papel de uma jovem tenista falecida recentemente. Aos poucos, o filme demonstra estar menos interessado na dor da perda e mais na confusão identitária vivida pela enfermeira. Em determinado momento nem ela ou o espectador saberá identificar o que faz parte da vida real dela ou o que é encenação. Um pouco deste efeito também é sentido no arco envolvendo a ginasta que aparece no início, que deixa embaçado se sua relação com o treinador é real ou se ali alguém está substituindo alguém, ou quando recebe uma visita inesperada e não sabe muito bem como reagir. Neste ponto notamos como não sabemos nada do grupo. Yorgos constrói aqui mais uma história estranha do seu cinema absurdista, mais uma vez ele borra os limites entre drama e comédia em uma narrativa com atuações comedidas, ritmo lento e tom seco. O público que não está acostumado ao estilo do cineasta estranhará, mas os fãs consideram um deleite! Angeliki (que também atuou em Dente Canino) merece destaque no elenco pelo trabalho sem amarras em um personagem complicado que desaparece aos poucos nas interações que realiza. Em sua personagem o que parece ser altruísmo se revela cada vez mais um transtorno psicológico. Sobre a direção, inda que Yorgos demonstre rigidez na condução da narrativa,  em determinados momentos, ele transparece mais leveza e um humor mais descarado (como a cena de dança destrambelhada perto do final) afim de acentuar os contrastes da narrativa e seu tom de crítica à uma sociedade de relações em crise. Embora seja considerado um filme menor em sua carreira, Alpes apresenta um autor que começava a lapidar seu estilo ímpar. 

Alpes (Alpeis / Grécia - 2011) de Yorgos Lanthimos com Angeliki Papoulia, Aris Servetalis, Johnny Vekris, Ariane Labed e Stavros Psyllakis. 

PL►Y: Era Uma Vez Um Gênio

 
Tilda e Idris: amor pelas narrativas. 

George Miller é conhecido principalmente pelo seu trabalho em Mad Max: Estrada da Fúria (2015), mas seu escopo cinematográfico é bem mais vasto. Ele é responsável também pelo irresistível As Bruxas de Eastwick (1987), pelo drama competente O Óleo de Lorenzo (1992), pela indicação ao Oscar do porquinho mais querido do cinema (Babe/1995) e tem um Oscar na estante pela animação Happy Feet (2006). Pensando no seu currículo diferenciado é até fácil entender o que lhe atraiu no conto de A.S. Byatt. De início o filme parece que irá contar a história da pesquisadora Alithea (Tilda Swinton) que é narratologista e é convidada para um congresso em que apresenta paralelos entre histórias milenares e os super-heróis das histórias em quadrinhos. No entanto, o tom científico não impede que ela suspeite que sua mente está lhe pregando peças, de forma que ela veja criaturas fantásticas interagindo com ela. Ainda assim, quando ela se depara com uma garrafa q aprisiona um gênio (Idris Elba), fica difícil o espectador imaginar que ela está delirando. Grato por tira-lo daquela prisão, o gênio lhe oferece os tradicionais três desejos, mas para ela, qualquer pedido que fuja da lógica de sua vida racional é um sinal de problemas. Porém, enquanto ela não pedir os três desejos ele está aprisionado à ela. Começa então uma longa conversa em que o gênio tenta convencê-la a fazer os pedidos. Começa então a contar mais de três mil anos de história envolvendo personagens verídicos e a forma como esteve presente na vida deles. Ver a história pela ótica do gênio torna o filme bastante atraente, enriquecido ainda mais pelas ambientações caprichadas pela direção de arte, figurinos e maquiagem. O uso de cores conjugado com a fotografia alcança um resultado deslumbrante que torna o apelo visual do filme seu ponto mais forte Nota-se que por boa parte da projeção, Tilda e Idris são participações mais do que especiais na arte de Miller construir sua narrativa sobre contação de histórias. Não por acaso, nos lembra a capacidade que o cinema tem de narrar através de palavras e imagens para atrair a atenção do espectador. Quando o filme chega em sua terceira parte, ele inverte um pouco os papéis, colocando o gênio no mundo real, com suas cores e rotinas menos vibrantes, comprometendo a sobrevivência da própria fantasia. É nessa parte que o filme perde um pouco de sua força, principalmente por conta do súbito amor de um pelo outro (mas vou atribuir o amor da protagonista ao fato do gênio ser o Idris Elba), mas antes que alguém chame minha atenção, eu entendi que não se trata do amor entre dois personagens, mas o amor da humanidade pela sua imaginação e capacidade de criar narrativas. 

Era uma Vez um Gênio (Three Thousand Years of Longing/ EUA - Austrália) de George Miller com Idris Elba, Tilda Swinton, Nicolas Mouawaud, Lachy Hulme, Aamito Lagum, Anna Adams e Ogulcan Arman Uslu. 

PL►Y: Girl

Polster: bom trabalho envolto a polêmicas. 

Com a estreia de Close (2022) na Mubi, procurei novamente o primeiro filme do cineasta Lukas Dhont na Netflix (e lá estava ele, faz tempo na minha lista de programas a assistir). Girl foi a estreia do diretor belga, que recebeu quatro indicações ao European Film Awards, foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e sua estreia no Festival de Cannes foi mais do que promissora, recebendo três prêmios no festival mais famoso do mundo (um prêmio de atuação para o ator Victor Polster na mostra paralela, a Queer Palm e o Golden Camera para o diretor estreante). Tantos elogios não evitaram algumas polêmicas por colocar um ator cis para viver uma adolescente trans que sonha ser uma grande bailarina no mesmo período em que está prestes a fazer sua cirurgia de adequação sexual. Existe toda uma discussão sobre escalar atores LGBTQIA+ para viver papeis correspondentes no cinema em nome da representatividade, mas o fato de ter um artista cis como protagonista invalida os méritos da obra? Levando a reflexão que o filme proporciona e o bom trabalho de Victor Polster na pele de Lara, considero que o filme merece uma chance (os produtores testaram mais de 500 adolescentes, sem especificação de gênero e somente Victor deu conta de dançar e defender a personagem com a mesma desenvoltura). O filme é baseado em uma história real (e a bailarina no qual o filme se baseia demonstrou bastante satisfação com a obra) e Lukas Dhont já demonstra bastante sensibilidade para contar uma história complicada. Enquanto a família parece lidar bem com a transição de Lara, parece que decisão de viver com o pai (Arieh Worthalter) e o irmão (o pequeno Oliver Bodart) em outra cidade em nome de "uma nova vida" não parece ter o efeito esperado. Não faltam situações constrangedoras na convivência com as colegas de escola e das aulas de ballet. Se existe um esforço descomunal para se tornar bailarina, para Lara a coisa parece se complicar ainda mais por conta de ter que aprender toda uma nova forma diferente de se movimentar da que aprendeu anteriormente em sua antiga identidade. A forma como Lara rejeita os atributos masculinos de sua anatomia são apresentadas várias vezes durante o filme em cenas que ilustram muito bem a sensação de disforia de gênero vivenciada pela protagonista (e tem uma cena junto com algumas meninas que se torna um verdadeiro marco das humilhações que a personagem vivencia). Aos poucos Lara se torna cada vez mais instrospectica, problemas físicos começam a aparecer e comprometem sua cirurgia. Embora o filme tenha uma fotografia quase idílica a maior parte do tempo, Dhont capricha no tom vertiginoso para demonstrar todo esforço da personagem para provar aos outros o que se é. A sensação de inadequação (e cansaço) se intensifica ao ponto que uma ação chocante surja no roteiro. Polêmicas a parte, Girl é uma bela estreia e já demonstra o quanto Lukas Dhont está alinhado com questões pertinentes de seu tempo. 

Girl (Bélgica - Países Baixos / 2018) de Lukas Dhont com Victor Polster, Arieh Worthalter, Oliver Bodart, Tijmen Govaerts, Alain Horonez e Magali Elali.  

terça-feira, 25 de abril de 2023

4EVER: Harry Belafonte

1º de março de 1927  25 de abril de 2023 

Harold George Bellanfanti Jr. nasceu no Harlem (EUA), filho de mãe jamaicana e pai francês da Martinica, Harry passou a maior parte da infância na Jamaica até mudar-se para Nova York. Belafonte começou a fazer sucesso cantando Calypso, um ritmo caribenho que fez sucesso após a Segunda Guerra Mundial. Seu LP, batizado com o nome do ritmo em 1956, se tornou o primeiro álbum a vender um milhão de cópias nos Estados Unidos. O artista também ficou famoso por seu ativismo, se tornou um nome importante na luta pelos direitos civis dos afro-americanos, se tornando confidente de Martin Luther King e financiador da causa. Por seu envolvimento com política, seu tornou membro do Comitê de Assessoria do Corpo da Paz criado pelo presidente John Kennedy. Em 1954 ele ganhou um Tony pelo seu trabalho na Broadway e em 1960 ganhou um EMMY por seu programa de música na TV. Em meio a tantas atividades, Belafonte também fazia filmes desde o início dos anos 1950. Trabalhou várias vezes com o icônico Robert Altman, fez o clássico Carmen Jones (1954), que tornou Dorothy Dandridge a primeira atriz negra indicada ao Oscar de melhor atriz. Sua última aparição como ator foi em Infiltrado na Klan de Spike Lee (2018). O artista icônico faleceu em decorrência de insuficiência cardíaca. 

domingo, 23 de abril de 2023

PL►Y: Speak no Evil

Sidsel e Morten (de frente) : não confie em estranhos

Vou começar dizendo que Speak no Evil do dinamarquês Christian Tafdrup se tornou fácil um dos filmes mais assustadores que já vi em toda minha vida. Sei que vai ter gente que dirá que não viu nada demais e que só no final que o filme assusta e tal... para esses eu só posso dizer que se não fosse todo o desenvolvimento do filme até o desfecho, provavelmente o final seria bem menos arrepiante. São pouco mais de hora e meia de projeção, mas tudo é desenvolvido com tanto detalhe que se torna uma verdadeira obra-prima do horror. Não do horror vinculado aos corpos que se empilham ao logo da história, mas um horror psicológico que vai crescendo e se torna devastador por tocar em questões que são universais. O filme gira em torno de dois casais que se conhecem de férias na Toscana, na Itália. Os dinamarqueses Bjørn (Morten Burian) e Louise (Sidsel Siem Koch) são pais da adorável Agnes (Liva Forsberg). Ele está sempre com um sorriso no rosto, ela é vegetariana e a pequena está sempre com o coelho de pelúcia por perto. Se os dinamarqueses são o polimento em forma de família, o casal neerlandês, Patrick (Fedja van Huêt) e Karin (Karina Smulders) é mais atirado e comunicativo, embora o pequeno Abel (Marius Damslev) seja bastante quieto e retraído. Conforme a afinidade cresce, surge o convite para os dinamarqueses passarem um fim de semana na casa dos novos conhecidos. Eles pensam por algum tempo, acham que seria deselegante recusar o convite e, conforme dizem a certa altura, "o que pode dar errado?". Tudo. Conformem vivem na mesma casa por alguns dias, as coisas começam a sair dos trilhos em várias situações de desconforto. De grosserias passando por mentiras e o tratamento dado ao pequeno Abel, os visitantes sentem cada vez mais de que existe algo de muito errado por ali.  Quando o filme começa, pouco mais do que a trilha sonora denota que existe algo de ruim para acontecer. Conforme a trilha se torna menos densa, o espectador já está imerso naquele pesadelo.  Outro detalhe é a fotografia que investe no contraste da coloração idílica nas belas paisagens com o tom sombrio em todas as outras locações, com destaque para o preto e o vermelho. Os quinze minutos finais de Speak no Evil são atordoantes. Me deram uma espécie de convulsão nervosa e depois, fiquei paralisado, esta reação acontece muito por conta de ver as consequências de tudo que foi mostrado até ali, mas também pela busca de uma lógica por trás das atitudes do casal neerlandês (a qual procuro até agora) e algo muito parecido com o que acontece a Bjørn dentro do carro. Quando a trilha se eleva novamente é para dar ao desfecho uma conotação quase religiosa e a noção de punição por seus pecados (que não são muito mais do que escolha de caminhos errados, correto?), afinal, como é dito em um diálogo entre os casais, tudo acontece pq Louise e Bjørn permitiram. Terminando quase num retorno ao seu início, você nunca sentirá tanto rancor de um coelho de pelúcia e ainda irá pensar mil vezes antes de aceitar convites de estranhos. O filme apareceu em várias listas de melhores filmes de terror do ano passado e foi indicado Critics Choice de melhor filme de terror e melhor ator (para Fedja van Huêt). Não por acaso, uma versão Hollywoodiana com James McAvoy já está sendo preparada, mas dificilmente terá o impacto do que vemos aqui. Para quem assistiu ao original, o impacto do desfecho do remake nunca será o mesmo. 

Speak no Evil (Dinamarca - Países Baixos / 2022) de Christian Tafdrup com Morten Burian, Fedja van Huêt, Sidsel Siem Koch, Marius Damslev, Karina Smulders e Liva Forsberg. 

PL►Y: Compartimento Número 6

Seidi e Iuriy: rumo ao Polo Norte. 

Laura (Seidi Haarla) é uma estudante de arqueologia finlandesa que passou os últimos tempos na Rússia  ao lado da namorada Irina (Dinara Drukanova), uma professora universitária que vive num grupo bem mais academicista que sua parceira. Laura está prestes a realizar um sonho antigo: ir até o Círculo Polar Ártico para visitar as pinturas rupestres milenares de Murmansk. O problema é que ela terá que ir sozinha, devidamente acompanhada de uma câmera para registrar tudo. Se a ideia de ir desacompanhada já não é muito boa, a coisa piora quando ela conhece seu parceiro de vagão (o compartimento do título), um jovem russo chamado Vadim (Iuriy Burisov), um mineiro que está de mudança em busca de emprego. Os dois não poderiam ser mais diferentes, ela é uma  discreta intelectual, Vadim é um operário desbocado e de modos pouco polidos, que não demora a tentar começar uma conversa com grosserias e ofensas. Fosse uma comédia de Hollywood, os dois beberiam na manjada fonte dos "opostos que se atraem" e se odiariam até descobrirem que são almas gêmeas ao final do filme. Como é um filme finlandês, os dois vão se estranhar no início até que um forte vínculo de amizade se instaure entre os dois e o filme ganhe uma leveza insuspeita em seus momentos iniciais. Obviamente que ambos terão que fazer por onde, Ele terá que maneirar em suas grosserias e apresentar que é capaz de ser um sujeito sensível e divertido, assim como ela terá q baixar a guarda e tentar criar vínculo com aquele sujeito que está por perto. Afinal, paira sobre ambos uma sensação de solidão e insegurança durante a viagem. Se ela não consegue conversar muito com a namorada por telefone ou ter muito o que fazer em cada estação em que o trem para, ele também não tem muito mais o que fazer do que encher a cara sempre que pode. Diante dessa insatisfação mútua durante a viagem, surgirá uma  conexão entre os dois que deixará a jornada de ambos menos melancólica. Compartimento Número 6, que está disponível atualmente no prime Vídeo, foi um dos filmes europeus mais badalados de 2021, ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes2021,  concorreu a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro, além de ser indicado ao Bafta, César e Independent Spirit na mesma categoria. O motivo para tantos elogios é o diferencial do filme calcado na dupla principal que trazem um tanto de calor humano às paisagens gélidas que atravessam e, aos poucos, modificam a ideia claustrofóbica construída no início do filme. Não por acaso a personagem principal começa interessada nos registros do passado (as pinturas rupestres) e termina com uma carta calorosa na mão ao desfecho do filme. 

Compartimento Nº 6 (Hytti nro 6 / Finlândia - Rússia - Estônia - Alemanha / 2021) de Juho Kuosmanen com Seidi Haarla, Yuriy Borisov, Dinara Drukarova, Julia Aug e Tomi Alatalo. 

sábado, 22 de abril de 2023

PL►Y: Excluídos

Ashley: o passado bate à sua porta. 

Um amigo indicou que eu assistisse Excluídos, uma produção da Netflix que não lembro de ter visto ser comentada em seu lançamento. Ao final da sessão, tive a certeza que no meio de todo o acervo da gigante do streaming, bons filmes acabam ficando soterrados no marketing destinado a grandes produções com astros famosos. A produção inglesa é um grande acerto ao construir um drama calcado em questões raciais, sabendo construir uma crescente suspeita na personagem principal e a vontade do espectador entender o que está acontecendo na trama. A trama gira em torno de Neve (Ashley Madekwe em um ótimo trabalho), uma mulher casada, com filhos, dona de uma casa confortável e respeitada pelos vizinhos por conta de seu trabalho filantrópico. Ela é casada com Ian (Justin Salinger) e tem dois filhos, Sebastian (Samuel Paul Small) e Mary (Maria Almeida) que estudam na escola na qual a mãe participa da equipe diretiva. Aparentemente tudo é perfeito na vida daquela família, embora ela e seus filhos sejam visivelmente os únicos negros da vizinhança (o que de vez em quando rendem comentários sobre os jovens serem os únicos mestiços da escola). Os problemas começam quando Neve começa a se incomodar quando outras pessoas negras começam a aparecer nas redondezas. De onde vem o temor da personagem? Ao que parece está relacionado com a cena de abertura. Excluídos soa desde o início como uma provocação às origens da personagem, seja pelas perucas que a personagem utiliza para esconder seus cabelos naturais (e que sempre provocam coceira durante o dia), seria pela tonalidade do cabelo da filha que agora prefere penteados afros ou o fato de Sebastian se aproximar cada vez mais do jovem zelador negro da escola (Jorden Myrie). Quando o filme revela o motivo de todo o temor da protagonista, ele retrocede e apresenta outro ponto de vista sobre a vida que a personagem construiu para si. Afinal, ela foi construída a que preço? O preço é o que fica reservado ao ato final em que o drama de suspense parece se inspirar em um filme do austríaco de Michael Haneke e a casa confortável se torna uma espécie de purgatório para toda a sua família. Embora possa provocar risos em alguns momentos pelos exageros (que parecem propositais para gerar risos nervosos na plateia), esta estreia do diretor Nataniel Martello-White é bastante eficiente. Entre o dramático e o sombrio, o final ousado promete dividir opiniões, mas combina com a personagem que busca seu lugar no mundo enquanto foge de si mesma. 

Excluídos (The Strays / Reino Unido - 2023) de Nataniel Martello-White com Ashley Madekwe, Samuel Paul Small, Maria Almeida, Jorden Myrie, Bukky Bakray e Justin Salinger. 


FILMED+: Close

Gustav e Eden: amizade em risco. 

Leo (Eden Dambrine) e Remy (Gustav de Waele) são melhores amigos há tempos. Estão acostumados a brincar na casa um do outro e, na maioria das vezes, Leo costuma dormir na casa de Remy. Os dois estão prestes a estudar em uma nova escola e tanta proximidade começa a gerar comentários sobre a sexualidade de ambos, mais especificamente sobre Leo. É inútil que ele explique que os dois são apenas amigos, as piadinhas e comentários prosseguem, até que Leo resolve se reinventar e se distanciar do melhor amigo. Esse processo doloroso é vivenciado pelos dois meninos com a mesma sutileza com que o diretor Lukas Dhont trabalha todo o filme. Tudo é amparado por palavras não ditas, olhares e silêncios que estão cheios de sentimentos conflitantes (e por isso mesmo, muita gente não vai gostar por imaginar o filme "paradão", como se o interior dos personagens não movimentasse o tempo inteiro). No entanto, em meio a rotina aparentemente simples dos personagens existe um acontecimento que rompe brutalmente a realidade dos amigos. Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro no Oscar desse ano (e ganhador do Grande Prêmio do júri em Cannes2022), Close surpreendeu o anúncio devido a leitura divisiva (e polêmica) que alguns espectadores podem fazer de sua trama. Ironicamente, o melhor da produção nasce daí, já que são as suas diversas camadas que possibilitam várias leituras sobre a relação entre os amigos. O espectador pode criar suas próprias ponderações sobre Remy e Leo e imaginar o que motiva suas ações no filme, sem apontar se sua opinião está certa ou errada ao final. O fato concreto é que o filme conta uma história sobre a afetividade entre dois meninos que estão na passagem da infância para a idade adulta e o impacto da forma como a sociedade observa as demonstrações de carinho entre duas pessoas do sexo masculino. É preciso destacar o ótimo trabalho do elenco durante todo o filme, especialmente do estreante Eden Dambrine com seus olhos expressivos e Émilie Dequenne, que interpreta a mãe de Remy. Além disso, Dhont consegue criar várias analogias sobre os sentimentos dos personagens, seja na primeira cena em que os amigos se escondem de inimigos, da corrida nos campos  em que a família de Leo trabalha (ressaltados pela magnífica fotografia), o braço quebrado, a plantação marcando a passagem do tempo e a renovação, ou algo que se assemelha a isso enquanto Leo olha para a tela na última cena, que soa como um desafio ao espectador a imaginar o que se passa em sua cabeça. Este é o segundo filme do belga Lukas Dhont (o primeiro, Girl/2018, está em cartaz na Netflix faz tempo) e fico curioso de acompanhar seus próximos passos no cinema. Close já está em cartaz na Mubi e tem lugar garantido em listas de melhores do ano. 

Close (Bélgica/França - 2022) de Lukas Dhont com Eden Dambrine, Gustav de Waele, Émilie Dequenne, Léa Drucker, Kevin Janssens, Igor van Dessell e Marc Weiss. 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

MOMENTO ROB GORDON: Séries 2023 (Vol: I)

Confesso que fui acumulando séries para comentar por aqui e me falta um tanto de tempo para escrever detalhadamente sobre cada uma delas, sendo assim resolvi colocar minhas cinco favoritas desse início de ano na lista abaixo:

#05 "Daisy Jones & The Six" (Prime Video)

A adaptação do livro de Taylor Jenkins Reid criou bastante expectativa nos leitores. Com dez episódios lançados aos poucos, o streaming soube como manter o interesse nos acontecimentos em torno da banda fictícia dos anos 1970 (e muito inspirada no Fleetwood Mac) que se dissolveu no auge da carreira. Haley Keough chega com fome de prêmios na pele da cantora e compositora que quer um lugar ao sol, mas precisa controlar seus excessos. Sam Caiflin me parece um tanto velho para viver o vocalista da banda que evita se envolver com a colega enquanto uma guerra de egos tenta definir quem merece mais atenção dos fãs. As roupas de Haley são um destaque a parte numa produção que uma reconstituição de época discreta (incluindo um pouco da cultura disco) com uma fotografia pouco exuberante. A ideia de contar a história da banda como se fosse um documentário funciona bem para driblar a sensação de que assistimos uma novela roqueira  de dramas amorosos. A boa trilha sonora está disponível no Spotify.

#04 "Cidade Invisível - 2ª Temporada" (Netflix)

A nova temporada da mundialmente aclamada série brasileira continua acertando ao utilizar personagens de nosso folclore. Agora o policial Erik (Marco Pigossi) vai parar na Amazônia após passar anos desaparecido. Seu retorno é um pedido da filha (Manu Diegues), que passou a ser criada pela Cuca (Alessandra Negrini), mas fez um pacto com a bruxa Matinta Perê (Letícia Spiller) para que o pai ressuscitasse. Esse drama familiar agora irá se misturar com um menino lobo, a mula sem cabeça e exploradores que procuram ouro em um local sagrado. A série continua tendo bons efeitos especiais e merece destaque por trazer um elenco local talentoso que raramente recebe destaque em produções nacionais (só pela iniciativa a nova temporada merece elogios). É bem vinda a crise de identidade de Erik que passa a ser ele mesmo uma ameaça para as entidades que dão brilho à série desde a sua criação. No entanto, o texto poderia explorar mais a história dos personagens folclóricos que apresenta, talvez assim eles resolvessem o grande problema da temporada: apenas cinco episódios. Sem lançar novos capítulos desde 2021 é muito pouco para conter a ansiedade dos fãs até que a terceira leva de episódios sejam lançados. 

#03 "Enxame" (Prime Vídeo)

Depois do sucesso de Atlanta, Donald Glover poderia se repetir, mas escolheu uma caminho totalmente diferente com Enxame. A minissérie conta a história de Dre (Dominique Fishback) uma superfã da cantora pop Na'Ja, mas que costuma extrapolar quando alguém crítica sua estrela - motivo pela qual ela se torna uma serial killer que coleciona vítimas enquanto tenta se encontrar com sua idolatrada. Arrisco dizer que Enxame foi pensada enquanto Glover trabalhava com Jordan pele na trilha do terror Corra! (2017), já que a minissérie evoca bastante a atmosfera de estranhamento daquele filme. Fishback está ótima como a protagonista que revela-se cada vez mais fora do eixo e deve figurar nas premiações no fim do ano. Outro destaque do elenco é a cantora Billie Eilish que faz uma participação especial bastante promissora. Não precisa pensar muito para associar Na'Ja com o culto dos fãs com Beyoncé, mas acho que a série serve de exemplo para os fãs mais, digamos, intensos em geral (seja de celebridades times ou políticos), afinal, estão usando a idolatria para extravasar o que há de pior em suas personalidades. Captando o espírito de seu tempo, o que mais gostei de enxame é que cada episódio é diferente do outro, o que torna sua trama bastante imprevisível. 

#02 "The Last of Us" (HBOMax)

Só por se tornar a melhor adaptação de um game feita até agora a série já merece todos os elogios que recebe. Concebida por Neil Druckman e dirigida por Craig Mazin (da espetacular Chernobyl/) o programa consegue construir a atmosfera de um mundo devastado por uma praga, no caso um fungo que se espalha e passa a manipular seres humanos como se fossem zumbis. O ótimo Pedro Pascal vive mais uma vez um homem responsável por cuidar de alguém, no caso a adolescente Ellie (Bella Ramsey), que  tem imunidade contra o tal fungo. A cada episódio eles enfrentam novos desafios enquanto estreitam seus laços de afinidade e exorcizam fantasmas do passado. Se existe uma crítica que se possa fazer à série é aproveitar pouco os cenários e personagens que atravessam o caminho dos protagonistas, de forma que se torna um tanto previsível e esquemática demais na forma como os episódios se desenvolvem no geral, não por acaso, o episódio mais falado foi o terceiro (estrelado por Nick Offerman e Murray Bartlett) e que rompe com a lógica dos demais. Dos nove episódios o que menos gosto é o sétimo, mas nem vou dar SPOILER sobre ele. Muitos fãs só esperam que a nova temporada traga traga mais monstrengos. 

#01 "Treta" (Netflix)

A série da Netflix estrelada por Ali Wong e Steven Yeun se tornou a mais falada das últimas semanas, muito por conta da forma surpreendente como o programa desenvolve as consequências da briga de trânsito entre seus protagonistas para apresentar algo muito maior sobre ambos. Yeun vive Danny, imigrante coreano que tem problemas com a vida financeira e ainda precisa aturar o irmão (Young Mazino) que imagina q ficará rico com a internet. Wong vive Amy,  igualmente filha de imigrantes orientais que que é casada, bem sucedida profissionalmente e prestes a fazer um grande negócio que a deixará mais tempo com a família. Conforme as realidade dos dois se juntam, elas se chocam e produzem acontecimentos que mudarão as vidas de ambos para sempre. Se Steven Yeun já conhecemos faz algum tempo e tem uma indicação ao Oscar (por Minari/2020) no currículo, a comediante Ali Wong eu conhecia dos especiais presentes na Netflix, mas não fazia ideia do talento dramático dela para dar conta das camadas de Amy. Os talentos multifacetado de ambos são fundamentais para que a mistura de comédia, drama e suspense funcione atingindo todas as notas que pretende. Fazia tempo que a Netflix não acertava em uma nova série com tanta vontade (cortesia da parceria com a A24). 

PL►Y: I Wanna Dance with Somebody

 
Naomi (ao centro): o talento de salvar um filme. 

Hollywood investe cada vez mais em biopics, afinal, existe a ideia de que pelo menos a bilheteria irá agregar os milhares de fãs em arrecadação robusta. Nem sempre a coisa funciona. Se ano passado, Elvis se tornou um sucesso indicado a oito Oscars, a dramatização da vida da cantora Whitney Houston não teve a mesma sorte. Escrito pelo mesmo roteirista do badalado Bohemian Rhapsody (2018), I Wanna Dance with Somebody fica pelo meio do caminho no que diz respeito a trazer novidades e agregar algum estilo à narrativa. Seu maior trunfo é a escalação de inglesa Naomi Ackie, que não parece muito com Whitney, mas consegue tornar a personagem palpável para a plateia. Todo mundo sabe que Whitney foi uma das vozes mais poderosas da história da música, rendendo milhões para a indústria, o que não evitou seu fim trágico. Após seu falecimento foram realizados vários documentários sobre sua história e esse filme parece uma colcha de retalhos sobre a artista. O longa dirigido por Kasi Lemmons costura momentos importantes da carreira da cantora e deixa outros de fora sem muita cerimônia (principalmente suas incursões no cinema, mas como o filme tem mais de duas horas fico imaginando se seria uma boa ideia colocar tudo por aqui). O longa arranja espaço para os hits da diva, mas também para falar sobre sua bissexualidade e envolvimento com as drogas. Sobre a bissexualidade o roteiro promete um bom desenvolvimento com ajuda da química de Naomi e Nafessa Williams (que vive a grande amiga Robyn) mas depois deixa a coisa de lado. Quanto às drogas o desenvolvimento é mais problemático e o roteiro não sabe muito bem para onde ir. Naomi Ackie (lembrada aqui no blog como atriz coadjuvante por seu trabalho em Lady Macbeth nos Melhores de 2017) consegue simular o tom de voz de Whitney nos diálogos (porque, obviamente nas cenas musicais, ela é dublada com um sincronismo impecável) e capturar muito dos gestos da artista no palco , mas carece de um material mais lapidado para compor uma personagem que dependa menos da lembrança que temos da artista e seu temperamento. Existem detalhes curiosos como a cena em que é acusada de ser "negra por fora e branca por dentro" devido à sua música ser pop e ao fundo vermos a foto de Michael Jackson em sua transição de pele, ou a forma como o empresário Clive Davis (Stanley Tucci) é mostrado como fiel escudeiro enquanto o Sr. Huston (Clarke Peters) ganha ares de vilão (e a dualidade que temos na percepção destes personagens reais não existe no filme), mas nada que disfarce que embora tenha uma excelente personagem em mãos defendida por uma atriz competente, o filme prefira seguir a cartilha tradicional das biopics afim de agradar todo mundo. O resultado é o sabor genérico que desperta a nostalgia do espectador, mas que não encontra fôlego para se tornar uma obra memorável. 

I Wanna Dance With Somebody - A História de Whitney Huston (I Wanna Dance With Somebody/ EUA - 2022) de Kasi Lemmons com Naomi Ackie, Stanley Tucci, Nafessa Williams, Clarke Peters, Tamara Tunie e Ashton Sanders. ☻☻

domingo, 16 de abril de 2023

Pódio: Rutger Hauer

3º: O Tenente Russo. 

3º Fuga de Sobibor (1987) Nascido na Holanda em 1944, Rutger Hauer começou sua carreira de ator ao final dos anos 1960 em produções televisivas. A carreira em Hollywood só começou nos anos 1980, onde viveu seu auge. Embora nunca tenha concorrido ao Oscar até o seu falecimento em 2019, ele foi indicado ao Globo de Ouro de por seu trabalho comovente nesta adaptação do livro de 
Stanislaw Szmajzner que recria a fuga de judeus de um campo de concentração em meio ao Holocausto. A produção é tão marcante que eu lembro até hoje da minha mãe assistindo ao último episódio (por aqui o filme foi exibido como minissérie na Globo). Vale a pena assistir. 

Prata: O Cavaleiro Amaldiçoado
2º O Feitiço de Áquila (1985) Embora em boa parte das produções que estrelou (de acordo com o IMDB foram 173) façam com que você lembre dele feito um vilão, Hauer deu mostras claras de que poderia ser um galã bastante convincente. Sua aparência ajudava bastante e seu estilo visceral ajudou mais ainda ao encarnar o par de Michelle Pfeiffer nesta fantasia que se tornou um clássico da Sessão da Tarde. Aqui ele vive Navarre, um homem condenado a jamais encontrar sua amada por conta de uma maldição que os separa entre o dia e a noite. Temperado com romance e aventura, o filme se tornou um dos mais marcantes da carreira do diretor Richard Donner e inesquecível para quem assistir. 

Ouro: O Líder Replicante. 
1º Blade Runner (1982) Não tem jeito, quando se fala de Rutger Hauer logo vem à cabeça o replicante Roy Batty que viveu no clássico de Ridley Scott. Embora na época do lançamento o personagem pudesse ser  visto como o vilão da história, muitas teorias depois disseram que ele era o herói da trama, afinal, após escapar do trabalho exploratório no meio de espaço e voltar para a Terra em busca de sobrevivência, Roy faz com que até o Caçador de Androides de Harrison Ford passe a questionar seu ofício. Embora seja uma máquina, Hauer proporciona ao seu personagem uma complexidade entre a violência e a melancolia, além de render aquela cena de despedida na chuva que é uma das mais poéticas do cinema. Merecia um Oscar!

PL►Y: IL Futuro

Manuela e Luigi: crescendo e aprendendo. 

Bianca (Manuela Martelli) e Tomas (Luigi Ciardo) são dois irmãos que acabaram de ficar órfãos. Por estarem um tanto fora de órbita pelo ocorrido eles ainda não se deram conta do que isso quer dizer (e em determinado momento até repreendem o uso da palavra). Somente nas conversas com uma assistente social responsável, por acompanhá-los é que Bianca descobre que por ter dezoito anos se torna responsável por cuidar do irmão. Ela também não entende muito bem o que isso quer dizer, mas a ideia de se separarem se torna um outro golpe que não estão dispostos a sofrer. O que eles entendem é que precisam ir à escola e fazer as tarefas de casa, mas não demoram a deixar a casa uma bagunça pela total incapacidade de jogar o lixo no devido lugar ou lavar a louça. A ideia de receber uma pensão por conta do trabalho do pai também ajuda menos do que imagina, já que, depois de calcularem, descobrem que ao pagar as contas, o que sobra mal dá conta da alimentação (e haja doces e biscoitinhos para os dois). Crescer não é fácil e tornar-se um adulto é mais complicado ainda, por isso mesmo o italiano Il Futuro se torna um filme de rito de passagem ao acompanhar a jornada dos dois irmãos para perceber as armadilhas que aparecem pelo caminho da inércia cotidiana. Parte dessas armadilhas aparecem personificada por dois amigos que cruzam o caminho de Tomas, sem ter onde ficarem eles vão parar na casa dos órfãos e, se por um lado ajudam a manter a ordem na casa, ambos também sabem como aproveitar a vulnerabilidade dos irmãos. Não por acaso, desde a primeira menção aos amigos, o sexo se faz presente. Primeiro por conta de alguns canais bloqueados na TV, depois por conta de um golpe a ser orquestrado sobre um astro aposentado. É uma grata surpresas ver Hutger Hauer na pele do astro que optou se isolar depois dos golpes do destino. Conhecido como Maciste, ele terá proximidade cada vez mais íntima com Bianca, o que revelará camadas que nem ela conhecia (e soa um tanto irônico que ela cite Brad Pitt como um astro que ela gostaria que fosse seu pai e pouco depois cita que Brad poderia ser seu amante em uma conversa com um colega de trabalho). De certa forma, Maciste ocupa esses dois lugares na vida da garota a partir de determinado momento (Hauer não é o Brad, mas já teve seus dias de sex appeal e glória diante da câmera), mas também serve como a personificação do que o título anuncia perante o futuro incerto e a certeza da deterioração física com o passar da juventude (além da presença de uma riqueza que ninguém sabe identificar onde está). Hauer empresta uma dignidade surpreendente ao personagem e apresenta uma estranha química com a jovem Manuela Martelli que mostra bastante desinibida. O filme se esquiva das polêmicas na abordagem de um homem muito mais velho com uma adolescente de forma bastante sutil, optando por uma sexualidade sugestiva e até elegante, cortesia da diretora Alicia Scherson na transição de nossa percepção da passagem de Bianca enquanto adolescente para a mulher que será na vida adulta. Pena que o desfecho do filme, que busca ser poético, se torna um tanto abrupto e insatisfatório.

IL Futuro (Itália/ Chile / Alemanha / Espanha - 2013) de Alicia Scherson com Manuela Martelli, Rutger Hauer, Luigi Ciardo, Nicolas Vaporidis e Daniela Piperno. ☻☻☻

PL►Y: Red Rocket

Suzanna e Simon: planos de retomar a carreira. 

De vez em quando o cinema autoral se volta para ídolos do universo pornô. Foi assim com Dirk Digler e seus colegas no clássico Boogie Nights (1997) e recentemente no pesadão Pleasure (2022). Particularmente, acho que se não tivesse assistido este último eu teria achado mais graça de Red Rocket, último filme de Sean Baker. Já é público e notório que Baker gosta de desviar sua câmera para personagens periféricos a cenários que habitam nosso imaginário, foi assim ao filmar Los Angeles (com um iPhone) e focar em protagonistas trans em Tangerine (2015) ou em contar uma história terna com crianças que moram ao lado da Disney (mas que nunca teriam dinheiro para visitar o parque mais famoso do mundo) em Projeto Flórida (2017). Agora ele nos apresenta Mikey (Simon Rex), um astro pornô que caiu em decadência e acaba de voltar para casa, ou melhor, para a casa da ex-mulher, também ex-pornstar, Lexi (Bree Elrod). Como a grana anda curta, a mãe dela divide o teto com ela faz tempo. Mikey logo percebe que a vida não será fácil, como emprego anda difícil e ele é sempre cobrado a trazer algum dinheiro para casa, ele começa a se arriscar em atividades ilegais. A vida dele parece mudar mesmo quando conhece Strawberry (Suzanna Son), uma adolescente que trabalha em uma loja de donuts. Ele acredita que é capaz de convencê-la a fazer filmes eróticos com ele e, com isso, ter um retorno triunfal na indústria pornográfica. Com essa premissa, Red Rocket mistura drama e comédia, principalmente por conta do jeito atrapalhado de seu protagonista vivido com gosto por Simon Rex. Rex foi um ícone da MTV americana, se tornou bastante popular e viu sua carreira minguar quando seu passado em filmes adultos comprometeram seus projetos futuros. Na pele de Mikey se torna até fácil simpatizar com ele, apesar de todas as suas canalhices, suas trapaças recebem tom cômico, assim como suas discussões, cenas de sexo e nudez. Não por acaso sua carismática desenvoltura lhe rendeu o prêmio de melhorador no Independente Spirit do ano passado e uma torcida (que não deu em nada) para que recebesse uma indicação ao Oscar (difícil a Academia comprar uma ideia feito a sinopse do filme). Logicamente que Baker constrói a história pelo gosto de ver a cara de pau do protagonista ser quebrada várias vezes, mesmo que paire sobre a trama a sombra dele poder ganhar a vida às custas de uma adolescente. Talvez por isso o final tenha me parecido um tanto abrupto, deixando as intenções do diretor (sejam elas quais forem) no meio do caminho. Este olhar bem humorado e um tanto desleixado sobre a decadência de um "Macho Alfa" pode ser visto no TelecinePlay. 

Red Rocket (EUA-2021) de Sean Baker com Simon Rex, Suzanna Son, Bree Elrod, Brenda Deiss, Judy Hill, Brittney Rodriguez e Marlon Lambert. ☻☻☻

PL►Y: Sharper - Uma Vida de Trapaças

 
Lithgow e Moore: elogiado neo-noir na AppleTv

Embora o subtítulo do filme possa estragar parte da surpresa, o filme de Benjamin Caron colhe elogios por ser um thriller à moda antiga, com seus mistérios se embaralhando conforme os personagens começam a se revelar para a plateia. Confesso que a primeira referência que tinha do filme era a presença de Julianne Moore e quando comecei a assistir ao filme na AppleTv, pensei que estava vendo outra produção por engano. Não era. O filme é dividido em partes que parecem capítulos centrados em personagens específicos, cada parte complementa a outra, mostrando fatos acerca de cada um deles.  Não cabe dizer muita coisa para não estragar as surpresas que o filme reserva, mas é interessante notar a destreza com que o diretor costura a narrativa (o que não é por acaso, já que ele já foi responsável por dirigir episódios de séries aclamadas como Sherlock, The Crown e Andor), o problema talvez seja o desfecho um tanto mirabolante demais. Quando o filme começa conhecemos o tristonho Tom (Justice Smith), dono de uma livraria que acaba de conhecer Sandra (Briana Middleton), uma estudante nova na cidade que ele acredita ser o grande amor de sua vida. Os dois viverão uma história de amor intoxicante, mas nem tudo são flores na vida do rapaz, já que ele tem problemas de relacionamento com o pai (John Lithgow) que recentemente se casou com Madeline (Moore), que também poderia ser mais feliz se não tivesse um um filho problemático (Sebastian Stan). Conforme o filme avança nos atos dedicados a cada um deles, alguns segredos aparecem e comprometem a tanqüilidade de todos eles.  Cabe à plateia acompanhar as descobertas junto aos mocinhos da história e ter um bocado de raiva dos vilões espertalhões que aparecem pelo caminho, até descobrir quem irá rir por último. Embora o final precise de um pouco de boa vontade para ser aceito, Sharper tem bom ritmo, produção bem cuidada e um elenco inspirado que consegue tirar o gosto genérico que este tipo de filme recebeu nos últimos anos. Entre golpistas e seus patos, o filme prende a atenção como seus semelhantes hollywoodianos padecem para conseguir. 

Sharper - Uma Vida de Trapaças (Sharper / EUA - 2023) de Benjamin Caron com Julianne Moore, Sebastian Stan, Justice Smith, Briana Middleton, John Litgow e Darren Goldstein. 

sábado, 15 de abril de 2023

PL►Y: Please Baby Please

Harry e Andrea: um casal e suas fantasias. 

Confesso que fiquei com pena da Andrea Riseborough no Oscar desse ano. Depois de toda polêmica por sua indicação por To Leslie ela preferiu ficar no canto, sem alardes e se reservando a aparecer no obrigatório momento de mencionar as indicadas ao Oscar de melhor atriz (e deu pulos de alegria ao ver Michelle Yeoh fazer história). O que era para ser um dos momentos mais felizes de sua carreira, ficou ofuscado por uma polêmica em torno dos seus colegas de trabalho que resolveram impulsionar a votação por seu trabalho em um filme de orçamento modesto e renda zero voltada para campanhas de marketing. Uma das atrizes mais interessantes em atividade atualmente merecia mais consideração. Desde que foi revelada para o mundo em W.E (2011) o famigerado segundo filme dirigido por Madonna, Andrea emendou um filme no outro, seja como protagonista, coadjuvante, participação especial, em cinema ou série de TV. A atriz se arrisca em diversos gêneros e estilos sendo reconhecida por ser um verdadeiro camaleão. Em cartaz na Mubi, Please Baby Please é uma dessas ousadias. Dirigido por Amanda Kramer, o filme tem um jeito tão despojado que parece mais uma peça de escola que por acaso foi filmada. A atmosfera onírica queer carregada pelos tons neon remetem ao clima das fantasias sexuais do casal principal. Suze (Andréa) e Arthur (Harry Melling) formam o casal que ao chegar em casa presencia uma gangue cometendo um crime. Se a esposa se mostra seduzida pela agressividade da gangue, o marido demonstra uma atração específica por um dos integrantes vestido em couro e transparências (cortesia de Karl Glusman, mais uma vez objetificado). Embora figurinos e penteados remetam aos anos 1950, o filme tem uma estética bastante anacrônica nos tipos que apresenta em sua hora e meia de duração, mas a história parece acontecer no passado, principalmente pela forma como o casal principal parece confuso com suas fantasias e identidades sexuais, sem saber muito bem como se classificarem (e será que hoje é mais fácil?). O fato que é que se a primeira impressão deixa a sensação de que os dois não combinam muito, cresce um verdadeiro abismo entre os dois no decorrer da sessão. Andrea e Melling começam a intensificar casa vez mais as diferenças entre os personagens, ela se torna mais exagerada e careteira, ele mais contido e revela suas intenções através de olhares e gestos, até que seus questionamentos em torno da sexualidade comecem a transbordar nos nos diálogos. No meio da encenação caótica proposta pela diretora, Melling ganha pontos em mais uma construção sensível em sua carreira, sendo aqui o primeiro trabalho em que apresenta um aura sexy (com pendores até então insuspeitos para dança e um beijo bastante provocador em seu colega de elenco). Não fosse pela curiosidade de vê-lo em um personagem tão diferente, provavelmente eu teria abandonado Please Baby Please no meio do caminho com suas muitas ideias, execução confusa e números musicais camp. É um filme que desperta curiosidade pelo elenco, mas um tanto perdido no que se propõe. 

Please Baby Please (EUA-2022) de Amanda Kramer, Andrea Riseborough, Harry Melling, Karl Glusman, Jake Choi, Matt D'Elia, Ryan Simpkins, Jake Sidney Cohen , Karim Saleh e Demi Moore. ☻☻

PL►Y: Nos Corredores

 
Sandra e Franz: o universo nos corredores de um supermercado. 

Figurando entre os atores europeus mais badalados da atualidade, o alemão Franz Rogowski já foi até citado como uma espécie de irmão mais novo do americano Joaquin Phoenix, os dois realmente possui uma semelhança física para além de uma cicatriz, mas também por conta do gosto por viver personagens diferentões. Eu conheci Rogoswki no excelente Great Freedom/2021 (que o colocou entre as melhores interpretações masculinas de 2022 aqui do blog), filme que está na Mubi assim como outros filmes estrelados por ele. Nos corredores (ou In The Aisles) é um desses e chama atenção principalmente pelo lugar que escolhe de ambientação para sua história: um supermercado. Rogowski vive Christian um jovem de poucas palavras (e muitas tatuagens) que é contratado para ser repositor do corredor de bebidas de um grande supermercado. Ele logo ganha a simpatia do funcionário mais antigo do setor, Bruno (Peter Kurth) que será responsável por lhe ensinar as tarefas do setor lhe dará dicas preciosas no manejo complicado da empilhadeira. Se aos poucos o colega de trabalho se torna uma espécie de figura paterna para Christian, aos poucos ele começa a se interessar por sua colega do corredor vizinho, a sensível Marion (Sandra Hüller que parece a prima alemã da Cate Blanchett) responsável pela sessão de doces. Logo os dois percebem que a recíproca é verdadeira e desenvolvem uma relação platônica com alguns complicadores que irão afetar a relação de ambos com o espaço de trabalho. O mais interessante é como perante a ambientação e os personagens que tem em mãos, o roteiro se torna cada vez mais gracioso, no entanto, o diretor Thomas Stuber opta por filma-lo sem enfeites, de forma lenta e um tanto seca, o que não impede de criar um universo interessante por si só perante aquele mundo particular. Ainda que gere reflexões variadas sobre a relação das pessoas com seu local de trabalho, Nos Corredores demonstra como aquele universo se torna uma espécie de mundo paralelo para os personagens.  Existem alguns detalhes da vida fora do trabalho dos personagens que servem apenas para sugerir como naquele espaço eles vivem outras personas, demarcadas até por níveis de status e importância que aos poucos se demonstra cômoda e segura, sem esquecer do afeto construído entre os membros daquele grupo que, por vezes desequilibram a comodidade vivida antes. A ambientação em um supermercado funciona então como a ideia de organização daquele espaço, mas também em momentos em que os personagens subvertem algumas regras do local (incluindo as cenas sobre o que é descartado, com direito até a uma ceia de natal). A fotografia que ressalta os tons de amarelo destacam um certo elemento de fantasia na forma como a história é conduzida (e em dado momento imaginei como seria o filme em uma versão americana feita por Wes Anderson) e a última cena (tão terna e sutil) só reforça este fator. Delicioso em sua originalidade, Nos Corredores é uma grata surpresa. 

Nos Corredores (In den Gängen/Alemanha - 2018) de Thomas Stuber com Franz Rogowski, Sandra Hüller, Peter Kurth, Andreas Leupold e Matthias Brenner.