O diretor Alain Guiraudine ganhou fama mundial com Um Estranho no Lago (2013), o sexto longa metragem de sua carreira. Naquele filme, um homem frequenta um lago afastado da cidade em que um grupo de homens vão para encontros sexuais - e todas as neuroses sobre o parceiro que você pode encontrar são encarnados pela presença de um serial killer entre os frequentadores. Equilibrando erotismo e suspense, o filme caiu nas graças do público LGBTQIAPN+. Não desejando se repetir, ele lançou o horroroso Na Vertical (2016) que não alcançou um terço do apelo do filme anterior. Oito anos depois (o diretor nunca deixou uma pausa tão grande em sua carreira iniciada no ano 2000), o diretor lançou Misericórdia, um filme que mistura comédia, crime e suspense num clima em que o espectador parece ser o maior detetive da trama. O filme acompanha a chegada de Jérémie (Félix Kysyl) que volta ao seu vilarejo natal para o enterro de seu antigo patrão, o padeiro local. Na verdade o falecido era mais do que um patrão e amigo, afinal, ele é mencionado como uma espécie de mentor, com quem Jérémie teve uma ligação muito especial quando era mais jovem. Convidado para ficar hospedado na casa da família enlutada, ele é acolhido pela viúva (Catherine Frot), mas aos poucos desperta cada vez mais ciúme no filho do morto (Jean Baptiste Durand), com quem Jérémie demonstra indícios de ter um envolvimento mais do que amigável no passado. O visitante também aparenta ter grande proximidade com Walter (David Ayala), que evita as investidas do moço. No entanto, se o grande sucesso da carreira do diretor ficou conhecido por tudo que era explícito, em Misericórdia, ele faz graça com o implícito. Em momento algum é dito que Jérémie manteve relações sexuais com quaiquer daqueles personagens no passado, mas existem tantas insinuações sobre a vida sexual do rapaz que a plateia imagina que quem se envolveu (ou não) com ele, nutriu algum rancor por conta disso. Esse caldeirão de tensões emocionais/sexuais começa a ferver ainda mais quando um personagem desaparece e Jérémie precisa se virar para demonstrar inocência, sendo capaz até mesmo de fazer um acordo inusitado com um outro personagem que começa a demonstrar interesse por ele e está disposto até a lhe fornecer um álibi perante a polícia. O filme surpreende pela capacidade com que deixa as entrelinhas para a plateia preencher e faz graça ao mesmo tempo em que amplia o seu emaranhado de sentimentos contraditórios entre os personagens e, talvez, o mais contraditório de todos seja o próprio protagonista que não consegue sair daquele lugar que já abandonou (sabiamente) no passado. Trata-se de uma comédia de humor bastante singular e até incômodo, mas que não deixa de ser original pela forma com que trabalha o tempo inteiro com o poder da sugestão, ou seria da provocação? O filme está atualmente disponível no Filmicca.
Misericórdia (Miséricorde / França - Espanha - Portugal / 2024) de Alain Guiraudie com Félix Kysyl, Catherine Frot, Jean-Baptiste Durand, Jacques Develay, David Ayala e Serge Richard. ☻☻☻☻
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