David Lynch é um dos meus cineastas favoritos. Podem chamá-lo de picareta, enganador, pervertido que não estou nem aí. Podem me tacar pedra na rua, mas ainda acho que um cineasta de verdade é aquele capaz de construir narrativas inesquecíveis que ficam gravadas em nossa mente e não apenas um sujeito que diz “Ação” para os atores cuspirem o texto decorado diante de uma câmera. Lynch é um dos mestres da sétima arte e reconhecido como o pioneiro do surrealismo cinematográfico estadounidense, embora esteja desiludido ultimamente com a forma como os filmes de autor têm sido tratados em seu país (tanto que não lança um longa desde sua homenagem no Festival de Veneza em que lançou o radical Império dos Sonhos/2006), podemos perceber a influência do universo Lynchiano em sucessos recentes como A Origem de Chris Nolan, Cisne Negro de Darren Aronofsky além dos roteiros de Charlie Kauffman. Na década de 1990 o diretor foi convidado a realizar um programa para a televisão – numa época em que se alguém migrar do cinema para a TV era visto como decadência em Hollywood. Lynch se juntou ao parceiro Jack Frost para construir a história de um programa que recebeu carta branca da rede ABC (que estava à beira da falência) para fazer o que quisesse. Twin Peaks foi ao ar na páscoa de 1990 e fez história batendo recordes de audiência com um piloto de duas horas de duração (contando os comerciais) e uma pergunta que assombrava a audiência: “Quem matou Laura Palmer?”
Sempre me impressiono com o clima construído por Lynch em suas obras. Admiro a forma como consegue conduzir o lado sombrio de suas histórias com uma plasticidade que nos faz pensar porque cinema é uma arte. Digo cinema, apesar de ser um projeto televisivo, porque Twin Peaks foi pioneira a levar planos e ritmos cinematográficos para a TV. Muito do que vemos com sucesso na TV hoje, se deve a esse hibridismo pioneiro proposto por Lynch/Frost. Não serei o primeiro nem o último a dizer que sem Twin Peaks não existiria Arquivo X, Fringe e Lost (que flertam mais abertamente com a linguagem Lynchiana). Atrevo-me a dizer que sem Twin Peaks não existiria a possibilidade de produzir séries do porte cinematográfico de Família Soprano ou Six Feets Under, até mesmo as recentes aventuras televisivas de cineastas como Scorsese (Boardwalk Empire), Todd Haynes (Mildred Pierce) e Frank Darabonts (The Walking Dead). Acho que não preciso dizer mais sobre a importância de Twin Peaks sobre a cultura pop e sua influência na qualidade da TV americana. A série fez história com sua trama cheia de camadas, interpretações, crimes e mistérios e mostrou algumas das cenas mais estranhas que já foram feitas para a telinha. Twin Peaks é uma cidadezinha americana fictícia que fica perto do Canadá, a abertura da série explora a melancolia da trama com suas locações e trilha sonora. Pássaros, árvores e cascatas são mostrados evidenciando o aspecto bucólico do lugar, não precisa muito mais do que isso para percebemos que trata-se de uma cidade tranqüila com pouco mais de cinqüenta mil habitantes. A paz do lugar é ameaçada pela morte de uma jovem popular na cidade, Laura Palmer (Sheryl Lee) e a chegada de um agente do FBI que começa a deixar a população nervosa - já que qualquer um pode ser o assassino e, por isso mesmo, suas vidas são vasculhadas em busca de evidências, com isso as excentricidades e segredos de seus personagens ganham cada vez mais força. Kyle MacLachlan (um dos atores favoritos de Lynch que esteve presente no cultuado Veludo Azul/1986 e o mal compreendido Duna/1984) interpreta magistralmente o agente excêntrico Dale Cole, que busca uma resposta para o crime. Nesse processo conta com parceiros fiéis como o delegado Harry (Michael Ontkean), o policial chorão Andy (Harry Goaz) e a secretária tagarela Lucy (Kimmy Robertson). A lista de suspeitos é gigantesca e no piloto da série eles são expostos - sem perder de vista que Palmer era uma garota que guardava segredos perigosos em sua vida amorosa, envolvendo drogas e prostituição. O piloto da série coloca todas as fichas da série na mesa e o sucesso fez com que Lynch e Frost fossem convidados a dar continuidade ao projeto, com uma temporada de sete episódios que fez história na TV.
TWIN PEAKS - PILOTO: "NORTHWEST PASSAGE" (1990)☻☻☻☻☻
TWIN PEAKS - PILOTO: "NORTHWEST PASSAGE" (1990)☻☻☻☻☻
Os mocinhos: flerte com o sobrenatural e com belas mulheres.
A primeira temporada de Twin Peaks virou uma febre, foi a mais falada, a mais comentada e badalada da década de 1990. Elegeu musas em seu núcleo jovem (as saborosa Lara Flynn Boyle era a melhor amiga de Palmer e a suculenta Sherilyn Fenn era a colegial perigosa que morre de amores pelo agente Cole - ambas conseguiram até alguns projetos no cinema depois que a série terminou) e deu oportunidades para que Lynch ampliasse seu público em cenas hipnoticamente bizarras como as do sonho de cortinas vermelhas de Cole, o anão que fala e se move ao contrário, além de sugerir a existência de um mal existente que independe da vontade de quem o pratica. Além de todos os mistérios e audácia narrativa o que mais enche os olhos ao ver a primeira temporada é a qualidade da trama. São tantas camadas, referências e subtextos que é irresistível a atmosfera construída pela produção – sem falar que o filme dialoga diretamente com as outras obras do diretor (a presença dos sonhos, as alucinações, as fendas e orifícios, a duplicidade bem/mal, anjo/demônio de seus personagens, gritos, silêncios, trilha sonora magnífica de Angelo Badalamenti). Há muito de filosófico na série – e as introduções dos capítulos realizadas pela Mulher do Tronco (Catherine Coulson) é um bom exemplo disso. No último capítulo da temporada todos os ganchos possíveis para a segunda foram lançados. Porém, apesar de todas as expectativas e ideias lançadas o seriado teve uma queda brutal de audiência e perdeu muitas de suas qualidades nos episódios seguintes. Acho que o fato de ter 22 episódios fez com que tudo perdesse o ritmo e se tornasse exaustivo demais, isso sem falar pelos outros problemas enfrentados no caminho. A curta primeira temporada sobre a supervisão de Lynch/Frost deu a oportunidade para que vários diretores exercitassem sua criatividade narrativa durante a produção dos episódios – e para manter os mistérios os atores recebiam somente trechos de cada episódio. Tudo funcionava perfeitamente até que os exageros desenfreados acabaram destruindo a originalidade do seriado no ano seguinte. A obscuridade e o estranhamento constituíam a alma e a certa dose de humor de Twin Peaks.
TWIN PEAKS - PRIMEIRA TEMPORADA (1990) ☻☻☻☻☻
TWIN PEAKS - PRIMEIRA TEMPORADA (1990) ☻☻☻☻☻
Palmer: anjo ou diabo?
Curiosamente enquanto a primeira temporada virava mania pelo mundo, era exibida a segunda em que o seriado acabou se tornando uma autoparódia. A segunda temporada vale ser vista somente pelos primeiros e últimos capítulos (o que deve somar mais ou menos o número de episódios da primeira). Lynch falou muito que o assassino jamais deveria ser revelado, essa dúvida era a grande alma do programa, ela percorria todas as subtramas e fazia os personagens tão interessantes, afinal, enquanto não provassem a inocência perante o público, todos eram culpados. Nos primeiros episódios da segunda temporada descobrimos quem matou Laura Palmer – e apesar da descoberta do assassino lançar um novo mistério na trama, este mostrou-se menor para o interesse do público. Também não ajudou o fato de (por problemas interpessoais) não avançarem no novo foco da temporada: o envolvimento de Audrey (Sherilyn Fenn) e o agente Cole (MacLachlan), juntando isso ao distanciamento (por pirraça da revelação do assassino de Laura?) de Lynch (que zelava por Coração Selvagem/1990) e Frost (que investia em seu primeiro longa metragem) fez com que tudo saísse do eixo, com esquisitices vazias, piadas em exagero, personagens subaproveitados, resgate de outros que ninguém lembrava e um exagero de convidados especiais que fez tudo parecer uma novelinha aguada com direito a doninhas agressivas, mulheres caolhas com super-poderes e um rival do passdo de Cole que parece saído de um filme dos Trapalhões. Tudo que a série havia conquistado foi para o lixo e as constantes mudanças de horários não ajudava. É chocante o desleixo com que a série foi tratada no meio desta temporada. Diante do abacaxi, Lynch e Frost tomaram as rédeas da coisa na reta final, tentando evitar o inevitável, quando a temporada chegou ao seu derradeiro episódio final tentou se resgatar o clima inicial, os mistérios e as ideias presentes no subconsciente de seus personagens (mesclando o bem e o mal na figura confiável do agente Cole num gancho para a terceira temporada que nunca foi produzida). O último episódio é um dos melhores da série e deixou claro, que não é qualquer um que pode brincar de David Lynch. Afim de dar um final digno para sua obra, Lynch realizou o filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire walk with me / 1992) que padeceu com críticas pífias e que alegavam ser mais do mesmo, mas os fãs da primeira temporada gostaram do filme e perceberam novas revelações sobre os personagens que acompanharam em uma das séries mais inventivas de todos os tempos - para quem leu o livro do cineasta sobre meditação, a série fará ainda mais sentido. TWIN PEAKS - THE DEFINITIVE GOLD BOX EDITION traz muitos extras sobre (participação no Saturday Night Live, comerciais, entrevistas...) mas não conta com a participação de todos os atores (será que ficaram magoados com o processo de banalização da série?), é um box de colecionador que só não é mais completo por conta de não conter o longa dirigido por Lynch no ano seguinte em que a série terminou (o qual fico devendo uma resenha, mas diante do meu maior post de todos os tempos acho que você não vai se importar...).
TWIN PEAKS - SEGUNDA TEMPORADA (1991) ☻☻
TWIN PEAKS - EXTRAS ☻☻☻☻
TWIN PEAKS - SEGUNDA TEMPORADA (1991) ☻☻
TWIN PEAKS - EXTRAS ☻☻☻☻
TWIN PEAKS – THE DEFINITIVE GOLD BOX EDITION (2010) produzido por David Lynch e Mark Frost, com Kyle MacLachlan, Sheryl Lee, Lara Flynn Boyle, Sherilyn Fenn, Ray Wise, Richard Beymer, Grace Zabriskie, Joan Chen, Piper Lauren, Mädchen Amick, David Lynch e David Duchovny.