Jack Nance: alter-ego de David Lynch em estreia perturbadora.
Acho que é lugar comum falar da estranheza nos filmes de Davi Lynch. O diretor que nos deixou no início de 2025, sempre fez questão de construir em seus filmes um tom sinistro, quase sempre pesadelesco, que servia de verniz para personagens que viviam em suas vidas comuns, geralmente com uma estética que lembrava muito o cinema feito antes dos movimentos de contracultura (mais ou menos por ali entre os anos 1950 e início dos 1960). Lynch criava assim uma espécie de choque imagético, uma característica que fez do seu cinema algo único, diferente, inusitado, surreal e brilhante (tanto no sentido de genialidade quanto na capacidade de ter o brilho próprio de se renovar a cada nova visita e releitura de uma obra). Esta marca já está evidente em seu primeiro filme, Eraserhead, que foi um fiasco de público justamente por romper com o realismo tão presente no cinema dos EUA. Imagina que você está em 1977, a nova Hollywood estava latente com nomes feito Spielberg, de Palma, Coppola, Scorsese e no meio dos lançamentos do primeiro Star Wars, das danças de Os Embalos de Sábado a Noite, dos efeitos de Contatos Imediatos do Terceiro Grau e da graça (posteriormente oscarizada) de Noivo Neurótico e Noiva Nervosa você de deparasse com um filme em preto e branco, com um homem de topete gigantesco às voltas com uma série de personagens estranhos, incluindo, um filho que nasceu parecendo tudo, menos um bebê? Revisitei recentemente Eraserhead porque sempre tive receios de escrever sobre ele, já que, posso dizer que é o filme mais estranho de Lynch (mais do que Império dos Sonhos/2006 que fica em um honroso segundo lugar e, ironicamente, é seu último longa) e sempre deixa a sensação de que nunca serei capaz de entendê-lo completamente (mas também acho que a graça está justamente aí, já que David odiava explicar seus filmes e deixava que os espectadores divagassem sobre o que se via na tela). O longa revela-se cada vez mais sensorial ao mesmo tempo que afasta-se de ser apenas um filme experimental de um estudante de cinema. O filme conta a história de Henry (Jack Nance), um homem que vive em um pequeno apartamento em uma área industrial abandonada. Ele engravidou a namorada e por conta disso teve que casar e, agora, os dois precisam cuidar de um bebê que chora o tempo inteiro e tem uma aparência, digamos, diferente do que se esperava. A narrativa é conduzida por todo o desconforto do protagonista em uma realidade completamente onírica e surrealista, com personagens estranhos que movimentam um filme anticonvencional, mas que traz simbologias que nos fazem perceber a relação daquilo tudo com a fertilidade, a paternidade, o destino de um filho e relações familiares. Lynch já era apaixonado por artes plásticas quando realizou o filme (com o apoio da American Film Institute, instituição em que estudava) e isso explica muito das texturas que o filme experimenta diante da câmera. Com o tempo, todas as ressalvas feitas ao filme em sua estreia garantiram uma curiosidade ao redor da produção e uma aura de filme cult, sobretudo quando ao longo do tempo vimos a forma como Lynch pensa seu cinema e as sensações que pretende despertar na plateia. Algumas marcas de seu cinema (os personagens misteriosos, o chão xadrez, as cortinas, o palco do inconsciente...) já aparecem por aqui e quem conhece a vida particular do diretor, relaciona Henry e seu filho com a própria situação do diretor perante um problema de saúde vivenciado por sua primogênita logo após o nascimento. O peso da responsabilidade e da insegurança devido àquela situação parece ter sido a maior inspiração para todos os temores que atravessam a narrativa (ternamente) perturbadora do filme.
Eraserhead (EUA - 1977) de David Lynch com Jack Nance, Charlotte Stewart, Allen Joseph, Jeanne Bates, Leurel Near e Jack Fisk ☻☻☻
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