Riley e Matt: as ideias de um psicopata vista por dentro.
Em seus primeiros trabalhos como cineasta nos anos 1980, o dinamarquês Lars Von Trier já dizia que um filme deve ser uma pedra no sapato. Isso foi bem antes dele cair no radar do Oscar quando Emily Watson foi revelada no seu Ondas do Destino/1996 ou ficar famoso como um dos fundadores do movimento Dogma95 - assinado junto com outros cineastas conterrâneos (Trier fez apenas um filme seguindo aqueles fundamentos: Os Idiotas/1998). Logo em seguida ganhou a Palma de Ouro em Cannes por um trabalho contrário a tudo o que o movimento pregava, o musical deprimente Dançando no Escuro/2000 estrelado pela cantora islandesa Björk (que falou horrores de seu trabalho com o dinamarquês). Lars quase levou outra Palma novamente com o antológico Dogville/2003, talvez a sua verdadeira obra-prima - mas ele ficou tão decepcionado com a recepção da sequência, Manderlay/2005, que a terceira parte daquela trilogia (Wasington) nunca saiu do mundo das ideias. O mundo percebeu que Lars era um grande provocador, avesso a qualquer bem estar na sala escura, mesmo quando fazia comédia (O Grande Chefe/2006, o maior fracasso de sua carreira) o resultado era desagradável. Quem não o conhecia estranhou ainda mais quando ele radicalizou conciliando terror e pornografia em O Anticristo/2009, que rendeu para sua protagonista (Charlotte Gainsbourg) o prêmio de interpretação feminina em Cannes. O passo seguinte foi Kirsten Dunst alcançar o mesmo reconhecimento com Melancolia (2011), onde o fim do mundo é a menor das preocupações de uma noiva deprimida. Foi com o lançamento deste filme que Lars foi expulso do Festival de Cannes após fazer comentários sobre o nazismo - pouco depois de anunciar que seu sonho era fazer um filme erótico com Dunst (o que rendeu risadas na coletiva de imprensa). Não era piada (e Dunst pulou fora). Com pouco mais de quatro horas de duração, Ninfomaníaca/2013 foi lançado em duas partes e deixou claro que para o diretor um filme continuava sendo uma (enorme) pedra no sapato. Depois de fazer um filme onde sexo explícito é a ordem (ainda que com reflexões pretensamente filosóficas), me parece um tanto óbvio que Lars se rendesse a um filme em que um serial killer é o protagonista. A Casa que Jack Construiu provocou protestos, enjoos e debandada das salas de cinema em sua primeira exibição (e eu realmente não entendo o que as pessoas esperavam ver de um filme do diretor com este ponto de partida). Hesitei muito para ver o filme e quando o fiz sabia que ele estaria na minha lista pessoal de filmes mais desagradáveis que já assisti (e antes dele era Irreversível/2002 que contava com a medalha de ouro). Estranho, desconfortável e bizarro, Jack é um desafio aos nervos do espectador que acompanhar em seu ritmo lento e arrastado, a mente doentia de um assassino em série. Existem trocentos filmes sobre este tipo de personagem, mas nenhum deles tentou reproduzir as ideias eles da forma como vemos aqui. O fio condutor não é uma investigação policial para capturar o assassino, pelo contrário, a condução fica por conta dos vários assassinatos de mulheres, homens e crianças pela mão de Jack (Matt Dillon), um engenheiro que queria ser arquiteto e que conversa com o poeta alegórico romano Virgílio (Bruno Ganz) para nos fazer acreditar que seus crimes são uma verdadeira obra de arte. Há quem considere que Jack é o alter-ego de Trier, que já está cansado das pancadas que recebe dos críticos, mas acho esta interpretação bem menos interessante do que um diretor ousado desconstruindo este subgênero. As mortes não são estilosas ou sedutoras, são cruas, toscas, cruéis e difíceis de assistir e - mesmo com vários filmes apresentando mortes às pencas todos os anos, fica difícil olhar para telona. A diferença é justamente Jack matando e dizendo que o que ele faz é arte - esta é de fato a grande provocação do filme (e que Trier paga o preço de quase sucumbir na dicotomia entre criticar ou endossar). Para além das crueldades, o roteiro é cheio de ironias e sarcasmos, tendo em Matt Dillon um porto seguro, dado o seu destemor na pele do personagem. A idade fez Dillon se tornar uma ator interessantíssimo e seu trabalho é um primor na transição do personagem que começa um tanto patético em seu transtorno obsessivo compulsivo e mania de limpeza, mas que aos poucos se torna cada vez mais desleixado e indiferente ao que está ao seu redor (lendo assim parece até que matar é também o seu tratamento). Sua expressão muda, sua voz se transforma e sua postura se torna cada vez mais segura, mesmo que o filme se torne bastante exaustivo quando se aproxima de sua segunda hora de projeção. Haja paciência (e estômago) para ver algumas cenas. Ao final, Trier se rende de vez às alegorias de sua narrativa e leva seu personagem diretamente para o inferno, rendendo um dos desfechos mais interessantes da obra do cineasta. O resultado é um verdadeiro pesadelo. Pontuado várias vezes com o hit Fame de David Bowie (que ao final cede espaço para outro clássico, que só confirma como o humor de Trier é tóxico), A Casa que Jack Construiu não é uma pedra no sapato, é um punhal mesmo.
A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built/Dinamarca, França, Alemanha, Suécia - 2018) de Lars Von Trier com Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman, Riley Keough, Jeremy Davies, Sioban Fallon Hogan e Sofie Gråbøl. ☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário