sexta-feira, 21 de março de 2025

CATÁLOGO: Encaixotando Helena

Sands e Fenn: thriller erótico ou suspense bizarro?

Não estava nos meus planos escrever sobre este clássico das locadoras dos anos 1990, mas como planejei fazer uma retrospectiva de David Lynch ao longo do ano, achei que seria de bom tom comentar o filme de estreia de sua herdeira, a cineasta Jennifer Lynch. Jennifer atualmente trabalha de forma recorrente dirigindo episódios de séries de TV (como American Horror Story, Ratched e Capote Vs The Swans) e demonstrava desde o início um gosto e estilo bastante peculiares para contar histórias (que logo disseram ser influência do pai). Seu primeiro longa metragem chamou atenção antes mesmo de estrear por conta da desistência da estrela Kim Basinger em protagonizar o filme, foi alegada uma quebra de contrato que gerou um processo milionário. Vale a pena lembrar que o filme foi concebido em meio aos anos 1990 e com todo o sucesso de Instinto Selvagem/1992 (que Kim também rejeitou o papel que acabou ficando com Sharon Stone), todo mundo estava atrás de um thriller erótico para chamar de seu (até Madonna cometeu Corpo em Evidência/1993 no mesmo ano deste aqui e teria interpretado Helena se não tivesse Evita nos planos). Foi o período em que o puritanismo de Hollywood cedeu espaço ao erotismo em nome de bilheterias robustas, mas ao invés disso, muitos fracassos se seguiram (incluindo o filme seguinte de Sharon Stone, Invasão de Privacidade também de 1993 - um ano agitadíssimo como se percebe). Eis que Jennifer Lynch, com todo o peso de seu sobrenome, consegue tirar do papel seu roteiro (escrito ao lado de Phellipe Calland) sobre uma paixão obsessiva que motiva ações bizarras. Quando o filme começou a ser exibido a crítica o massacrou (e houve até aquele famoso comentário de que os nove milhões que Kim precisou pagar para sair do filme valeu cada centavo). A maioria das críticas se deve à audácia da diretora estreante de 24 anos contar uma história tão abusiva com um verniz tão sensual. A trama conta a história de Nick (Julian Sands), um médico cirurgião obcecado por Helena (Sherilyn Fenn), uma mulher com  quem manteve um relacionamento no passado. Só que Helena seguiu em frente e já possui até outro namorado (Bill Paxton), mas Nick ainda deseja reconquistá-la. Quando ele percebe que não tem chances, ele a sequestra e a leva para sua mansão. Até aí a trama lembra outras centenas que já vimos, a diferença é que para ela não ir embora, ele começa a amputar seus membros. A estratégia chocante do personagem é apresentada em contraponto com toda a ambientação do filme repleta de jardins, cortinas, velas, trilha sonora e fotografia luxuriante. Toda a estética do filme remete aos filmes eróticos que tentavam parecer chiques no período. Além da direção de arte referencial, não faltam cenas picantes para endossar semelhanças com o gênero impróprio para menores. O longa deu o que falar nos meus tempos de escola (imaginem, eu tinha menos de quinze anos na época que o filme foi disponibilizado por aqui) e a mistura de filme de terror (qual outro gênero falaria de amputação tão desavergonhadamente?), suspense e erotismo aguçava a curiosidade. Vale dizer que a performance de Sherilyn Fenn que segura o filme. A atriz (que ganhou fama pela beleza e por seu trabalho na série Twin Peaks concebida pelo pai de Jennifer), tem um trabalho marcante com todas as limitações físicas que possui no filme (e os efeitos especiais feitos em seu corpo são desconfortáveis de tão impressionantes). Visto com o distanciamento permitido nos dias de hoje, Encaixotando Helena mantém seus deslizes, mas traz elementos interessantes se não percebermos sua trama como algo literal, mas como uma metáfora para um relacionamento abusivo em que a vítima se percebe impossibilitada de se afastar do abusador. A dinâmica entre Nick e Helena torna-se ainda mais incômoda por conta da dependência que ela passa a ter de um sujeito sádico desequilibrado que a percebe como propriedade de seu desejo. Falando em desejo, Jennifer ousa mais ainda ao expor não apenas a nudez de suas atrizes, mas de seus atores também, com direito até a nu frontal de Bill Paxton (algo raro para o período). É um tema bastante sério tratado com uma atmosfera sexual inusitada e Jennifer Lynch pagou um preço alto por isso, voltando a dirigir outro filme somente quinze anos depois (com o policial Sob Controle/2008 que foi exibido no Festival de Cannes). O mais curioso é perceber que a Helena se relaciona com problemas de saúde enfrentados pela própria cineasta, já que Jennifer nasceu com uma deficiência nos pés que a impossibilitava de engatinhar, quando bebê, ela se arrastava e quando cresceu precisou de uma barra de metal entre os tornozelos para conseguir se locomover. Ela passou por quatro cirurgias e usava sapatos ortopédicos até os doze anos. Se a situação parecia resolvida, ela piorou novamente quando foi atropelada aos 19 anos, o que comprometeu sua espinha dorsal e a fez passar por novas cirurgias. Foi neste período que ela escreveu Encaixotando Helena e o impregnou de seus temores mesclado à sexualidade ainda latente da adolescência. Pelo filme, Jennifer Lynch ganhou o Framboesa de Ouro de pior direção daquele ano, mas ainda hoje aparenta orgulho de sua obra de estreia. Foi tão ousado e corajoso quanto estranho. Muito estranho. 

Encaixotando Helena (Boxing Helena / EUA - 1993) de Jennifer Lynch com Sherilyn Fenn, Julian Sands, Bill Paxton, Kurtwood Smith, Art Garfunkel, Betsy Clark e Nicolette Scorsese.

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