Morse e Björk: o musical segundo Lars Von Trier.
Sócio de carteirinha no Festival de Cannes, Lars von Trier sabe que não precisa ganhar prêmios no festival para garantir uma bela carreira internacional para seus filmes. Afinal, Dogville (2003) e Anticristo (2009) não precisaram ganhar a Palma de Ouro para se tornarem notícia em todo o mundo. Vale lembrar que Trier levou o maior prêmio do Festival para a casa com Dançando no Escuro, o musical mais esquisito que um cineasta já ousou fazer. O mais irônico e que sua linguagem acabou servindo de referência para outros filmes do gênero que não sabiam como adaptar o gênero para o público que não curte personagens cantarolando pelas ruas (como aconteceu com Chicago/2002, que mal consegue disfarçar a ideia chupada de Trier de que os números musicais acontecem na mente de sua protagonista). Dançando no Escuro além de ser aclamado como o melhor filme de Cannes no ano 2000, ainda foi lembrado na categoria de melhor atriz pelo desempenho esforçado da cantora islandesa Björk. A cantora é Selma, uma imigrante tcheka que trabalha como operária numa metalúrgica no EUA durante a década de 1960. A proletária guarda boa parte do seu pagamento para pagar uma cirurgia em seu filho, que assim como ela, está condenado por uma doença degenerativa a visão até que se torne totalmente cego. Este objetivo faz com que Selma viva de forma modesta, morando num trailer, com roupas gastas, resistindo aos apelos de uma admirador (Peter Stormare) e não atendendo a pedidos de seu filho (como, por exemplo, ter uma bicicleta). Para lidar com essa vida sofrida, a protagonista começa a imaginar que sua vida é um musical como aqueles produzidos na época de ouro de Hollywood e os quais assistia em sua terra natal. Só que o musical da vida de Selma tem as músicas mais estranhamente (cortesia dos efeitos eletrônicos dos quais Björk é expert) tristes do gênero (destaque para a indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro I've seen it all, onde canta as atrocidades que viu durante sua vida condenada à cegueira). O que não impede que sua situação piore cada vez mais. Nada no filme de Trier é posto ali de graça. Bom em lidar com simbologias, o diretor não coloca o senhorio de Selma como policial por acaso (David Morse, compentente como sempre) - e que ceda sempre aos apelos da esposa que quer ostentar uma vida mais luxuosa do que está ao alcance. Para o senhorio, não é nada demais roubar as economias de Selma para comprar um sofá desejado por sua esposa, pena que o incidente acarretará um acidente que levará Selma para a prisão. Trier constrói aqui um de seus maiores melodramas hardocores, com números musicais que parece dizer a todo instante o quanto é ridículo se iludir diante de uma realidade cada vez mais predatória. Para o diretor cinema está longe de ser diversão. Obviamente que se trata de mais uma de suas críticas ao modo de vida americano e seu consumismo desenfreado, incapaz de perceber as angústias de quem apenas sobrevive entre as desigualdades sociais estabelecidas. Além dessa ideia recorrente na cinematografia do cineasta, outro fator que surpreendeu muita gente foi a total negação que o longa realizava do manifesto Dogma95 (aquele que proibia créditos iniciais, trilha sonora, uso de luz artificial...), afinal um musical é algo impensado dentro do movimento. Dançando no Escuro pode ser visto como uma grande provocação ao capitalismo ou um grande exercício de paciência para o expectador - não por acaso os americanos odiaram o filme. Nos idos do ano 2000, Cannes entendeu que Trier possui uma ousadia assustadora em conduzir suas narrativas, universalizando contextos e arrancando atuações inspiradas de suas atrizes. No entanto, seu trabalho com Björk foi o mais controverso, já que a cantora deixou bem claro que teve muita dificuldade em lidar com o processo diretivo de Trier (o chamando de "pornógrafo emocional") e as interferências que fazia em suas composições. Há quem diga que a islandesa não dá conta de carregar o filme até o fim, há quem considere sua atuação irretocável... bem, é o tipo de filme que se ama ou se odeia, portanto é melhor tirar suas próprias conclusões (nem que seja para lembrar que Björk foi à cerimônia do Oscar vestida de cisne e até botou um ovo)!
Dançando no Escuro (Dancer in the Dark - Dinamarca/EUA/Islândia - 2000) de Lars Von Trier com Björk, David Morse, Catherine Deneuve, Peter Stormare e Cara Seymour. ☻☻☻☻
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