terça-feira, 9 de agosto de 2011

FILMED+: Dogville | Manderlay


Kidman e Bettany: olho por olho na cidade que morde.

Lars von Trier já era conhecido por suas ousadias quando realizou o primeiro episódio de sua trilogia América. Quando Dogville foi lançado o diretor já não era associado somente ao movimento Dogma95, seus filmes lhe já lhe rendiam fama suficiente para chamar a atenção ao redor do mundo. Mas foi  Dogville que transformou cada lançamento seu num evento e isso vitimou até a segunda parte da trilogia: Manderlay. Não vou me deter nas comparações entre um filme e outro, mas pretendo me concentrar na essência que os une, os tornando parte de uma ideia única e genial. Concordo que Lars não é um sujeito fácil e que suas obras beiram a arrogância (especialmente quando se perde em suas críticas aos EUA), mas Dogville é uma das coisas mais impressionantes que já vi. Pra começar é um filme sem cenário, com riscos num tablado e apenas alguns objetos em cena, mas apesar de não ter portas em cena, o barulho das maçanetas está lá. Dogville e Manderlay contam partes da trajetória da mesma personagem: Grace. Em Dogville, Grace é vivida de forma esplêndida por Nicole Kidman, que havia acabado de receber seu Oscar por As Horas (2002) e aqui apresenta um trabalho que muitos consideram o seu melhor momento. Grace aparece na cidade de Dogville durante a depressão americana na década de 1930. Quando aparecem em cena tão bem vestida disputando um pedaço de carne com um cachorro, sabemos que as coisas não andam fáceis. Grace não faz ideia de que servirá de cobaia de um experimento social construído por Tom (Paul Bettany, excelente) que mostra-se esclarecido o suficiente para perceber os preconceitos escondidos pelos habitantes de Dogville. Aos poucos Grace começa a fazer serviços para os habitantes em troca de refúgio e conforme os habitantes percebem que Grace depende do silêncio para permanecer livre começa o abuso. Se antes já era explorada, Grace passará por todo tipo de violência - da humilhação à tortura física e psicológica - em meio aos habitantes miseráveis de Dogville. Neste ponto, a opção de Lars de abolir as paredes de seu cenário é perfeitamente compreensível, uma vez que indica exatamente o que vemos: todos sabem o que acontece com Grace dentro das casas da cidade. A ideia é de uma vigilância constante e sufocadora que cresce em meio à crueldade dos habitantes e a passividade de Grace. Nem mesmo o romance com Tom sairá imune dos acontecimentos que prometem levar Dogville à ruína. Numa simbologia religiosa, o roteiro batiza o cão da cidade com o nome de Moisés, lembrando que a lei que impera ali é a do "olho por olho e dente por dente". Dogville foi o filme mais comentado do ano em que foi lançado, adorado por críticos e cinéfilos, deve ser odiado em igual medida pelos que não apreciam as opções radicais de seu diretor. Por outro lado Manderlay foi recebido com total frieza pela muita gente que adorou Dogville.

Dafoe e Bryce: racismo, chicotadas e ironias.

Se Dogville aborda questões voltadas para o preconceito e as relações de poder, Manderlay radicaliza esse conceito voltando à uma mancha ainda não totalmente digerida pelas sociedades contemporâneas: a escravidão. Após os acontecimentos em Dogville, Grace (agora vivida por Bryce Dallas Howard) parte para  com seu pai (Willem Dafoe no papel que era de James Caan no anterior) para outras terras e acaba se deparando com uma fazenda onde ainda existem escravos. Grace, mais uma vez resolve ajudar um grupo de pessoas a superar suas dificuldades. Sabendo que a dona da fazenda está falecendo (Lauren Bacall) resolve assumir as rédeas dos escravos libertos para que consigam se organizar num regime democrático e livre. Lidar com o racismo exige muito cuidado, mas Lars parece não dar a mínima para isso. Seu roteiro é de uma ironia que muitos o consideraram racista pelo que se vê na tela: os negros só podem se organizar sobre a liderança de uma branca. Engraçado como isso num filme de um cineasta tão provocador soou como uma ofensa aos estômagos mais sensíveis, mas em filmes como Avatar (2009) esta atitude passa como heroísmo. Sem notar as ironias do roteiro, realmente Manderlay ofende, mas é nas entrelinhas que o filme fica ainda mais interessante. Cena que ilustra bem esta missão destinada ao fracasso é quando os ventos destroem a plantação porque Grace ignorou as tradições do lugar, como pode esta visitante saber o que é o melhor a ser feito?  Depois dos fatos ocorridos em Dogville, Grace parece descontrolada,  sua síndrome de dona da verdade está mais aguçada do que antes e não percebe o quanto sua própria postura é arrogante e preconceituosa diante das pessoas que pretende ensinar a democracia. Nessa trajetória sobra situações grotescas, como a cena em que pinta os herdeiros da fazendeira de preto para que sejam ridicularizados ou quando realiza uma votação para que um determinado personagem não incomode mais com suas risadas. "Isto é democracia"! Diz animada, daí para implementar a pena de morte não falta muito... Sem medo de cara feia, Manderlay ainda brinca com estereótipos comuns na relação da sociedade ocidental com os negros ("escravos eram príncipes em sua terra natal", "os negros são sexualmente mais vigorosos"...) e desmonta esses clichês sem receios. Mas a ironia maior é Grace soltando a escravocrata que tem dentro dela após perceber que já havia uma estrutura social ali e que só ela não percebia. Manderlay consegue ser ainda mais provocador do que Dogville, mas entendo que perde pontos por não ter o mesmo impacto visual (afinal, deixou de ser novidade). Outro aspecto que faz muita falta é a atuação de Kidman (por mais que Bryce se esforce ela não tem a potência dos olhos traiçoeiros de Nicole) e o fato do filme ser mais escuro (Lars não se deu conta de que as paredes negras não deixavam a luz se propagar) não ajuda a perceber as nuances da atuação de Bryce. São essas razões que fazem Dogville ser melhor do que Manderlay, mas são razões modestas diante do brilhantismo do cinema de Lars que ambos se completam e repelem com brilhantismo. Ao ver Dogville/Manderlay é impossível não desejar que Lars crie logo a conclusão de sua saga, mas Wasington anda engavetado por tempo indeterminado.    

Dogville (Dinamarca/Suécia/Reino Unido e outros/2003) de Lars Von Trier com Nicole Kidman, Paul Bettany, Lauren Bacall, Chloë Sevigny, Patricia Clarkson, Jeremy Davies e Stellan Skaarsgaard. ☻☻☻☻

Manderlay (Dinamarca/Inglaterra/França e outros - 2005) de Lars Von Trier com Bryce Dallas Howard, Danny Glover,  Willem Dafoe, Jeremy Davies e Chloë Sevigny. ☻☻☻☻

Nenhum comentário:

Postar um comentário