sexta-feira, 30 de junho de 2017

N@ Capa: Stanley Kubrick

Kubrick: criador de universos e referências. 

De vez em quando uso a expressão "Deuses do Cinema" aqui no blog e alguns amigos me perguntam a que "deuses" eu me refiro. Considero que são deuses do cinemas todos aqueles que ajudaram a pensar a arte de fazer cinema e que não estão mais entre nós. Aqueles artistas iluminados que deixam sua obra em nosso inconsciente coletivo e que servem de inspiração para quem se aventura pela sétima arte. São visionários, precursores que ousaram olhar fora da caixinha de segurança e mudaram a forma como vemos um filme. Stanley Kubrick é um desses! Nascido em Nova York em julho de 1928, o filho de imigrantes judeus estava destinado a se tornar uma referência do cinema. Desde que ganhou uma câmera de presente ao completar treze anos de idade, Stanley decidiu que registraria o mundo através de uma lente. Aos dezessete já era aprendiz de fotógrafo, mas somente em 1951 dirigiu seu primeiro curta-metragem. Se o primeiro longa (Medo e Desejo/1953) era um drama com toques de filme de guerra (o gênero mais frequente em sua diversificada carreira), logo depois ele enveredou pelo gênero policial ("A Morte Passou Perto"/1955, "O Grande Golpe"/1956, "Glória Feita de Sangue"/1957). A guinada em sua carreira veio com o épico Spartacus/1960, que concorreu a seis Oscars e lhe garantiu o reconhecimento que faltava em Hollywood. Dali em diante, Kubrick sempre buscou surpreender a audiência, pulando de um gênero para o outro, mas sempre com um estilo único de fazer cinema. Tanto que escolheu não seguir o caminho mais seguro para um diretor na mira da Academia e filmar o roteiro do escritor Vladimir Nabokov para seu livro homônimo (e polêmico), "Lolita"/1962.


Depois da controversa recepção ao filme, Stanley retornou à guerra, mas desta vez com tom de escárnio com Dr. Fantástico/1964, uma trama que falava do amor americano à... bomba atômica! O filme concorreu a quatro estatuetas no Oscar, melhor ator (para Peter Sellers) e três para Kubrick (filme, diretor e roteiro adaptado), mas não levou nenhum para casa. No filme seguinte, o referencial 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), o diretor demonstrou que ficção científica poderia ser levada a sério e, ironicamente, o filme rendeu o único Oscar da carreira do diretor: melhores efeitos visuais (o cinestas também concorreu ao prêmio de Melhor Filme e Melhor Diretor naquele ano). Em 1971, Kubrick colocou no páreo um dos filmes mais estranhos a figurar na premiação: A Laranja Mecânica! Deliciosamente subversivo dramatúrgica e esteticamente, o filme gerou polêmicas e ainda conquista fãs por seu visual moderno e história explosiva. Como era de se esperar, Kubrick mudou de gênero ao fazer o romance de época Barry Lyndon (1975) e em seguida o terror O Iluminado (1980). Cada vez mais metódico e criterioso com seus filmes, o espaço entre seus lançamentos tornava-se cada vez maior, tanto que demorou sete anos para lançar seu olhar único sobre a Guerra do Vietnã em Nascido para Matar (1987) e doze anos para se despedir do público com De Olhos Bem Fechados (1999). Ao todo foram 13 longa metragens e 13 indicações ao Oscar que construíram um verdadeiro mito do cinema que identificamos suas referências quando alguém se inspira em seu universo tão genial quanto desafiador.

HIGH FI✌E: JUNHO

Cinco filmes assistidos no mês de junho que merecem destaque:

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quarta-feira, 28 de junho de 2017

PL►Y: Indignação

Sarah e Logan: romance quase proibido. 

Gosto de ver um jovem ator procurando papeis interessantes para provar que sabe realmente interpretar. Logan Lerman  começou na carreira de ator aos oito anos de idade ao lado de Mel Gibson em O Patriota/2000 e ficou mais conhecido quando viveu um futuro presidente dos EUA na série Jack & Bobby (2004-2005), mas o garoto chegou ao estrelato de vez quando foi escolhido para ser Percy Jackson nos cinemas. O destaque lhe rendeu a desconfiança dos críticos com sua performance na pele do filho de um deus grego nos dias atuais. As coisas complicaram quando ele tentou viver o Espetacular Homem-Aranha e foi derrotado por Andrew Garfield, sorte que ele é esperto e ao invés de ficar choramingando, ele investiu em filmes em que pudesse ser levado a sério. Mais uma prova disso é que ele bancou a produção deste Indignação, belo filme baseado na obra de Phillip Roth e que lhe rendeu elogios pela atuação na pele de um jovem ateu de origem judaica que sente todo o peso das convenções sociais quando vai para a universidade tentar se formar em Direito. Lerman demonstra maturidade ao viver o protagonista Marcus Messner, um filho de açougueiro Kosher que tem a chance de ser o primeiro da família a fazer faculdade e tentar outros caminhos na vida profissional. A maior parte da história se passa em 1951, onde uma década antes da revolução sexual, o conservadorismo atingia um grau sufocante. Longe da família e ciente das preocupações do pai (que temia o quanto poderia custar um passo em falso do filho), Marcus tem como maior objetivo ser advogado, mas a vida na faculdade lhe mostra um mundo mais complicado do que imaginava. Seus colegas de quarto são pouco amistosos, jovens judeus vivem segregados e são obrigados a participar de uma atividade programada pelo reitor dentro de uma capela se quiserem se formar. O reitor é uma atração à parte, já que Tracy Letts está magnificamente insuportável ao encarnar um homem que está tão convencido de que suas impressões são as mais precisas que sua arrogância plena é mais assustadora do que seu olhar inquisidor. Reitor Cauldwell só não é o maior dos problemas de Messner porque ele se apaixona pela complicada Olivia Hutton (Sara Gadon), uma bela garota que esconde um passado que nunca se revela por completo - e que é capaz de levar Marcus à perdição. A estreia na direção de David Schamus (responsável por vários roteiros filmados por Ang Lee) surpreende pela habilidade com que desvia de todas as armadilhas que uma história destas pode ter, ele se afasta do sentimentalismo, evita o melodrama e consegue transformar um triste romance adolescente num suspense dramático. Parece que desde o início sabemos que os sonhos de Marcus está condenado ao fracasso, mas nos resta torcer para que a pressão das convenções sociais não o arruínem por completo. Visualmente o filme tem a cara do Oscar e poderia mesmo ter aparecido entre os concorrentes, no entanto, mesmo tendo ficado de fora, Indignação merece ser visto, nem que seja para perceber como é saboroso ver o amadurecimento de um jovem ator.

Indignação (Indignation/EUA-2016) de James Schamus com Logan Lerman, Sarah Gadon, Tracy Letts, Danny Burstein, Philip Ettinger e Linda Emond. ☻☻☻☻

segunda-feira, 26 de junho de 2017

PL►Y: Shimmer Lake

Os investigadores e a testemunha: a ordem inversa das coisas. 

Em exibição no Brasil através do Netflix, Shimmer Lake conta a história de um crime de trás para frente. A ideia parte de um assalto a banco envolvendo três cidadãos comuns de uma cidade pequena, mas o filme nos mostra primeiro as consequências do crime para somente depois se desenrolar, apresentando os segredos que envolvem os personagens até chegar ao final surpreendente. Desde que Christopher Nolan chamou atenção com Amnésia/2000 a narrativa invertida chegou a um novo patamar, o que pretende fazer a diferença aqui é que o roteirista Oren Uziel - de Anjos da Lei 2 (2014) -  estreia na direção bastante inspirado pelo universo dos irmãos Ethan e Joel Coen. Estão presentes o humor negro, os assaltantes atrapalhados que se metem numa grande enrascada, uma mulher que não tem medo de cara feia e um personagem mais ardiloso do que todos os outros pensam que ele seja. Se no início o espectador pode ficar um pouco confuso para organizar o que está acontecendo, aos poucos fica bem claro que o xerife Zeke (Benjamin Walker) é o responsável por encontrar os assaltantes ao lado do parceiro (Adam Pally) e dois agentes do FBI (vividos por Ron Livingston e Rob Corrdy). Aos poucos sabemos que um dos ladrões é o irmão do próprio xerife (papel de Rainn Wilson), um promotor que enveredou pelo caminho da corrupção até perder-se completamente. Quem pode ajudar a encontrar os fugitivos é a esposa de um deles, Steph (Stephanie Sigman) que tem lá as sua cota de amarguras. O roteiro do próprio Uziel sabe utilizar ao seu favor a proximidade dos personagens que se conhecem desde sempre no pequeno universo daquela pacata cidadezinha. Todos os personagens conhecem  a história dos outros, especialmente as fraquezas de cada um e tendo isso em vista o desfecho faz todo o sentido. Algumas pessoas reclamam do humor que aparece no filme de forma ofensiva em alguns momentos (especialmente com o jovem garoto de programa ou o juiz vivido pelo veterano John Michael Higgins, bem conhecido pelas comédias de Christopher Gertz), mas faz parte do clima pretendido pelo próprio diretor e seus personagens que se acham mais espertos do que realmente são. Conforme cresce o número de vítimas envolvidas com o assalto, o filme revela-se bastante irônico com relação aos meandros do plano elaborado e mantém seu maior segredo para o final (onde o sentido invertido das coisas ultrapassa a edição do filme). Shimmer Lake até parece um primo modesto de Fargo (2014) em sua sucessão de erros, a diferença é que no lugar de uma policial espirituosa criada pelos irmãos Coen, temos um xerife  de poucas palavras e que não vê muito futuro na cidadezinha que se corrompe cada vez mais. Com roteiro esperto e ótimo trabalho de montagem, Shimmer Lake pode ser uma grata surpresa para o espectador que se aventurar pelo seu quebra-cabeça. 

Shimmer Lake (EUA/Canadá - 2017) de  Oren Uziel com Benjamin Walker, Rainn Wilson, Ron Livingston, Stephanie Sigman, Wyatt Russell, Adam Pally e Mark Rendall. 

domingo, 25 de junho de 2017

§8^) Fac Simile: Dan Stevens

Daniel Jonathan Stevens
Em visita à Londres, nosso repórter imaginário encontrou o ator Dan Stevens num pub. O ator que está em cartaz nos cinemas brasileiros com a comédia Colossal falou sobre temas como dieta, trabalho e Downton Abbey nesta entrevista que nunca aconteceu:

§8^) Você acha que ter feito uma série conceituada como Downton Abbey ajudou a ser escolhido para ser a Fera de A Bela e a Fera?

Dan Talvez, acho que muita gente envolvida viu a série e mesmo com meu rosto quase não aparecendo eu ouvi algumas pessoas suspirando sabendo quem estava ali debaixo. Era como se Downton virasse um conto de fadas durante as filmagens. 

§8^) Você tem quatro filmes para estrear neste ano e ainda fez a série Legião (do canal FX) que foi renovada para uma nova temporada. Você acha que esta nova fase da carreira tem relação com mudanças no seu visual?

Dan Agora que você tocou no assunto, Hollywood é bastante rigorosa com isso! Eu percebi que começaram as surgir mais convites depois que eu fiz o vilão de O Hóspede/2014. Ele era um super soldado psicótico e eu não tinha o físico apropriado para isso. Tive que malhar, ficar com tanquinho e aparecer sem camisa... eu precisava ser convincente e sofri um pouco para conseguir perder peso. Cortar carboidrato é uma tortura! Na Inglaterra as pessoas são menos ligadas nesse culto ao corpo, mas tudo bem. Parece irônico, mas meus amigos chegaram a pensar que eu estava doente e minha agente disse: "mantenha a altura, o sorriso e os olhos azuis que tudo vai funcionar" . Depois eu acabei escolhido para viver um monstrengo peludo da Disney. Então... 

§8^) Você recebeu alguma ameaça de morte depois que souberam que foi você que pediu para sair do elenco de Downton Abbey?

Dan Recebi algumas [risos]... algumas centenas de milhares vindo de todo canto do mundo! Eu adorava o programa. Ele me deixou bastante conhecido mundialmente, meu fã-clube cresceu consideravelmente, mas eu sentia a necessidade de fazer outros trabalhos, tinha muito medo de ficar estigmatizado por sempre ser o galã bonzinho.

§8^) E os produtores? Todo mundo que assistia sentiu que eles tiveram que rebolar muito para contornar a sua saída. Você era do casal para qual todo mundo torcia desde o primeiro capítulo e depois... 

Dan É... pode se dizer que foi complicado para eles, mas nós lidamos com seriados de forma diferente na Inglaterra. Nada é muito garantido, muitos atores tem vários compromissos e a televisão acaba ficando um pouco de lado. Não me arrependo de ter deixado Matthew Crawley para trás, mas entendo todas as ameaças que recebi. E roteiristas ingleses não rebolam quando trabalham [risos]. 

§8^) Você acha que tem chances do Matthew aparecer no filme da série que anunciaram há algumas semanas?

Dan Acho difícil. Mas seria interessante se fizessem um filme mostrando os descendentes daqueles personagens,. Acho que um filme é mais fácil de fazer, consome menos tempo. Mas o Matthew morreu, a história dele já acabou, fechou um ciclo...

§8^) Tive várias amigas que pararam de ver o programa depois da sua morte! Como pode pedir para morrer? Como pode fazer uma coisa dessas?! Foi tão... desumano [choro]... SEU EGOÍSTA! ODEIO VOCÊ [choro]

Dan Mas eu estou bem, estou vivo aqui, olha... ei, não fica assim... quer um lenço?

§8^) NÃO QUERO NADA DE VOCÊ!!! [ódio desesperado na voz] ASSASSINO! ASSASSINO!!!

Na Tela: Colossal

Anne: dominando o monstro nosso de cada dia. 

Ainda que seja inspirado nos filmes de monstros gigantes orientais, Colossal tem uma ideia realmente original por trás de sua história. Afinal, não se trata de um filme catástrofe sobre um monstrengo destruindo cidades com efeitos especiais mirabolantes. A catástrofe aqui é bem mais pessoal - e em tom de comédia maluca. Embora a primeira cena seja dedicada à primeira aparição do monstro, a trama gira em torno de Gloria (Anne Hathaway que também é produtora executiva do filme), uma mulher que gasta muito tempo bebendo para perceber que já se tornou um problema para sua vida profissional e pessoal. Ela mal chega em casa depois de passar a noite em uma festa e o seu namorado Kim (o inglês Dan Stevens que depois da série Downton Abbey  se tornou querido em Hollywood) já manda procurar outro rumo na vida - e basta ele sair para que os amigos dela cheguem para mais uma festinha. Sem perspectivas ela acaba voltando para a pequena cidade onde nasceu e, após umas bebedeiras descobre que tem uma conexão misteriosa com um monstro gigantesco que está atacando a cidade de Seul do outro lado do mundo. Este é apenas o começo da história escrita e dirigida pelo espanhol Nacho Vigalondo, que embora desconhecido do grande público já conta com uma indicação ao Oscar (pelo curta metragem 7:35 da da Manhã/2004) e três longas no currículo, dentre eles o interessante Extraterrestre/2011. Vigalondo é visivelmente um geek, sempre lançando um olhar diferente sobre temas de ficção científica. Aqui ele investe no estranhamento para contar uma história sobre uma personagem que se depara não apenas com o poder destrutivo que possui - e portanto, precisa assumir responsabilidades sobre suas ações - como também o poder destrutivo das relações que estabelece. Neste ponto que entra em cena seu amigo de infância, Oscar (Jason Sudeikis) que lhe ajuda num momento difícil, mas que aos poucos revela ser um sujeito bastante complicado de lidar. Para além das cenas engraçadas sobre o vínculo que existe entre a personagem e o monstro o filme também aborda uma história de relacionamento abusivo e empoderamento feminino, mas nada muito profundo. Ele funciona muito melhor quando brinca com os signos do gênero "filme de monstro" (com a trilha, os gritos, os gestuais...) do que quando tenta ser sério (basta perceber o último ato que parece apressado e bem menos interessante do que deveria). No  entanto, Colossal consegue ser engraçado e deixa evidente que tem uma ideia genial por trás de sua história, mas a duração poderia ser um pouco mais enxuta e o roteiro mais trabalhado. Tem gente que rasga elogios para atuação de Anne Hathaway, mas sei que ela pode fazer muito melhor (aqui ela nem parece se esforçar e, talvez, nem precise), mas ela ainda deixa a melhor lição de empoderamento para as colegas de igual calibre que ficaram esperando os estúdios chamarem para filmes interessantes nos últimos anos: produzam.

 Colossal (EUA/Canadá/Espanha/Coreia do Sul - 2016) de Nacho Vigalondo com Anne Hathaway, Jason Sudeikis, Dan Stevens, Austin Stowell e Tim Blake Nelson. 

KLÁSSIQO: Dr. Fantástico

Strangelove: Dose tripla de Peter Sellers. 

Recentemente depois que uma legião de pessoas ficaram decepcionadas com a produção original Netflix "War Machine" (estrelada por Brad Pitt), muita gente lembrou do que Stanley Kubrick foi capaz de fazer há 53 anos sobre a atração americana por paranoias e guerras. Não por acaso, a identificação foi tão grande que Dr. Fantástico foi o primeiro filme que rendeu uma indicação ao Oscar de direção e roteiro para Stanley Kubrick (pois é meus amigos, mesmo com todo o sucesso e 4 Oscars de Spartacus/1960 aqui ele foi lembrado pela Academia pela primeira vez). Dr. Fantástico ainda é um tipo de filme bastante arriscado de se fazer, especialmente por sua dualidade perante o público, afinal, trata-se de um filme de guerra que faz chacota da tensão da Guerra Fria sem perder a pose de filme sério. Muita gente demora para captar a mensagem se pode ou não pode rir de determinada cena, até que a sucessão de absurdos não deixa dúvidas de que tudo aquilo é uma grande piada. Da insistente trilha sonora de batalha (os tambores rufam o tempo inteiro, especialmente quando aparece em cena os aviões que carregam as bombas nucleares capazes de destruir o mundo) às inúmeras situações debochadas, o filme diverte com seu humor esquisito que ainda se mostra atual. O filme gira em torno de um grupo de personagens envolvidos com a rivalidade entre a União Soviética e os Estados Unidos. Três dos personagens são interpretados pela versatilidade do mito Peter Sellers (que foi indicado ao Oscar por seu trabalho e, visivelmente, inspirou o título do filme em terras brasileiras). Sellers vive o diplomático presidente Merkin Meffey (que tenta manter a cabeça fria diante de tudo o que acontece), o perdido Capitão Lionel Mandrake e o bizarro Dr. Strangelove. Ainda que Mandrake tenha ótimas cenas (a cena onde fica perdido num escritório que vira um campo de batalha é de rolar de rir), o destaque fica mesmo com Strangelove, que chama atenção mesmo quando a câmera o capta de longe pela primeira vez. O doutor é um cientista alemão, naturalizado americano e excitado com a perspectiva destruidora da nova arma desenvolvida pelo exército americano. Com sorriso estranho, olhos alucinados e o braço direito rebelde sempre disposto a saudar "führer", ele talvez seja a maior alfinetada de Kubrick em todo o filme. Afinal, os nazis também eram contra os comunistas e, no fim das contas, quem tem o maior poder de destruição nas mãos tem sempre jeito de vilão. Ao lado de Sellers existe ainda a paixão pela guerra personificada pelo General Buck Turgidson (George C. Scott, que desde a primeira cena transborda testosterona ao lado de sua secretária discretíssima), o general teme ataques soviéticos em solo americano e defende que a melhor defesa é atacar primeiro. Embora tenha tiros, bombardeios e várias cenas de estratégias de Guerra, Kubrick trata tudo isso como se fosse trivial, gerando momentos inspirados como o roubo das moedinhas na máquina de Coca-Cola ou diálogos do porte de "Vocês não podem brigar dentro da Sala de Guerra". A cereja deste circo é o mirabolante plano final de Strangelove para repovoar a Terra (e que colocará em risco as bases da monogamia). Ainda hoje o filme figura entre os filmes mais estranhos que já concorreram ao Oscar de Melhor Filme. Curiosamente, o tom de chacota sobre a guerra foi explorado novamente por Kubrick em Nascido para Matar/1987 que valeu ao diretor mais uma indicação da Academia ao prêmio de melhor roteiro.

Dr. Fantástico (Dr. Strangelove: or how I learned to stop worryng and Love the Bomb/EUA-Reino Unido - 1964) de Stanley Kubrick com Peter Sellers, George C. Scott, Peter Sellers, Sterling Hayden, Peter Bull, Tracy Reed e Peter Sellers. ☻☻

sábado, 24 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: Flores Raras

Mary, Elizabeth e Lota: triângulo amoroso. 

Nascida em 1911, a americana Elizabeth Bishop é considerada uma das maiores escritoras da língua inglesa. No entanto, pode se dizer que seu período mais criativo ocorreu durante os anos em que morou no Brasil. Elizabeth enfrentava problemas com a depressão e o alcoolismo quando resolveu fazer uma longa viagem pela América Latina, no entanto, ao visitar a amiga Mary no Brasil - com a arquiteta Lota Macedo Soares acabou ficando mais tempo do que pensava. O motivo para que ela ficasse no Brasil foi a própria Lota, que desde 1951 a hospedou em sua casa em Petrópolis até que formassem um casal por vários anos. Essa história do grande amor que transformou para sempre a vida da escritora já havia rendido uma peça teatral de grande sucesso com Regina Braga em 2001 e 2011. Anos depois Amy Irving, a senhora Bruno Barreto estava muito interessada em viver a personagem no cinema, mas acabou perdendo o papel por conta da idade para a australiana Miranda Otto. O filme é de fato o papel mais importante e desafiador que Miranda já teve em mãos, ainda que tenha participado de dois filmes da trilogia Senhor dos Anéis (2002/2003), Miranda nunca conseguiu muito destaque como atriz na telona e aqui tem a oportunidade de mostrar que poderia dar conta de papéis complexos. Ainda que o roteiro seja apressado nas transições da personagem, Miranda realiza um bom trabalho, mas que não chega a impressionar por conta de sua concepção sempre discreta da escritora. Ainda assim é palpável como os anos em que viveu no Brasil a fez abandonar o peso que carregava sobre as costas e produzir suas obras mais famosas que lhe valeram vários prêmios - incluindo o renomado Pulitzer. Sorte que Bruno Barreto escolheu Glória Pires para dar vida à Lota, o vigor da atriz brasileira funciona como excelente contraponto à discrição de Bishop. Gloria está firme como uma rocha na pele da arquiteta (embora um tanto desconfortável quando o filme tenta gerar cenas picantes entre as duas atrizes), sendo bastante convincente como a mulher firme à frente do seu tempo. Obviamente que o filme não poderia deixar de explorar o período delicado em que as duas mantiveram seu romance, passando pela polêmica construção do Parque do Flamengo (o ambicioso projeto de Lota no governo Lacerda) e a perplexidade de Elizabeth diante do comportamento dos brasileiros diante do golpe que tomava o Brasil (e seu discurso no jantar é ironicamente atual para a situação de nosso país atualmente). Embora não tenham muita química, Miranda e Gloria tem bons momentos juntas tornando compreensível a influência que uma teve sobre a vida e a arte da outra. Outro destaque do filme é a desconhecida Tracy Middendorf que faz um excelente trabalho como Mary, a amiga que perde Lota para Bishop e que passa a sustentar uma curiosa relação com as duas, me atrevo a dizer que ela é a grande revelação do filme. A sensibilidade de Bruno Barreto durante o filme (que também está presente na fotografia, transição dos figurinos de Bishop e na reconstituição de época) compensa alguns poucos tropeços aqui e ali, mas a trajetória das personagens reais transforma Flores Raras num filme bastante interessante sobre mulheres que ousavam ser elas mesmas em meados do século XX. 

Flores Raras (Brasil/2013) de Bruno Barreto com Miranda Otto, Glória Pires, Tracy Middendorf, Marcello Airoldi e Treat Williams.  ☻☻☻

sexta-feira, 23 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: Um Estranho do Lago

Christophe e Pierre: erotismo com personagens levados a sério. 

De vez em quando os diretores dos chamados "filmes de arte" resolvem flertar com a pornografia, geralmente o resultado chama mais atenção da mídia do que do grande público  que ainda se choca com esse tipo de coisa - ou pelo menos diz que se choca nos tempos onde tudo pode ser visto a qualquer instante na internet. O fato é que ninguém nunca deu muita bola para os filmes do diretor francês Alain Guiraudie até ele misturar suspense, romance e sexo gay em Um Estranho no Lago, filme que conseguiu até espaço nas conservadoras salas brasileiras depois de ganhar o prêmio de melhor direção na mostra Un Certain Regard em Cannes2013. A história em si não traz muita novidade, afinal, já vimos dezenas de vezes histórias sobre pessoas que se apaixonam por desconhecidos que podem ser um serial killer, a diferença está justamente nas cenas bastante explícitas que aparecem no filme - e se você se incomoda em ver dois marmanjos se entregarem aos prazeres da carne é melhor passar bem longe do filme. Tirando as cenas mais picantes (sem trocadilho, por favor...), o que vemos é um filme bastante melancólico sobre a eterna busca pelo parceiro ideal. A história é toda ambientada nos arredores de um lago afastado da cidade onde gays se encontram com estranhos para manter relações sexuais. Sim, existe um bocado de fetiches envolvidos nisso, mas também algo de animalesco nesses encontros. O protagonista da história é o introvertido Franck (Pierre Delandochamps) que após algumas idas ao lago conhece Michel (Christophe Paou), que assim como ele, parece um tanto excitado com a aura de perigo que o local passou a ter depois que começaram a haver mortes naquela localidade. Seria algum assassino homofóbico? Seria um psicopata com fetiche por matar os seus parceiros? Diante de estranhos qualquer um poderia ser o assassino e, se não é você, provavelmente você será uma vítima. Além da dúvida que fica no ar, o filme é pontuado por vários diálogos sobre solidão e inseguranças que funcionam como excelente contraponto para as cenas mais despudoradas. Para provar que o filme não quer ser apenas sobre um bando de marmanjos se pegando, existe Henri (Patrick D'Assumção), um sujeito que não parece se enquadrar no gosto na maioria dos frequentadores e que está tão deslocado ali quanto esteve em qualquer outro lugar. Obeso, calado e visivelmente deprimido, Henri compõe ao lado de Franck alguns dos melhores momentos de um filme que pretende ser levado a sério. Um Estranho no Lago mantém o clima sempre lento, perpassado por silêncios e  surpreende na angústia gerada nos momentos finais cheios de tensão. A cena final onde vemos somente a sombra de Franck perdido num relacionamento que pode ser o último de sua vida sintetiza genialmente as intenções do filme sobre as paranoias que assombram o início de qualquer relacionamento. O filme surpreendeu ao ser indicado a oito prêmios César (o Oscar francês) - incluindo melhor filme -, mas foi apenas Pierre Delandochamps que saiu premiado na categoria de ator mais promissor daquele ano. 

Um Estranho no Lago (L'Inconnu du Lac/França - 2013) de  Alain Guiraudie com Pierre Delandochamps, Christophe Paou, Patrick D'Assumção e Mathieu Vervisch. ☻☻☻

quinta-feira, 22 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: Laerte-se

Laerte: protagonismo no documentário da Netflix. 

Lembro que quando fazia meus estudos na área de Representações Sociais eu percebi que o ser humano precisa classificar o que vê no mundo para que possa compreendê-lo melhor, ou pelo menos, ter esta confortável impressão. O problema é que quando lidamos com classificações, perdemos a noção da complexidade que um determinado objeto possui. Foi mais ou menos nessa época que eu lembro de ver o cartunista Laerte sendo classificado como crossdresser por usar roupas femininas. Algum tempo depois, Laerte se assumiu como transsexual, ou pelo menos, esta foi a classificação que consideravam que lhe cabia melhor. Laerte ainda tem dúvidas se deve ou não colocar implante e ter seios, não tem vontade de trocar de genital (embora ache uma boa ideia tirar sua bolsa escrotal e deixar o resto no lugar que está), mas ainda assim se percebe uma mulher para além do corpo que possui. Parece complicado? Talvez você possa entender melhor assistindo ao documentário Laerte-se, que está em cartaz no Netflix. Assinado pelas diretoras Lygia Barbosa e Eliane Brum o filme é uma verdadeira viagem nos questionamentos de Laerte e torna-se ainda mais interessante justamente pela artista evitar a todo instante cair nos lugares comuns que se imaginam sobre o universo trans. Se no início ela está hesitante em aceitar a ideia do documentário (por considerar que geralmente o resultado de suas entrevistas tem muito pouco do que ela deseja dizer), aos poucos ela se solta e dispara suas considerações sobre si mesmo, especialmente na busca de um equilíbrio íntimo que não depende dos rótulos construídos socialmente - seja pela sociedade heteronormativa - que estipula o que é ser isso ou aquilo - ou por uma militância que cai na tentação de guardar tudo em suas próprias gavetinhas. Laerte é simplesmente Laerte (sim, ela não quis mudar de nome), mantem bom relacionamento com a família, fica aflita com depilação, fazer unhas ou com aquele vestido dourado que não sai da cabeça, além de vez em quando considerar em entrevistas que não tem nada de importante a dizer. Diferente de quem conheceu Laerte em sua nova fase possa imaginar, Laerte era um homem muito bem humorado, mas discreto e contido. Ela não está preocupada em se tornar símbolo de uma coisa ou de outra, pretende apenas ser aceita do jeito que é (o que já dá bastante trabalho e dor de cabeça para ela mesma). A ideia do corpo está bastante presente em todo o filme, seja pelas corajosas cenas de nudez, pelos desenhos que Laerte realiza durante as filmagens ou até pelas tirinhas que já exploravam o que se passava na mente durante seu período de transição do masculino para o feminino. Laerte-se é um curioso mergulho na diversidade sexual, nas inquietações de uma pessoa provocada por si mesma a externalizar o que escondia até o incômodo se tornar insuportável. Apesar do documentário investir numa narrativa bastante tradicional, a sua simplicidade consegue realizar a tarefa de humanizar a figura de Laerte para além dos pré-conceitos.

Laerte-se (Brasil/2017) de  Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum com Laerte, Rita Lee e Angeli. ☻☻☻☻ 

quarta-feira, 21 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: Eu Sou Michael

James e Zachary: personagem polêmico, filme idem. 

Em tempos em que tudo vira polêmica eu ainda consegui me surpreender com as críticas recebidas por Eu Sou Michael quando ele começou a ser exibido em festivais. O problema todo era que o diretor estreante Justin Kelly (que depois dirigiu King Cobra/2016) resolveu fazer uma cinebiografia controversa do pastor Michael Glatze, que de ativista gay se tornou hétero  ao encontrar Deus. Diante desse vespeiro, nem o envolvimento do sempre simpatizante da causa James Franco, dos assumidos Zachary Quinto, Gus Van Sant (o produtor do filme) e o próprio Kelly evitou que fosse considerado um verdadeiro desfavor à causa GLSBT. O motivo para tanta polêmica é que a história do personagem poderia incitar ainda mais o preconceito e o discurso de que para deixar de ser gay basta querer. Não é bem assim. Sinceramente, acho que a maioria das críticas vieram de pessoas que não assistiram ao filme e - influenciadas pela figura real de Glatze é mais do que compreensível todas as críticas. O fato é que Kelly consegue explorar de forma bastante equilibrada os conflitos do personagem, sugerindo que debaixo do seu discurso de "ex-gay" existem ainda sentimentos um tanto confusos que ele prefere esconder, especialmente motivado pelo medo da morte e preceitos religiosos. No início do filme ele mantem um relacionamento duradouro (e aberto) com Bennett (Quinto) e trabalha numa revista voltada para o público gay ao lado dele. Depois eles se mudam para o Canadá, aceitam outro parceiro em suas vidas - o jovem Tyler  (Charlie Carver) - e Michael começa a fazer palestras voltadas para jovens gays. Das palestras ele tem a ideia de fazer um documentário, uma nova revista e, após alguns problemas de saúde ele começa a ter dúvidas sobre se é certo ou não ser gay. Estranho? Então espere até descobrir que a mudança não é apresentada através da perda do desejo por outros homens ou pelo personagem conhecer uma mulher que o faz deixar seu "estilo de vida", mas porque o personagem deseja ir para o céu e reencontrar os pais. Michael procura refúgio na  meditação, no budismo, em retiros espirituais, escola de estudos bíblicos e gera controvérsias pelo que escreve na internet condenando a homossexualidade, que segundo ele, trata-se de uma questão de escolha. Apesar de  Eu Sou Michael abordar um tema polêmico, buscando sempre um (des)equilíbrio entre religiosidade e homossexualidade, o filme pode ser bastante interessante por ser uma nota dissonante entre os filmes com temáticas gay. Assim, ele reflete, ainda que por um caminho inusitado, os estigmas que ainda recaem sobre quem sente desejo por pessoas do mesmo sexo. Quem se interessar pela história já está no Netflix o registro do reencontro de Klatze e Bennett depois da repercussão do filme (basta procurar Michael Lost and Found). 

Eu Sou Michael (I am Michael/EUA-2015) de Justin Kelly com James Franco, Zachary Quinto, Emma Robers e Charlie Carver. ☻☻☻

terça-feira, 20 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: The Duke of Burgundy

Chiara e Sidse: nada é o que parece. 

Evelyn (Chiara D'Anna) pedala pelo campo até chegar numa casa imponente no meio das árvores. Ela é recebida por uma madame que não parece muito satisfeita com a sua chegada. Cynthia (Sidse Babett Knudsen) é a dona da casa e só permite que a visita sente no sofá mediante autorização. Não demora para que a senhora lhe passe as tarefas do dia e, com um tom sempre altivo, seja arrogante o suficiente para que Evelyn sinta-se humilhada a cada instante. Quando o serviço não é perfeito, Evelyn é castigada, sendo levada pela senhora a um cômodo e, com a porta fechada, ouvimos apenas ruídos. Nesta primeira parte o filme The Duke of Burgundy beira o sublime, fazendo com que o espectador sinta toda a tensão que existe entre as duas personagens e, diante do estranhamento, o espectador se surpreende ao descobrir que as duas mulheres são amantes - e que toda aquela relação abusiva trata-se de um pedido da própria Evelyn para sua amada. Lançado no início de 2015 no Reino Unido, o filme fez sucesso em alguns festivais pela forma como conduz um relacionamento temperado com fantasias, fetiches, submissão e poder. Não por acaso, o título faz alusão a Carlos "O Terrível" Duque de Borgonha que ficou famoso por sua crueldade. Existe neste ponto um aspecto interessantíssimo, já que por vezes Cynthia sente-se desconfortável com os pedidos da companheira, mas, mesmo assim, aceita submetê-la às humilhações e punições durante todo o filme. O diretor Peter Strickland conduz o filme cheio de movimentos calculados, além de olhares e gestos reveladores - que na maioria das vezes contam mais sobre aquele relacionamento do que os diálogos. A produção é impecável, figurinos e cenários irretocáveis, bela fotografia, edição de corte perfeito, no entanto, o espectador que não aprecia muito filmes carregados de simbologias e metáforas poderá achar a narrativa um pouco cansativa, já que por boa parte do filme o que se vê é o jogo de Cynthia ser levemente subvertido (seja numa palestra sobre mariposas ou com a presença de uma outra personagem feminina que desperta ciúmes) - ou será que tudo não faz parte do jogo entre as duas?Embora considere que o filme paga um preço alto por manter as personagens isoladas do resto da sociedade (além de contar seu maior segredo cedo demais), o diretor tem o mérito de construir uma história habitada somente por mulheres, borboletas e mariposas (e a introdução com a música da dupla Ca'ts Eyes ajuda muito a construir esta passagem atmosférica do nosso mundo para o que se vê na tela). Algumas pessoas podem até dizer que o filme tem mais forma do que conteúdo,  mas Strickland ao lado de suas duas atrizes cria um espetáculo visual capaz de hipnotizar quem está em busca de um filme diferente sobre um casal - e seus segredos mais íntimos. 

The Duke of Burgundy (Reino Unido/Hungria - 2015) de Peter Strickland com Chiara D'Anna, Sidse Babett Knudsen, Monica Swinn e Fatma Mohamed. ☻☻☻ 

segunda-feira, 19 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: C.R.A.Z.Y

Zac: nascido para causar. 

O canadense Jean Marc Valée faz cinema desde 1995, mas ficou conhecido do grande público quando convenceu o mundo de que Matthew McCounaghey merecia o Oscar de melhor ator por sua atuação em Clube de Compras Dallas (2013). Quem tem o radar ligado para filmes interessantes além de Hollywood conheceu Valée em 2005 quando ele conseguiu o seu primeiro sucesso: C.R.A.Z.Y. (assim mesmo, como se fosse uma abreviação). O filme se tornou cult e bastante querido em vários festivais, chamando atenção para um diretor que contava uma história comum com bastante estilo e energia. Existem trocentos filmes sobre adolescentes que descobrem a homossexualidade, mas poucos conseguem ter um ritmo pop irresistível como este aqui. Com trilha sonora cheia de hits e personagens que parecem saídos de uma sitcom, o filme acompanha o menino Zachary desde o seu nascimento no dia de Natal em 1960. Desde aquele momento sabia-se que ele seria um filho diferente para o casal Gervais (Michel Côté) e Laurianne (Danielle Proulx), não apenas por conta de uma mecha de cabelo branco que possui perto da nuca ou dos "poderes" que uma amiga psicoterapeuta garante que Zac possua, o fato é que o próprio menino sabe que não possui nada em comum com seus três irmãos  (um cretino, um nerd e um atleta) - e mais tarde ainda ele ainda perderá o posto de caçula para o quarto filho do casal. Embora de vez em quando ele vestisse as roupas da mãe quando pequeno, seu interesse por outros meninos na adolescência é sempre vista como algo que pode ser superado na adolescência (mesmo quando o namorado da prima aparece para uma festa). Das implicâncias dos irmãos, à rejeição às investidas da amiga ruiva Michelle (Natasha Thompson que evoca algumas fases de David Bowie, ídolo de Zac) o tempo passa e o pai começa a se preocupar com a sexualidade do filho e desta preocupação o filme tem alguns dos seus melhores momentos, afinal, se antes os dois eram próximos, aos poucos o pai se torna cada vez mais crítico com Zac. Vivido por Marc-André Grondin (já comentei outro filme com ele aqui no blog, O Homem que Ri/2012) o personagem descobre sua sexualidade aos poucos, sempre sob a desconfiança do pai que possui algumas atitudes bastante engraçadas (como o orgulho do filho ter se envolvido numa briga na escola e provar assim que é homem de verdade, situações assim são valorizadas ainda mais pela atuação de  Michel Côte). Zac torna-se fã de rock, mostra-se cada vez mais crítico com a postura dos irmãos, com  a religião e sempre mostra-se em dúvida sobre sua sexualidade. Mistura de comédia com drama familiar, Valée faz um filme vibrante, colorido e que se torna universal por explorar sem sensacionalismos a reação de um garoto e sua família perante a descoberta da homossexualidade (a cena de pai e filho no estacionamento é um primor ao sintetizar como a revelação pesa para ambos os lados). Valée só erra a mão quando investe mais do que devia na fantasia e nos delírios das aventuras do personagem pelas bandas de Jerusalém, mas trata-se de um deslize pequeno para um filme que pode ser uma grande surpresa para quem não conhecia os primórdios da carreira deste elogiado diretor canadense.  

C.R.A.Z.Y (Canadá-2005) de Jean Marc Valée com Marc André Grondin, Michel Côte, Michelle Proulx, Pierre-Luc Brillant, Alex Gravel e Natasha Thompson. ☻☻☻☻

domingo, 18 de junho de 2017

CICLO DIVERSIDADESXL: Weekend

Tom e Chris: romance de fim de semana. 

Ano passado o diretor Andrew Haigh entrou no radar do Oscar com Charlotte Rampling indicada ao prêmio de melhor atriz por 45 Anos (2015). No filme, um casal enfrenta uma crise no casamento  (por conta de um relacionamento passado) quando está prestes a realizar uma festa pelos vários anos de união. Tão sutil quanto avassalador eu ainda considero que em nas primeiras versões do roteiro, Haigh havia pensado em contar uma história com personagens homossexuais (seja tendo o casal protagonista do mesmo sexo ou tendo como pivô da crise um homem). O motivo para essa desconfiança é que Haigh não apenas ficou conhecido como o criador da série Looking (2014-2015) da HBO, mas por ter estreado na direção com este filme de orçamento baixíssimo (120 mil libras) e olhar bastante intimista sobre o relacionamento entre dois rapazes que se envolvem durante um final de semana. Weekend se tornou cult ao contar história de Russell (Tom Cullen), um rapaz que deixa de participar de uma festa na casa dos amigos para ir a um bar e descola uma companhia para a noite. Ele acaba conhecendo Glenn (Chris New) e após a noite, o sexo sem compromisso gera um envolvimento que não estava nos planos de nenhum dos dois. O discreto Russell se incomoda com algumas posturas do recém conhecido, especialmente com o "projeto" de filmar entrevistas com os parceiros sexuais que cruzam seu caminho e o despudor de revelar sua sexualidade mundo. O que era para ser uma noite, se torna alguns dias na companhia um do outro e se Russell e Glenn se mostram bem diferentes no início, existe uma sintonia quase complementar entre os dois - em que a plateia pode perceber que existia combustível para uma relação mais duradoura do que o prazo para terminar sugere. Durante o fim de semana eles se conhecem um pouco melhor, tem alguns atritos, fazem sexo, consomem drogas e o diretor imprime uma direção que parece nem existir, como se a câmera fosse tão intrusa na vida dos dois quanto o espectador que assiste aquele recorte na vida de duas pessoas - que em alguns momentos até esquecemos ser personagens. Por vezes Russell e Glenn parecem dois lados opostos de de uma mesma pessoa, seja por conta da forma como vivenciam suas posturas diante do sexo e da vida  - e gravar seus parceiros casuais não seria uma forma de se lembrar deles por mais tempo? Com sensibilidade, boa trilha sonora e referências cinematográficas variadas, o filme termina com aquela sensação de que algo mais poderia ter acontecido entre os dois, talvez por ainda acreditarmos que a impessoalidade nas relações é mais complicada do que parece, seja para héteros ou gays. 

Weekend (Reino Unido - 2011) de Andrew Haigh com Tom Cullen, Chris New, Jonathan Race e Laura Freeman. ☻☻☻

PL►Y: Krisha

Trey e Krisha: ficção e realidade em drama surpreendente. 

Depois de muito tempo afastada, Krisha (Krisha Fairchild) vai passar o dia de Ação de Graças na casa da irmã e reencontra toda a família. É visível o esforço da protagonista para soar agradável a todos os presentes. Sempre sorrindo, com traços de gratidão e olhar compreensivo, basta que fique sozinha para ela respirar aliviada por não ter que demonstrar felicidade o tempo todo. Quando está sozinha ela apela para suas pílulas, uma indefectível pomada para o dedo decepado e respira profundamente para enfrentar o olhar de todos novamente.  O filme do estreante Trey Edward Shults poderia ser apenas mais um drama familiar sobre desajustes que o cinema indie americano cria às centenas todos os anos, mas pretende ser diferente. Em Krisha, todos se esforçam para que tudo saia perfeito, independente dos problemas que estão sufocados, mas quando tudo desandar todos voltarão as acusações para Krisha. Dos sobrinhos crescidos que se comportam feito imbecis, do filho (vivido pelo próprio diretor) que não consegue demonstrar qualquer afeição por ela, do cunhado que odeia a dezena de cachorros criados pela esposa  e a mãe idosa que não faz a mínima ideia do que acontece ao seu redor, o filme constrói lentamente uma tensão que torna-se insuportável conforme se aproxima o desfecho - e a trilha sonora ajuda bastante a adicionar toneladas de pressão psicológica sobre a reunião familiar que presenciamos. Antes que seja revelado qual é o grande problema da personagem, o próprio espectador já está com o pé atrás com aquela família de sorrisos postiços e sentimentos ambíguos com relação à visitante que sente-se  uma verdadeira estranha depois de tanto tempo afastada. Aos poucos sabemos um pouco mais da triste trajetória da personagem e como afetou a vida de todos ao seu redor. Sabemos que nada sairá bem. Mais notável do que o jeito de contar a história (com olhar firme, movimentos de câmera bem bolados e uma melancolia opressiva) é saber que Shults se inspirou num drama vivido em sua própria família para construir o roteiro (na vida real, a situação aconteceu com seu primo). Encarar um fantasma familiar já é um grande desafio, mas filmá-lo em nove dias na casa da família e com ajuda de parentes e amigos (a protagonista é tia do cineasta), em sua maioria não atores torna o resultado ainda mais notável. Talvez seja essa familiaridade que faça as dores dos personagens soarem bastante autênticas - o que lhe rendeu elogios no festival de Cannes2015 e o Prêmio John Cassavetes (para filmes de baixíssimo orçamento) no Independent Spirit Awards.  A habilidade do diretor em extrair suspense deste drama familiar lhe rendeu a chance de fazer seu segundo longa metragem, o elogiado terror Ao Cair da Noite (2017) com Joel Edgerton e Christopher Abbott que deve colocar seu nome entre os nomes mais cobiçados em Hollywood neste ano. 

Krisha (EUA-2015) de Trey Edward Shults  com Krisha Fairchild, Bill Wise, Robyn Fairchild, Alex Dobrenko, Chris Doubek e Trey Edward Shults. ☻☻☻

sábado, 17 de junho de 2017

Combo: Casais Casados

05 À Beira Mar (2015)
Ano passado um dos casais mais badalados de Hollywood colocou um ponto final em seu casamento de seis filhos. Brad Pitt e Anjelina Jolie se conheceram durante as filmagens de Sr. e Srª Smith/2005 e sempre diziam que não faziam uma sequência por não terem encontrado um roteiro que tivesse relação com os dois. Ironicamente os dois contracenaram juntos neste filme dirigido por Jolie sobre um casal que tenta superar a crise no casamento. O divórcio veio no ano seguinte com vários comentários dela reclamando da postura dele e ele dizendo que como diretora ela é muito mandona.  

04 Um Copo de Cólera (1999)
Os brasileiros Julia Lemmertz e Alexandre Borges eram casados há tempos quando o diretor Aluizio Abranches convidou os dois para esta adaptação da obra de Raduan Nassar. Os dois ficaram animadíssimos, mas quando leram o roteiro Julia tomou um susto: "Você vai filmar a gente fazendo isso?!". Ela se referia às cenas de sexo sem vergonha protagonizadas pelo casal que protagoniza a história. Ele é um ex-ativista que escolheu viver isolado numa chácara (assim como  o escritor) ela é uma jornalista, juntos eles protagonizam cenas tórridas até começarem uma verborrágica discussão interminável...

03 Irreversível (2002)
Por treze anos o francês Vincent Cassel e a italiana Monica Bellucci formaram o casal mais badalado do cinema europeu. Os dois se conheceram nas filmagens de O Apartamento (1996) mas oficializaram a relação três anos depois. Os dois dividiram os créditos novamente neste drama violento de Gaspar Noé que fez muita gente passar mal na sala escura com a narrativa invertida, a cena de estupro mais longa do cinema, a cabeça esmagada por um extintor, um clube SM gay e... o tom constante de tragédia. No meio ao caos, a química do casal é um excelente contraste às atrocidades que Noé propõe no seu filme mais bem sucedido. 


02 Um Sonho Distante (1992)
Tom Cruise e Nicole Kidman se conheceram nas filmagens de Dias de Trovão (1990). Já casados embarcaram neste drama romântico sobre um casal de jovens irlandeses que vão tentar a sorte nos Estados Unidos no ano de 1893 (e descobrem que o sonho americano é mais difícil do que pensavam - mesmo com a direção açucarada de Ron Howard). A intenção do filme era fazer bonito nas premiações, mas agradou somente as suspirantes fãs do astro. O casal atuaria juntos novamente em 1999 num contexto completamente diferente em De Olhos Bem Fechados de Stanley Kubrick - pouco tempo antes da famosa separação. 

01 Uma Aventura da Martinica (1944)
Bastava ver uma cena para perceber que existia algo de muito especial quando se colocava o galã Humphrey Bogart e a destemida Lauren Bacall juntos na mesma cena. Aqui ele é um capitão americano, ela... uma ladra e quando o caminho dos dois se cruzam você pode deduzir tudo (dentro e fora da tela) olhando para a foto ao lado. Embora o casamento tenha durado pouco (1845 à 1957 devido ao falecimento dele), as faíscas entre os dois renderam mais três filmes clássicos: À Beira do Abismo (1946), Dark Passage (1947) e Paixões em Fúria (1948). Hoje a dupla é reconhecida como o casal mais celebrado da história do cinema. 

CATÁLOGO: De Olhos Bem Fechados

Kidman e Cruise: pesadelo erótico. 

Stanley Kubrick dirigiu apenas 13 longa metragens. Para muitos ele é considerado um dos grandes gênios do cinema e criador de  obras que figuram entre as favoritas de muita gente. No entanto, quis o destino que ele se despedisse com um filme que não é favorito de ninguém. De Olhos Bem Fechados só foi exibido pela primeira vez depois que Kubrick já havia falecido em consequência de um ataque cardíaco. O filme era um dos mais aguardados de 1999, especialmente por conta do casal Tom Cruise e Nicole Kidman - que casados na época, deixavam propagar na mídia que protagonizariam cenas repletas de erotismo no filme. A polêmica em torno do filme só crescia quando o cineasta faleceu e Cruise aparecia como grande defensor de que nada fosse cortado ou acrescentado ao longa, para que fosse exibido exatamente da forma como Stanley concebeu. Ao ser exibido no Festival de Veneza a obra dividiu opiniões - alguns o consideraram um vexame outros uma obra sensorial e hipnótica. O maior sabor de decepção deve ter ficado por conta de quem esperava ver momentos de intimidade reveladoras entre o casal de atores, que apareciam em cenas de sutil erotismo sob a batuta do cineasta (que dizem ter até contratado uma ajuda técnica para que o casal perdesse a timidez diante das cenas mais picantes). De Olhos Bem Fechados é um filme sobre fantasias sexuais e, por isso mesmo, torna-se bastante complicado de ser realizado (se podar demais fica frio, se relaxar demais fica vulgar...). A própria história do livro que inspira o filme é interessante, já que La Ronde de Arthur Schnitzler  foi escrito em 1897 e impresso em poucas cópias (para alguns amigos) no ano de 1900, o livro oferecia um mergulho num mundo onde o sexo aparecia como um ato de transgressão sobre convenções sociais e relações de classe. O roteiro adaptou a história tendo como protagonista o doutor William Harford (Cruise), casado com Alice Harford (Kidman). Belos, casados, bem sucedidos e endinheirados os dois chamam atenção por onde passam e os assédios são recorrentes, mas basta William suspeitar que Alice poderia tê-lo traído que ele mergulha em situações que lhe pareciam surreais (e o clima remete a isso mesmo, meio confuso, abstrato, nebuloso...). Se no início ele encontra com um pai que lhe oferece a própria filha adolescente, a situação fica ainda mais tensa quando ele se depara com uma sociedade secreta que organiza orgias num casarão nas redondezas da cidade. Kubrick surpreende por investir num erotismo que compõe uma atmosfera estranha, do pianista que toca vendado todas as noites (participação do diretor Todd Field), dos corpos nus, das máscaras, dos rituais misteriosos e com a morte sempre à espreita... tudo faz com que o longa pareça mais um pesadelo do que um sonho erótico - e se essa for a intenção está explicado o motivo do roteiro não se preocupar em costurar as cenas com muito empenho. Seja como for, Kubrick surpreendeu ao oferecer aos seus fãs mais um filme completamente diferente do que havia realizado até então - e, mesmo com pouco tempo de tela, ofereceu à Nicole Kidman a chance de provar que poderia se tornar uma grande atriz. Hoje, Tom Cruise poderia mostrar o mesmo gosto por ousadias com diretores renomados ao invés de correr atrás de franquias milionárias que o desvalorizam cada vez mais. 

 De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut / Reino Unido - EUA/1999) de Stanley Kubrick com Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Todd Field, Vinessa Shaw, Leelee Sobieski e Thomas Gibson. ☻☻☻

quinta-feira, 15 de junho de 2017

PL►Y: Vida

Reynolds e Jake: um marciano do barulho. 

Dirigido pelo sueco Daniel Espinosa (eu explico, o pai dele é chileno e ele ainda não divulgou se é parente do outro Espinoza), Vida chamou atenção desde os seus primeiros trailers que revelava pouco sobre a história que tinha para contar. Bastou o filme estrear para os críticos torcerem o nariz para esta releitura de tudo que fez Alien/1979 um sucesso (que rende filmes até hoje). Se você acha que Ridley Scott complicou demais o universo de sua cria com Prometheus/2012 e Covenant/2017 você irá adorar este aqui. Vida (eu já perdia a conta de quantos filmes carregam este nome simplista) conta a história de um grupo de astronautas que durante uma missão descobrem vida em Marte. Eles coletam  amostras e observam a vida se desenvolver no laboratório, mas... o que era uma simples larva começa a se desenvolver mais rápido do que eles esperavam. Assim, Calvin - o nome dado à amostra - começa a fugir do controle dos seus novos amigos curiosos. Espinosa não tem pudores em revelar em várias cenas que sua maior inspiração é mesmo no antológico filme de 1979, sendo que a maior está no visual que que parece mais próximo do que vimos em Gravidade/2013 de Alfonso Cuarón. A primeira parte do filme funciona bem, conseguindo equilíbrio entre alegria e estranhamento dos envolvidos, mas depois que as coisas começam a complicar, tudo se resume do velho jogo de quem será o próximo a morrer. Embora tenha Jake Gyllenhaal e Ryan Reynolds no elenco, ninguém tem tem muito o que fazer em cena - e nenhum deles chega a ter um momento memorável (afinal, todos tem o mesmo destino: virar comida de monstro). Algumas mortes são elaboradas, mas o filme tinha potencial para virar algo muito mais interessante sobre a descoberta da vida no Planeta Vermelho. O segundo ato se arrasta bastante até chegar no ato final, onde ele consegue criar uma tensão realmente genuína (mesmo que os mais espertos já saibam qual será a revelação final).  Vida pode até decepcionar, mas quem curte filmes de terror espaciais acharão tudo bem divertido. 

Vida (Life/EUA-2017) de Daniel Espinosa com Jake Gyllenhaal, Ryan Reynolds, Rebecca Ferguson, Hiroyuki Sanada e Ariyon Bakare. ☻☻

BREVE: A Última Família

A família Beksinski: filme simpático com desfecho assustador. 

Exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado e aclamado em vários Festivais (sobretudo europeus), A Última Família poderia ser um olhar interessante sobre o passar do tempo em uma família comum, mas se trata da biografia do artista plástico polonês Zdzslaw Beksinski. O roteiro de Robert Bolesto e a direção de Jan P. Matuszynski ousam na proposta de acompanhar 28 anos da vida de Beksinski ao lado de sua família e o resultado consegue ser bastante interessante ao  mostrar o protagonista como um sujeito que poderia ser até o seu vizinho. Do relacionamento com a esposa compreensiva, passando pelo relacionamento cansativo com o filho problemático e as mães idosas do casal (que moraram com eles por algum tempo) o filme capta com maestria este cotidiano que oscilava entre a tranquilidade e o conturbado. Por mais que Zdslaw (o ótimo Andrzej Seweryn que em vários momentos parece o velhinho de Up-Altas Aventuras/2009) e a esposa, Zofia (Aleksandra Konieczna) tentassem fazer o filho sentir-se bem, a instabilidade emocional de Tomasz (Dawid Ogrodnik) sempre está presente. O rapaz tenta morar sozinho, pensa em suicídio algumas vezes, tem relacionamentos amorosos que nunca avançam, trabalha como crítico musical, DJ, tradutor... mas sempre arranja tempo para deixar seus pais preocupados. A ênfase no relacionamento com o filho único é um aspecto interessante do filme sobre um artista que ficou conhecido por misturar vários estilos em sua carreira - chegando a criar algumas imagens perturbadoras, repletas de surrealismo e horror. O filme resiste à tentação de correlacionar o que acontecia em sua vida com as pinturas que realizava, mas, por isso mesmo, fica ainda mais interessante já que se tem a impressão que aquele simpático velhinho guardava angústias que não era capaz de compartilhar com ninguém - nem mesmo com a esposa (este aspecto aparece logo na primeira cena quando ele relata em uma entrevista as suas fantasias com... Alicia Silverstone!). Matuszynski cria um filme que surpreende por flui naturalmente, contando com uma bela fotografia, ótimo trabalho de edição  e reconstituição de época (destaque para a trilha sonora). O cotidiano retratado no filme mistura drama e um irônico senso de  humor, o que pode agradar até o espectador que nunca ouviu falar do artista, no entanto, o desgosto com a cruel cena final é inevitável. Mesmo em se tratando de uma cena real eu sempre penso que Matuszynski poderia ter colocado o ponto final em seu filme de uma forma mais sutil (eu imaginava que ele terminaria com Zdslaw sentado com os parentes que se foram se aproximando dele e olhando diretamente para a câmera), mas não deixa de ser corajoso terminar o filme com uma cena que destoa de todo o resto - o que a deixa tão assustadora quanto alguns quadros do artista. 

A Última Família (Ostatnia Rodzina/Polônia-2016) de Jan P. Matuszynski com  Andrzej Seweryn, Aleksandra Konieczna, Dawid Ogrodnik e Andrzej Chyra. ☻☻☻☻

sábado, 10 de junho de 2017

Na tela: Mulher Maravilha

Maravilha: um filme para chamar de seu. 

Pode se dizer que diante do sucesso do universo cinematográfico da Marvel a DC Comics está um pouco, digamos, atrapalhada. Afinal, não se trata mais de lançar um filme de herói para arrecadar bilheterias milionárias ao redor do mundo, o fato é que existe uma pressão para que a DC siga o caminho de sua concorrente e faça o mesmo nas telonas: integrar seus heróis numa verdadeira saga (tal e qual existe nas HQs). A Warner, detentora dos direitos da DC nos cinemas, não tinha a intenção de fazer nada parecido - e disse isso para imprensa várias vezes antes do fenômeno Vingadores/ 2012 mudar as regras do jogo. Ao topar a empreitada foi reconfigurada a continuação de Homem de Aço/2013 como o primeiro exemplar desse universo unificado. Lamentavelmente Batman v. Superman (2016) sofreu tantas intervenções que gerou uma histeria assustadora, que piorou muito mais com a versão retalhada de Esquadrão Suicida (2016) que chegou nos cinemas. Quanto à bilheteria não havia do que reclamar (e Esquadrão ganhou até um Oscar, lembram?), mas de olho num público mais amplo, o sinal de alerta soou nas gravações da próxima aventura a estrear: Mulher-Maravilha. O fato é que para a além do tabu de ser um raro filme de super-heroína, trata-se também de um dos pilares da DC Comics.  Para além disso, para um público que adora alienígenas e naves espaciais, mexer com deuses e mitologia ainda soa como heresia, nem vou falar que ela tem um dos uniformes mais complicados de levar para um filme e, o que é essencial para a personagen, Mulher-Maravilha é o heroísmo em estado puro! Ela não nasce de um planeta destruído ou presenciou a morte dos pais na infância. Descendente da rainha das amazonas, esculpida do barro e recebendo o sopro de vida do próprio Zeus, ela nasce para zelar pela vida sem cinismos ou grandes conflitos (algo um tanto fora de moda para os tempos estranhos que vivemos). Diana foi treinada para ser uma guerreira e sente necessidade de conhecer o mundo para além de Themyscira (mais conhecida como a Ilha Paraíso, criada por Zeus especialmente para as guerreiras amazonas e onde homens não são bem vindos) quando sabe que o mundo está em perigo com a chegada acidental do Capitão Steve Trevor (Chris Pine).

Trevor e Diana: clima de comédia romântica. 

Dirigido por Patty Jenkins (que desde que arrancou a oscarizada atuação de Charlize Theron em Monster/2003 sonhava em dirigir o filme Wonder Woman) o filme surpreendeu nas bilheterias e colheu elogios por reviver um filme de herói à moda antiga, sem inventar demais e com maior clima de matinê. Eu ainda percebo onde o filme foi mexido nos quatro atos feitos por Jenkins: o primeiro é o mais interessante ao mostrar a origem da personagem, o segundo torna-se um pouco cansativo ao mostrar o contato da personagem com o mundo dos mortais (e da-lhe piadinhas e tom de comédia romântica quando ela sai da ilha com Trevor). O terceiro a coloca no front e mostra porque ela se tornou um dos maiores nomes da DC Comics (a personagem foi criada na década de 1930 por William Moulton Marston - psicólogo polígamo cuja vida também merece um filme). Neste ponto devo dizer que a israelense Gal Gadot teve o grande desafio de fazer uma versão mais jovem e inexperiente da personagem que se tornou o ponto alto de Batman Vs. Superman. A bela atriz se esforça para dar conta dos dilemas da personagem, sua crença em matar o deus da Guerra e libertar os homens do horror das batalhas e sua decepção ao perceber que os homens apreciam a destruição mais do que ela imaginava. No entanto, surge o último ato um tanto forçado, mas que ainda é necessário para colocar a heroína no panteão dos seres mais poderosos do cinema junto ao grande público. Mulher Maravilha agrada, não está entre os meus filmes de heróis favoritos, mas mostra que a DC Comics descomplicou na hora de fazer um filme de herói dentro dos novos padrões "unificados". O resultado é mais agradável, menos sombrio, mas perde um pouco de ousadia - ainda que ele invista no discurso do empoderamento feminino de forma charmosa e irresistível.

Girl Power: a elite de Themyscira.

Mulher Maravilha (Wonder Woman/EUA-2017) de Patty Jenkins com Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright, Danny Huston, David Thewlis e Lucy Davis. ☻☻☻☻