Lynch: enfrentando os temores do passado.
O primeiro filme que vi de David Lynch foi Coração Selvagem (1990) e tive a impressão de que não entendia nada do que estava acontecendo, mas não conseguia parar de assistir. A partir dali percebi que Lynch era um sujeito diferente. Infelizmente ele andava sumido até aparecem em Cannes neste ano para divulgar a terceira temporada da série Twin Peaks depois de um hiato de vinte e seis anos sem episódios. Lynch foi tão aplaudido quando exibiu os dois primeiros episódios da série que dava gosto de ver o seu sorriso. Desde o viajandão Império dos Sonhos (2006) que ele não lança um filme, no entanto, não parou de trabalhar. Dirigiu vídeos, curtas, clipes (para Moby, Interpol, Nine Inch Nails...), produziu algumas músicas e dedicou-se ainda mais às artes plásticas. Este documentário de Jon Nguyen destaca o envolvimento do artista com esta sua carreira paralela, ressaltando este seu gosto desde a infância quando a mãe deixava que ele desenhasse o que bem entendesse ao invés de pintar livros de gravuras. Se por um lado os fãs podem sentir falta de maiores comentários sobre seus filmes (e todo mundo sabe que Lynch não curte falar muito sobre seu cinema cheio de mistérios), por outro, poderão entender muito sobre o estilo peculiar do celebrado cineasta. Na entrevista que perpassa todo o filme, conhecemos a sua história de típico menino americano de um lar confortável ao lado da família no estado de Montana. Desta criação que surgiu o seu lado mais cavaleiro, educado de fala calma e inofensiva. No entanto, desde pequeno, Lynch precisou acompanhar sua família por várias cidades americanas e não há como não perceber o tom sombrio com que pinta Filadélfia ou alguns vizinhos cujas imagens o assombram até hoje (sobre um deles ele sequer consegue contar o que houve de tão chocante). As coisas não estavam muito bem com as pessoas que conhecia pelo caminho, mas ao conhecer o pai pintor de um amigo que Lynch percebeu uma forma de extravasar seu olhar peculiar sobre o mundo. Foi através dos desenhos que o adolescente começou a construir sua identidade artística - e o gosto pelo que a maioria das pessoas consideraria sombrio, bizarro e até grotesco. Nos comentários de Lynch podemos perceber os pontos de onde nasceram vários traços de seus filmes, as estradas perdidas, as trocas de identidade, os mundos paralelos, os personagens pesadelescos, as narrativas sombrias com a presença do desconhecido sempre à espreita. É curioso como o filme fala pouco da atual vida particular do artista (no máximo percebemos que ele tem uma filha pequena, hoje com cinco anos). O filme concentra-se especialmente na vida de David ao lado dos pais e dos irmãos. Não deixa de ser tocante quando na adolescência ele percebe que a mãe está decepcionada pelos caminhos que seguiu, ou o pai chocado perante o que ele guarda em seu ateliê particular - com frutas em decomposição e outras coisas que estavam ali apenas para ser observadas em sua destruição. Ali, fica claro que Lynch não tem pudores em enfrentar o que causa medo na maioria das pessoas, ele enfrenta esses elementos e os transforma na matéria prima de seus trabalhos surrealistas. Nos seus primeiros curtas, percebe-se como a transição das telas de pintura para as telas de cinema ocorreu de forma bastante natural, tendo em sua cultuada estreia em Eraserhead (1977) como o retrato em movimento do seu mundo particular. O filme termina neste ponto e se você considera a obra de Lynch perturbadora é melhor nem assistir, mas se você quer conhecer um pouco mais da história por trás de suas referências, torna-se um programa imperdível.
David Lynch: A Vida de Um Artista (David Lynch - The Art Life/EUA-Dinamarca/2016) de Jon Nguyen com David Lynch. ☻☻☻
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