Shannon: mais um louco em seu currículo?
A quem pertence a verdade? Essa é a pergunta que fica em nossas mentes quando acabamos de assistir o sensacional segundo filme do cineasta Jeff Nichols (de Shotgun Stories/2007). Ganhador de três prêmios em Cannes2011 (Semana da Crítica; Quinzena dos Realizadores; SACD) o filme merece a atenção pela forma como mistura uma série de ingredientes numa atmosfera tão cheia de suspense quanto dramática. Não é fácil realizar um filme que flerta o tempo inteiro com a loucura temperada com a recém paranoia americana. Nichols mostra-se um realizador competente (e seu novo filme, Mud exibido em Cannes já é um dos favoritos ao próximo Oscar). O filme conta a história de Curtis (Michael Shannon, ganhador de vários prêmios da crítica), um homem comum que mora com a esposa e a filha surda no estado de Ohio nos Estados Unidos. Curtis trabalha numa construtora e a esposa, Samantha (Jessica Chastain) tenta ajudar nas despesas da casa com a venda de bordados nem sempre valorizados na feira local. O casal parece ter chegado ao ponto cômodo do casamento, onde possuem uma fina sintonia e a maior preocupação é com o tratamento da filha (assegurado pelo plano de saúde proporcionado pela empresa em que Curtis trabalha). Mesmo que existam alguns desentendimentos, fica difícil duvidar do amor entre os dois. Um personagem chega a mencionar que Curtis tem uma vida perfeita - pena que quando pesadelos começam a perturbar o sono dele as coisas mudam. Afinal, são mais do que sonhos, "são sensações". Essa angústia nascida nos sonhos permanece nos dias de Curtis. Tempestades apocalípticas, homens misteriosos querendo fazer mal à sua filha, pássaros em voos desgovernados, o filme borra a noção de sonho e realidade à medida que percebemos que nem Curtis consegue definir o que é uma coisa ou outra. Essa estranheza acaba ressuscitando seu maior fantasma familiar: o diagnóstico de esquizofrenia aos trinta anos de sua mãe (Kathy Baker). Curtis tem trinta e cinco. O protagonista tem tanto medo de enlouquecer quanto de seus sonhos serem premonitórios. O personagem começa a ter estranhas atitudes para evitar que seus pesadelos se tornem realidade, até que decide reformar reformar o abrigo de tornados que possui no quintal. É neste momento que as coisas se complicam, já que o personagem parece caminhar, cada vez mais, para a ruína que tenta evitar. Mesmo que eu considere que o filme poderia ser um pouco mais curto, o diretor Nichols mostra-se extremamente hábil na condução da trama. Michael Shannon está excepcional em mais um papel estranho. Seus olhos grandes, presos no rosto de traços duros, conseguem exalar uma melancolia que dificilmente outro ator conseguiria na mistura de medo e loucura necessária ao personagem. Shannon compõe seu personagem a partir da premissa de um pai de família devotado que procura evitar que uma tragédia aconteça. Jessica Chastain também merece elogios, no papel da esposa de Curtis. Não há dúvidas de que ela foi a maior atriz surgida no ano passado, aqui ela consegue manter o equilíbrio entre emoções tão distintas quanto amor, revolta e compreensão. O efeito do casal em cena cresce lentamente e chega ao auge na espetacular cena em que Curtis enfrenta toda a cidade num jantar. Ali ele parece mais um profeta do que louco. Afinal, o que diferencia um do outro nos tempos atuais? A cena é tão arrepiante que eleva o último ato a outro patamar, tornando suas ações imprevisíveis. Com narrativa lenta e silenciosa, a explosão de Curtis é o anúncio de que talvez ele não seja louco e que no fundo ninguém quer aceitar que ele está certo. Ou então, que ele está prestes a cometer a maior de suas loucuras... "Há uma tempestade se aproximando", na verdade ela está na mente do personagem o tempo inteiro. É interessante como o roteiro desenvolve a ideia do abrigo exalando segurança e medo - e a sequência em que Samantha tenta convencê-lo a sairem daquele cubículo é um dos mais belos duetos do ano passado. Os reclamões podem até dizer que o cara já está se repetindo em criar personagens doidos, afinal ele já foi até indicado ao Oscar de coadjuvante pelo papel do vizinho que gosta de dizer mais verdades do que deveria no subestimado Foi Apenas um Sonho (2008) depois de viver o pirado nada beleza em Possuídos (2006), mas a performance dele aqui é devastadora! Não lembro de ter visto um ator construir um personagem com tanta consciência diante da loucura eminente. Sua capacidade de transmitir a desordem emocional do personagem é fascinante. Imortalizado em nossas mentes após a sequência final, onde a praia paradisíaca remete à pergunta que escrevi no início desta postagem, o filme deixa o público com um nó na garganta.
O Abrigo (Take Shelter/EUA-2011) de Jeff Nichols com Michael Shannon, Jessica Chastain, Tova Stewart e Kathy Baker. ☻☻☻☻