domingo, 30 de janeiro de 2022

PL►Y: Cala boca, Phillip!

  
Moss e Jason: comédia sobre o insuportável.  

Alex Ross Perry é um nome ascendente no cinema independente americano, no entanto, seus filmes propõem um verdadeiro desafio ao espectador: acompanhar até o final a jornada de um personagem insuportável. É uma proposta não apenas interessante, mas também, corajosa, já que a possibilidade de seus filmes serem detestados por conta dos protagonistas é grande. Por aqui, o título nacional (para o mais brando Listen Up, Phillip) já deixa claro a postura que a plateia terá com o jovem escritor vivido por Jason Schwartzman. Jason é Phillip Lewis Friedman, novelista que começa a chamar atenção de público e crítica, mas que enfrenta problemas para elaboração de sua nova obra. Num roteiro tradicional, nós ficaríamos envolvidos com o drama do rapaz e torceríamos para que ele conseguisse superar seu bloqueio criativo, mas aqui o texto de Perry vai para o caminho oposto. Arrogante e egocêntrico, Phillip sente-se melhor atacando qualquer pessoa que atravessa seu caminho, isso inclui amigos, ex-namoradas e até a namorada, Ashley (Elisabeth Moss), que achava graça da postura enfezada do parceiro até que a relação começa a ficar mais pesada e difícil de sustentar.  Cala boca, Phillip parece então ser uma brincadeira ácida com os bastidores de um escritor cheio de pretensões, mas que é uma pessoa difícil de querer encontrar por aí. O humor brota justamente da postura exagerada de Phillip com tudo e todos que o cerca e ganha outra camada quando ele encontra uma espécie de versão mais velha dele mesmo, o renomado escritor Ike Zimmerman (Jonathan Pryce), que se torna um espécie de mentor para ele. Ike poderia destilar ensinamentos nobres para o seu discípulo, mas ele não difere muito da postura de Phillip perante o mundo. Se você já achava chato o filme com um Phillip, com a chegada de Ike na narrativa, toda arrogância e prepotência do filme é elevada ao quadrado - ao ponto que em alguns momentos o próprio protagonista percebe que alguns limites estão sendo ultrapassados, principalmente quando consegue enxergar o mentor pelos olhos da filha negligenciada, Melanie Zimmerman (Krysten Ritter). Cala boca, Phillip tem um roteiro que foge dos padrões ao ser narrado como se fosse em si uma obra literária que amplia seu universo conforme apresenta seus personagens. Em vários momentos, a jornada de Phillip cede espaço para outros, mas sempre evitando julgamentos sobre suas posturas, deixando a cargo do espectador perceber  onde residem os problemas. A fotografia granulada, figurinos, ambientações e fontes dos créditos, remetem diretamente ao cinema dos anos 1970 enquanto a linguagem lembra muito a dos primeiros filmes de Noah Baumbach (que também eram chegados à misantropia) e os primórdios de Woody Allen (mas sem a autocrítica neurótica), demonstrando que Perry é um diretor cuidadoso, embora a maioria da plateia possa estranhar seu senso de humor tão ácido quanto afiado. 

Cala Boca, Phillip! (Listen Up, Phillip / EUA -2014) de Alex Ross Perry com Jason Schwartzman, Elisabeth Moss, Jonathan Pryce, Krysten Ritter, Jess Weixler, Daniel London e Teddy Bergman.☻☻ 

PL►Y: O Banquete

 
Banquete: duele de egos à mesa. 

No currículo de Daniela Thomas existem três grandes filmes brasileiros, Terra Estrangeira (1995), O Primeiro Dia (1998) e Linha de Passe (2008), os três são assinados junto com Walter Salles e tiveram grande repercussão dentro e fora do país. Em 2017 ela lançou seu primeiro longa de ficção, Vazante, sucesso de crítica no exterior, enfrentou críticas severas pela forma indiferente com que lidava com a questão da escravidão em meio à sua trama. Após a famosa sabatina no Festival de Brasília, Daniela saiu escaldada e isso deve ter dado corpo ao seu filme seguinte: O Banquete. Ambientado no final dos ano 1980, centrado em personagens de classe média alta e sem atores negros, não parece ser coincidência que o banquete seja servido em meio às críticas ao governo Collor e a famigerada "lei de imprensa", que tornava possível a prisão com base na publicação de artigos contrários ao governo. Esta alfinetada no histórico nacional de gosto pelo autoritarismo remete  diretamente à fragilidade de uma democracia que se via recém instaurada e em risco desde sempre, além de carregar de tensão o encontro do grupo de amigos para celebrar os oito anos de casamento do jornalista Mauro (Rodrigo Bolzan) e da atriz Beatriz (Mariana Lima), no entanto, o que poderia ser um simples encontro de amigos se torna um verdadeiro massacre verbal. Promovido no apartamento de Nora (Drica Moraes), assim que a primeira convidada aparece, Maria (Fabiana Gugli), ela percebe que aquele é o cenário de uma armadilha. Ela está certíssima. Acompanhada de Lucky (Gustavo Machado), ela é meio que forçada a continuar por ali, enquanto ele começa a assediar o garçom do banquete (Chay Suede). O marido de nora (Caco Ciocler) já está visivelmente bêbado antes de tomar a primeira taça de vinho e não parece muito consciente da fúria da esposa em imaginar que a qualquer momento a polícia pode bater à porta para prendê-lo por conta de uma carta aberta publicada com o aval de Mauro. Várias taças de vinho depois, a "elite" apresentada se deleita em diálogos que vão de pênis e vaginas à filosofia e, às vezes, o cenário da política nacional. Revelações de alcova são ditas, confrontadas e as intrigas fermentam como se fossem ingredientes de um prato que fica melhor quando consumido frio. Haja estômago do espectador para ver personagens que pretendem salvar o país expondo se agredindo durante toda a duração do filme. É um filme bem filmado, mas feito para ser desagradável aos ouvidos pelo jogo de ofensas que é proposto, faltou apenas fazer o espectador se importar com aquelas pessoas. O que se vê à mesa é apenas o ego de uns inflando enquanto faz o do outro convidado murchar, numa guerra de miudezas humanas enquanto o país tenta não afundar (e a última frase de Nora retrata toda ironia da situação). Concebido para ser uma peça de teatro, Daniela Thomas demorou vinte anos para conseguir levar o projeto para as telas. Reuniu um  elenco de fôlego para bancar a metralhadora verbal com longos takes e ambientou toda a discussão em um apartamento sombrio, com uma parede espelhada envelhecida, figurinos escuros, vinhos e comida afrodisíaca. Se o efeito deveria ser de uma bomba prestes a explodir, a verdade é que ela oscila bastante no tom e na atmosfera que sofre com a repetição de sua matéria-prima. Vale muito pelo elenco (especialmente Mariana, Fabiana e Drica, nesta ordem), mas no fim das contas parece um grupo de pessoas que bebeu demais e no dia seguinte, no meio da ressaca, irá se perguntar sobre o que aconteceu no meio do café amargo. Acho que só o garçom irá lembrar de toda aquela baixaria.  

O Banquete (Brasil/2018) de Daniela Thomas com Drica Moraes, Mariana Lima, Caco Ciocler, Rodrigo Bolzan, Fabiana Gugli, Chay Suede, Gustavo Machado, Bruna Linzmeyer e Georgette Fadel. ☻☻

sábado, 29 de janeiro de 2022

PL►Y: Balada do Amor e do Ódio

 
Sergio x Javier: palhaços temperados com amor e ódio. 

Quem era atento ao cinema espanhol dos anos 1990 deve lembrar de Alex de la Iglesia aparecendo por aqui assinando filmes que causaram estranhamento como Ação Mutante (1993), O Dia da Besta (1995) e Perdita Durango (1997). Seus três primeiro filmes deixavam claro que o cineasta estava disposto de se distanciar do cinema espanhol conhecido pelos trabalhos de Pedro Almodóvar (que começava a ficar mais sério) e investir cada vez mais numa criatividade absurda. Seus personagens estavam longe de se render à compreensão mais tradicional, eram perdidos, erráticos, contraditórios, caricatos, insanos... foi calcado nas ações deste tipo de personagens que o cinema de Iglesia se tornou popular ao redor do mundo e chegou, em 2010 a lhe render (para surpresa geral) os prêmios de roteiro e direção no Festival de Veneza, além de concorrer ao Leão de Ouro (prêmio máximo do Festival) e ser indicado a 15 categorias do Goya (o Oscar espanhol). Conhecendo o histórico do moço, fiquei curioso de ver o que ele fez para conquistar de vez a atenção de quem costumava ver seu cinema com ressalvas. Os fãs devem ter respirado de alívio ao perceberem que Iglesia continua o mesmo, mas conseguiu dar um polimento ainda mais refinado ao que seu cinema poderia ter de irônico. É verdade que o título brasileiro consegue ser uma tragédia ao alterar o título original, mas pelo menos consegue captar o clima existente entre os dois palhaços que movimentam a trama. Na verdade, ele começa acompanhando o pai de um deles, que também era palhaço e, no meio de uma apresentação no circo repleto de crianças, vê seu espetáculo ser interrompido pelo exército no meio da ditadura franquista para escalar os artistas circenses para uma batalha. Óbvio que Iglesias não dá a chance de ninguém trocar de roupa, rendendo uma das cenas de combate mais surreais da história do cinema. Com os palhaços agindo como soldados numa guerra, o filme ainda parece manter alguma seriedade até que descobrimos que aquela é só a introdução sobre fatos marcantes da infância de Javier (Carlos Areces), cujo pai deixou claro que o menino não tinha graça para seguir o ofício de sua família (afinal, até o avô dele era palhaço), mas que ele poderia conseguir sucesso como soldado triste de um circo. Eis que Javier já demonstra desde cedo ter raiva do mundo e cria uma situação que irá lhe custar o que resta de sanidade no futuro... crescido ele consegue emprego como o palhaço triste de um circo, mas se apaixona pela esposa do palhaço principal (Antonio de La Torre) do espetáculo. Se no palco seu rival é divertido e atento às crianças, fora do palco ele é apenas Sergio, um homem agressivo e violento (já Javier parece nunca estar muito animado com a vida). Colocadas as personalidades em oposição está feito o conflito que alimentará a guinada insana que o filme sofrerá. Afinal, por caminhos distintos, os dois irão se tornar verdadeiros monstros, desfigurados (física e mentalmente) em suas fragilidades. Fosse um outro diretor, o filme começaria com os dois personagens com suas aparências destruídas lutando pelo amor de uma mulher que agora teme os dois, mas como Iglesia é diferente, ele prefere começar na base da identidade dos personagens  e contar como aqueles se deixaram destruir pela loucura da rejeição. É verdade que existe todo um pano de fundo histórico para a trama, mas ela fica de lado conforme o filme constrói suas guinadas entre gêneros cinematográficos variados. O que começa como comédia se torna drama histórico, vira romance, drama, tragédia, suspense, terror, trash e por aí vai. O grande mérito do filme (além do trabalho excepcional de Carlos e Antonio perdendo as estribeiras sob pesada maquiagem) é demonstrar que debaixo de toda a piração de Iglesias, vive um cineasta de mão cheia capaz de fazer qualquer tipo de filme, mesmo que possa ser visto como exagerado em pouco mais de cem minutos de projeção.   

Balado do Amor e do Òdio (Balada Triste de Trompeta/Espanha - 2010) de Alex de la Iglesia com Carlos Areces, Antonio de la Torre, Carolina Bang, Manuel Tallafé, Enrique Villén, Alejandro Tejerías, Gracia Olayo e Sancho Gracia. ☻☻

PL►Y: Luca

 
Luca: adorável menino monstro marinho. 

Depois da confusão com a participação de bilheteria de Scarlett Johansson em Viúva Negra (2021) que acabou lançado no Disney+, agora é a vez da Pixar reclamar do lançamento de seus três últimos filmes na plataforma de streaming. Depois de Soul (2020) passar com isso por conta da pandemia, Luca foi o segundo a ir direto para a plataforma do Mickey e sua turma (e o recente Red irá pelo mesmo caminho no dia onze de março). Embora a pandemia ainda continue por aí, a Disney garantiu o lançamento de seu Encanto (2021) nos cinemas ao redor do mundo... tretas à parte, talvez, lá no fundo, a empresa tenha percebido que Luca não teria grande apelo nas bilheterias com a história de um monstro marinho que ao sair do mar se torna um menino e vive aventuras na terra firme. Esta premissa se parece com várias outras histórias que já vimos antes, desde o clássico A Pequena Sereia (1989) até o japonês Ponyo (2008), mas aqui ganha outros rumos para trazer alguma novidade, especialmente numa narrativa que apela contra o preconceito ancorado na simbologia do que pode ser visto como estranho, diferente, monstruoso... claro que o protagonista é uma fofura, seja na sua forma de monstro marinho ou de menino, assim como seu amigo, Alberto que serve de guia para suas aventuras em terra firme ao longo do filme. No entanto a estrutura do roteiro sobre dois amigos que vivem uma grande aventura e no final apresenta uma grande lição aos demais personagens já parece um tanto batida, além disso, todo o tom da história parece voltada para as crianças pequenas. É verdade que o capricho da animação e o visual deslumbrante (seja no fundo do mar ou na Riviera italiana) ajuda a compor um filme a que se assiste sem problemas, mas também sem surpresas. Obviamente que haverão pessoas fazendo leituras mais elaboradas sobre os dois meninos que viviam felizes em uma linha compartilhando um segredo que pode ser descoberto quando os dois decidem ir juntos para uma cidade e colocar em risco suas peripécias... mas lá também eles fazem amizade com uma menina e descobrem que para conhecer o mundo precisam de muito dinheiro. Luca é um filme bastante simples e fácil de gostar se você não esperar um dos roteiros genialmente elaborados da Pixar, mas até quando o roteiro do estúdio não é grande coisa, o resultado alcançado ainda pode ser visto como um acerto. 

Luca (EUA-2021) de Enrico Casarosa com vozes de Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Emma Berman, Saverio Raymondo e Maya Rudolph. ☻☻

sábado, 22 de janeiro de 2022

Pódio: Dev Patel

Bronze: o futuro milionário. 
A primeira vez a gente nunca esquece... a primeira vez que vimos o britânico Dev Patel no cinema foi na pele de Jamal Malik no oscarizado filme de Danny Boyle. Na pele do rapaz de origem pobre que participa de um programa de televisão para ser encontrado por sua amada, Patel está irresistível. Impossível não torcer por Malik ao longo de todo o filme. Patel tinha apenas dezoito anos quando protagonizou o filme (quem assistia a série Skins já o conhecia um pouquinho antes). Embora o Oscar não o tenha indicado ao prêmio de melhor ator, seu trabalho é fundamental para o filme funcionar até hoje. 

Prata: o perdido crescido. 
A primeira indicação do ator ao Oscar veio neste drama comovente sobre um menino de cinco anos perdido nas ruas de Calcutá. Sem encontrar sua família, ele é adotado por um casal de australianos e, embora tenha uma vida confortável, quando adulto desenvolve sérios conflitos com a vida que deixou para trás. Patel interpreta o menino quando crescido e sua busca pelas origens transforma o filme num drama familiar que fez muita gente chorar ao redor do mundo. O filme deu novo fôlego à carreira do moço (que estava preso a papéis pouco desafiadores) e aqui demonstra dar conta de personagens complexos.

Ouro: o lendário sobrinho. 
Se Dev Patel precisava de um papel para provar que cresceu na idade e no talento, o papel do lendário Gawan, sobrinho do Rei Arthur, caiu-lhe como uma luva! Na pele do jovem que não é cavaleiro e cai em um desafio que se mostra uma verdadeira armadilha, Patel tem uma atuação primorosa, introspectiva e cheia de nuances. Gawan come o pão que Merlin amassou numa jornada que, tudo indica, acabará com sua vida cheia de possibilidades. O visual do filme é irretocável e mistura o tom épico contemplativo com doses consideráveis de suspense. Uma ótima atuação numa verdadeira obra-prima. 

FILMED+: A Lenda do Cavaleiro Verde

Dev Patel: a saga do sobrinho do Rei Arthur. 

Lançado nos Estados Unidos em julho do ano passad, The Green Knight foi saudado como o melhor filme de 2021, mas conforme o tempo foi passando, ele perdeu fôlego para as premiações (embora tenha entrado na lista indie do National Board of Review e recebido duas indicações no Gotham Awards). Com a pandemia, a situação do filme no Brasil ficou complicada, já que sofreu diversos adiamentos e agora encontra espaço no streaming do Prime Video. Ao ver o filme eu só lamento que não podemos ver o visual inebriante da produção numa telona de cinema, já que o diretor David Lowery constrói aqui uma verdadeira obra-prima. O roteiro é baseado na história "Sir Gawan e o Cavaleiro Verde" que faz parte dos Contos da Távola Redonda, as histórias orais do século XVI que giram em torno do lendário Rei Arthur e seus Cavaleiros. Gawan é o sobrinho do Rei Arthur e a escolha ousada de Dev Patel para interpretá-lo mostra-se um grande acerto ao longo do filme, já que ele consegue dar conta das nuances que o personagem exige, sobretudo com relação às suas inseguranças perante sua conturbada jornada. Embora não seja um cavaleiro, o rapaz tem acesso ao convívio dos Cavaleiros de seu tio e ao participar de uma celebração natalina na corte recebe a visita do Misterioso Cavaleiro Verde. De estranha aparência arboreal, o cavaleiro desafia um dos presentes a feri-lo, desde que no próximo natal, este o procure e permita que retribua o gesto. Gawan aceita o desafio, sem pensar nas consequências a longo prazo. Passado um ano, ele hesita ao partir ao encontro do Cavaleiro Verde, sabe que se retornar terá se tornado uma lenda, mas existe grande chance de não voltar para a proximidade de sua mãe (Sarita Choudhury) e da mulher que ama (Alicia Vikander). Quem conhece o estilo de Lowery (de Sombras da Vida/2017 e Amor Fora da Lei/2013) sabe que ele não tem muito interesse em cenas de ação, prefere atmosferas mais intimistas refletindo um verdadeiro turbilhão de emoções em cadência contemplativa. Aqui, ele soma este coeficiente comum de seus filmes anteriores a ambientações impressionantes, seja de construções opressoras ou de paisagens naturais traiçoeiras (valorizadas pela belíssima fotografia de Andrew Droz Palermo, o mesmo de Sombras da Vida). Em sua jornada, Gawan reflete sobre seus medos, encontra personagens perigosos, sinistros e sedutores que alimentam o tom reflexivo sobre as possibilidades que o personagem possui ao seguir seu caminho repleto de magias. Este ponto é o que faz o final ter um caráter surpreendente em seu último momento, já que, embora sombrio, faça o espectador compreender as motivações de Gawan perante seu algoz. Devo confessar que sou fascinado pelos Contos da Távola Redonda, mas que sempre estranho quando os estúdios resolvem fazer filmes de ação e esquecem o que eles possuem de mais relevante por trás de seus embates: os dilemas morais. São eles que dão o peso fundamental nas construção das histórias e dos personagens que tornam as histórias da mitologia medieval populares até hoje. Se pudesse entrevistar o David Lowery, eu perguntaria se ele assistia o clássico desenho Rei Arthur realizado pelo estúdio japonês Toei (produzido em 1979 e cultuado desde então), já que o A Lenda do Cavaleiro Verde lembra muito os momentos assustadores presentes naquele desenho, só que aqui, adaptados para uma precisa atmosfera adulta cinematográfica. Adoraria vê-lo voltando a este universo com a mesma energia que apresenta aqui (mas já o escalaram para mais uma versão de Peter Pan...). The Green Knight é um filme de encher os olhos e a imaginação do espectador.  

A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight / Irlanda - Canadá - EUA / 2021) de David Lowery com Dev Patel, Alicia Vikander, Joel Edgerton, Sarita Choudhury, Sean Harris e Ralph Ineson. ☻☻

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

PL►Y: The Wise Kids / Henry Gamble's Birthday Party / Princess Cyd

 
The Wise Kids: religião e sexualidade.

Eu poderia escrever um post para cada um dos filmes que aparecem aqui, mas acho que quando os comento ao mesmo tempo, cria uma perspectiva muito semelhante à sensação que tive ao assisti-los ao longo da semana. Eu estava um tanto indisposto para ver filmes muito densos ou elaborados quando me deparei com The Wise Kids. Nunca havia escutado falar do filme e não busquei maiores informações além da sinopse sobre um grupo de adolescentes de uma comunidade religiosa que começavam a vivenciar questionamentos sobre o futuro, seja quanto à vida universitária ou  identidade sexual. O filme tem uma filmagem simples, que lembra muito os filmes feitos para a televisão nos anos 1990, mas tem um roteiro sensível que chama atenção pela forma como é dito pelos atores como se não estivessem interpretando. Aparentemente tudo gira em torno de uma peça na igreja, mas que aos poucos começa a se desviar para outras situações, como a homossexualidade de um jovem da igreja (Tyler Ross) e a chance de estudar cinema em uma faculdade distante. A autodescoberta do menino causa estranhamento em uma de suas amigas e faz com que outra comece a repensar alguns posicionamentos das pessoas que os cercam. O filme aos poucos se volta também para um casal em crise, sobretudo pelo desinteresse do marido pela esposa, curiosamente somente depois eu descobri que este marido é vivido por Stephen Cone, o diretor e roteirista deste e dos outros dois que estão em cartaz na MUBI. Cone não fez faculdade de cinema e diz que aprendeu a fazer filmes ao fazer filmes. Neste aqui, ele utiliza várias referências sobre sua vida em uma comunidade marcadamente religiosa para expressar o conflito pessoal não apenas de jovens, mas de adultos perante o que eles desejam e o que se espera deles. Se o visual do filme é simples, a complexidade dos personagens chama atenção e a compaixão da plateia. Embora algumas situações deixem a impressão de não serem exploradas em todo seu potencial, The Wise Kids sempre soa sincero e funciona como uma eficiente carta de apresentação da obra de Stephen Cone (embora seja seu terceiro longa-metragem). Seus longas costumam ter problemas de distribuição e são mais vistos em festivais, o que o fez se tornar um nome aclamado no cinema independente americano. Muitos dos elementos que aparecem neste filme já foram vistos nos filmes anteriores do diretor e aparecem também em Henry Gamble's Birthday Party (2015), só que agora concentrados em uma festa de aniversário. Mais uma vez os jovens lidam com o ambiente religioso, mas desta vez os hormônios torna o sexo um tema comum nas conversas - a começar pela cena de abertura do aniversariante (Cole Doman) conversando intimidades com seu melhor amigo (Joe Keery que depois ficou famoso como o Steve de Stranger Things). A curiosidade dos dois logo entra em contraste com o misto de tensão e repressão sexual que aparece na festa. Aqui, Cone demonstra maior habilidade em lidar com um grande número de personagens, criando diálogos tortos que soam muito reais, assim como olhares que revelam sempre algo a mais nas relações dos convidados. Entre trajes de banho, sensações tentadoras, paixões proibidas, casamentos em crise, homofobia e o medo de um suicídio, Cone tenta conduzir o filme com leveza, deixando que essência dos personagens (que parecem prestes a quebrar) conduza a narrativa até o desfecho ao som inesquecível de Everyone is Dark do New Canyons

Henry Gamble (Cole Doman): festinha complicada. 

Se estes dois filmes parecem complementares (sobretudo para notar a evolução de Cone enquanto cineasta) o terceiro filme merece destaque ainda maior. Princess Cyd (2017) é o último filme lançado pelo diretor. Aqui alguns temas dos filmes anteriores aparecem novamente (soam como verdadeiras obsessões para Cone), mas a forma como surgem na história é mais orgânica, talvez seja o efeito de restringir o número de personagens que tem em mãos e mudar o foco do masculino para o feminino (o que traz a busca de um novo ponto de vista que é muito bem vindo à cinematografia do diretor). É realmente impressionante como Stephen Cone consegue criar personagens femininas tão bem delineadas e que desenvolvem entre si uma relação tão rica. Ajuda muito também o fato do diretor investir ainda mais em movimentos de câmera e cortes mais precisos, o que oferecem à produção um ritmo ainda mais especial, com maior fluência cinematográfica e um formato menos "quadradinho" de contar a história. A começar pelo início, em que antes que alguma cena apareça, ele chama nossa atenção para algo terrível que aconteceu. Quando finalmente conhecemos a protagonista, Cyd (Jessie Pinnick), vários anos se passaram daquele incidente mencionado. Não sabemos ao certo quem é ela ou o que aconteceu, apenas descobrimos que o relacionamento dela com o pai não é muito bom, que ela sonha fazer faculdade e considera que uma visita de verão à tia em Chicago é uma boa ideia. Miranda Ruth (ótimo trabalho de Rebecca Spence), a tia, é uma escritora conhecida na região e de vez em quando leciona na Universidade local. Se no início ela fica um pouco tensa com a presença da sobrinha que não vê faz tempo, aos poucos, ela começa a apreciar a companhia da menina. Miranda é muito bem resolvida, mas a presença de Cyd começa a motiva-la a se abrir mais para o mundo, seja a encontrar prazer em uma manhã tomando sol no jardim, uma tarde na praia ou perceber que um amigo talvez possa se tornar mais do que apenas um companheiro de conversas literárias. Ao mesmo tempo, Cyd também irá perceber que aquilo que para ela é tão importante, para outras pessoas pode não ser. Interessada por pessoas de ambos os sexos, desinteressada por literatura e religião, o diretor Stephen Cone demonstra saber a medida exata de estabelecer uma tensão constante entre  as duas personagens para desconstruí-la aos poucos, pedaço por pedaço com diálogos primorosos, assim, ele cria uma narrativa que evolui aos poucos entre a convivência das duas personagens.  A relação entre as duas é construída de forma tão refinada que até o namoro de Cyd com a barista não binária Katie (Malic White) fica ofuscado, embora, o roteiro saiba como armar muito bem os momentos ternos entre este par romântico tratado com naturalidade, sem vestígio de sensacionalismos (um verdadeiro achado). No entanto, as cenas mais memoráveis do filme fica mesmo por conta de tia e sobrinha, que terminam o filme com aquela conversa breve no telefone  e deixa o espectador com vontade de manter aquela atmosfera afetuosa na memória por muito tempo. Com suas histórias sensíveis sobre o  crescimento de jovens e adultos, Stephen Cone se tornou um nome a ser notado. 

Miranda e Cyd (ao centro): bom demais de assistir. 

The Wise Kids (EUA-2011) de Stephen Cone com Tyler Ross, Stephen Cone, Molly Kunz, Eric Hulsebos, Lee Armstrong e Cliff Chamberlain. 

Henry Gamble's Birthday Party (EUA-2015) de Stephen Cone com Cole Doman, Joe Keery, Pat Healy, Elizabeth Laidlaw, Daniel Kyri, Travis A. Knight, Melanie Neilan, Francis Guinan e Tyler Ross. 


Princess Cyd (EUA - 2017) de Stephen Cone com Jessie Pinnick, Rebecca Spence, Malic White, Tyler Ross, James Vincent Meredith e Keith Kupferer. ☻☻

PL►Y: Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis

Tony e Liu: recorte e colagem chinês Made in Hollywood. 

Confesso que demorei uma eternidade para escrever sobre este filme da Marvel por ter enfrentado um verdadeiro desafio de ficar acordado durante as vezes em que tentava assistir. É preciso dizer que a partir de certo ponto eu até fiquei interessado nos rumos na história, mas, o motivo sonífero da produção sempre estava presente. Calma, eu explico. Quando a Marvel anunciou que em sua nova fase eles adaptariam o personagem Shang Chi para o seu universo cinematográfico, muita gente ficou surpresa com os planos para um personagem que não vive o auge de sua popularidade faz tempo. Criado em 1972 para aproveitar o sucesso da série televisiva King Fu, Shang Chi teve uma HQ só para ele até 1983, depois se tornou coadjuvante de histórias estreladas pelo Punho de Ferro, Cavaleiro da Lua e até dos X-Men. Enquanto a fase pós-Ultimato vai ganhando forma, surgiu o filme de origem do personagem em tempos de pandemia (e de olho no vasto mercado oriental). A história é bem simples: Shang Chi (Simu Liu) é um jovem chinês que saiu de seu país e foi viver nos Estados Unidos sossegado, até que um grupo de personagens misteriosos aparecem para que seu passado seja descoberto. Afinal, ele é filho de Wenwu (Tony Leung), um guerreiro imortal que o treinou desde pequeno para ser seu sucessor. Este seria o rumo natural das coisas se Shang não houvesse descoberto que seu pai está longe der ser a pessoa nobre que ele imaginava. Eis que o rapaz voltará para a China com sua melhor amiga (Awkwafina) e sua complicada história familiar começa a tomar conta do roteiro. Além do passado de sua mãe, ele reencontra  a irmã rancorosa e até uma tia (que vive num lugar repleto de magia). Ah, o filme também tem lutas super elaboradas em ônibus, ringues da dark web, em andaimes de um prédio, além de guerra com dragões ameaçadores e tudo mais que os roteiristas  Dave Callaham e Destin Daniel Cretton (que também assina a direção) assistiram em filmes de ação chineses nas últimas décadas. São tantas referências já assistidas em tantos filmes (de O Tigre e o Dragão/2000 até os sucessos de Jackie Chan) que achei difícil me envolver com tudo o que estava acontecendo. É verdade que tem efeitos especiais esmerados (mas que por vezes deixam claro sua artificialidade) e, talvez para se equilibrar com o plot que se leva a sério demais, o filme resolveu fazer  troça com alguns de seus próprios elementos com as atuações de Awkwafina e Ben Kingsley (que retoma aqui o criticado Mandarim para passa-lo a limpo). Mas nem tudo é postiço, Simu Liu consegue injetar carisma ao seu personagem parrudo e bom moço, mas quem rouba a cena mesmo é o ótimo Tony Leung (astro de vários filmes de Wong Kar-Wai) que desvia seu personagem do arquétipo de vilão tradicional (especialmente por ter uma pendenga familiar no meio do caminho). Sobre os Dez Anéis, vale dizer que ele compõem parte do belo visual do filme, mas no fim da contas, com todo seu recorte e colagem, Shang Chi não me deixou empolgado. 

Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang Chi and The Legend of the Ten Rings/EUA-2021) de  Destin Daniel Cretton com Simu Liu, Tony Leung, Awkwafina, Fala Chen, Michelle Yeoh, Meng'er Zhang, Ben Kingley e Florian Monteanu. 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

4EVER: Elza Soares

23 de junho de 1930 ✰ 20  de janeiro de 2022

Nascida no Rio de Janeiro, Elza Gomes da Conceição teve uma uma infância pobre, ajudava a mãe nos serviços domésticos, mas gostava de brincar com os meninos na rua. A vida de Elza não foi fácil, o casamento arranjado quando ainda era adolescente e a vivência ao lado dos filhos antes dos vinte anos sempre lhe garantiu histórias sofridas. Os trabalhos lhe rendiam pouco dinheiro alimentavam seu sonho de ser cantora, bastou se apresentar no programa de rádio apresentado por Ary Barroso para que a voz peculiar chamasse atenção. Em 1960 o sonho de trabalhar somente com música se realizou. Anos depois seu relacionamento com o jogador Garrincha chamava atenção da mídia (e o relacionamento entre os dois virou até filme, Estrela Solitária/2003, em que a cantora foi vivida por Taís Araújo). Elza lançou mais de trinta álbuns ao longo de sua carreira, foi eleita em 1999 pela Rádio BBC de Londres o título de cantora brasileira do milênio. Prestes a completar 70 anos sua carreira ganhou novo fôlego com o CD Trajetória (1997) e com A Mulher do Fim do Mundo (2015), Elza consolidou de vez sua imagem de ícone para uma nova geração de fãs. A atriz faleceu em decorrência de causas naturais em sua residência. 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

4EVER: Gaspard Ulliel

 
25 de novembro de 1984 ✰ 19 de janeiro de 2022

Gaspard Thomas Ulliel nasceu no conforto do subúrbio parisiense, filho de uma produtora e um estilista. Embora tenha estudado cinema na Universidade de Saint Denis, seu gosto pela atuação surgiu quando ainda estava na escola, quando começou a carreira em várias produções para a televisão francesa nos anos 1990 e uma cicatriz no rosto em decorrência de um arranhão de cachorro aos seis anos de idade lhe conferiu um sorriso bastante instigante. Seu primeiro longa-metragem foi o sucesso O Pacto dos Lobos (2001), mas ele começou a se tornar famoso após Eterno Amor/2004 de Jean Pierre Jeunet, que lhe rendeu o César de ator revelação. A fama mundial veio quando encarnou um jovem Hannibal Lecter em A Origem do Mal (2007), trabalho que dividiu opiniões, principalmente pela ausência de semelhança com Anthony Hopkins e um péssimo roteiro. No entanto, isso não impediu que Ulliel acumulasse prestígio em sua carreira, sendo indicado outras quatro vezes ao prêmio César, uma delas por seu trabalho em Saint Laurent/2014 (e perdeu para Pierre Niney que interpretou o famoso estilista em outro filme no mesmo ano) e  foi premiado pelo trabalho intimista em Apenas o Fim do Mundo/2016 do canadense Xavier Dolan. Ulliel em breve aparecerá na série da Marvel,  Cavaleiro da Lua e no filme Plus que Jamais que deve estrear ainda esse ano. O ator faleceu em decorrência de um grave acidente de esqui. 

PL►Y: The House

Um: a origem. 

Em cartaz na Netflix desde a semana passada, a animação The House é um daqueles filmes preciosos que podem ficar perdidos no vasto catálogo da gigante do streaming. Em se tratando dos tempos em que só se falam de continuações entre filmes que disputam uma vaga no próximo Oscar a situação desta curiosa produção fica ainda mais arriscada. Feito em stop motion (aquela técnica feita com bonecos em que os movimentos são captados quadro a quadro e demora uma eternidade para se fazer um longa de hora e meia de duração). O filme é composto de três histórias em tom de contos em torno de um casarão. Não espere muita ligação entre as três histórias (embora sejam todas escritas pela também produtora Enda Walsh), embora, em todas elas a casa sirva mais do que ambientação não e se torne um personagem importante em cada uma das tramas - ao lado dos fofos bonecos que trazem uma expressividade melancólica para as ideias que aparecem aqui. A primeira história (dirigida por Emma De Swaef e Marc James Roels)  conta a origem do casarão, no século XIX, vinculada à uma família que estava cansada de ser esnobada pelos parentes e vê a oportunidade de mudarem de vida quando um misterioso empreiteiro os convida a morarem em uma casa  muito maior e luxuosa. A única condição para ganharem a casa de presente é deixar que ela seja construída no terreno do qual são proprietários. Obviamente que quando a esmola é demais o santo desconfia e as crianças começam a perceber que existe algo de estranho em toda aquela história, mas o preço da ambição de seus pais pode ser bastante alto. A primeira história é a que mais flerta com o terror e o suspense, numa cadência perfeita que bebe nos clássicos do gênero (em que confiar na pessoa errada pode ser mortal) e marca o tom de surpresa que se torna uma constante da produção. Já a segunda história é protagonizada por um simpático ratinho (com voz de Jarvis Cocker, vocalista do Pulp) que resolveu reformar o casarão para vender e ter algum lucro.

Dois: a ruína de um rato. 

Aquele é o projeto da vida dele e, embora a narrativa (dirigida agora por Niki Lindroth von Bahr) traz alguns elementos da primeira história, como um personagem ambicioso confiando nas pessoas erradas, só que embora aos poucos se torne uma trama angustiante, ela flerta o tempo inteiro com um tom mais cômico, auxiliado principalmente pelo uso dos ratinhos para contar a história em tom bastante metafórico. Se na primeira história o uso de figuras humanas deixava o surrealismo ganhar corpo aos poucos, nesta segunda trama o tom é de fábula - o que não evita que o simpático protagonista caminhe aos poucos para ruína de forma desamparada e um tanto atrapalhada. O desfecho, consegue ser ainda mais impactante que o da primeira história e deixa claro que estamos diante de um filme que gosta de enxergar fora da caixinha na condução de seus enredos, o que pode provocar grande estranhamento na plateia que ainda confunde animação como "filme para criança" e não como uma forma de diretores explorarem histórias sem as restrições do live action.  A qualidade técnica fica ainda mais visível em cada detalhe nesta segunda história, seja na estrutura da casa ou dos inúmeros roedores que compõem a trama. Na terceira história saem de cena os ratos e entram simpáticos gatinhos morando no casarão, que agora, em um futuro não identificado, tenta manter-se de pé diante de um mundo debaixo d'água. Agora a dona da casa, chamada Rosa, tenta reformar o casarão decadente enquanto hospeda outros felinos que lhe fazem companhia enquanto atrasam o aluguel. Depois de duas tramas marcadamente pessimistas, esta terceira e última tenta ser diferente e capricha no delinear dos personagens, que apesar dos problemas de um mundo em naufrágio, tentam manter uma visão positiva diante do que os rodeia. No entanto, o contraste deste tom fica por conta de Rosa (voz de Susan Wokoma) que fica desesperada com o rumo dos acontecimentos inevitáveis em torno de sua propriedade. Quando a plateia espera mais um desfecho tristonho, a diretora Paloma Baeza opta pelo viés da poesia e rende um belo momento de partir em busca de novos caminhos. Original em seus simbolismos e metáforas, The House é uma beleza de assistir e sentir, provando que entre a fofura e o estranhamento existe muito mais do que podemos imaginar.  

Três: navegar é preciso. 
The House (EUA - Reino Unido /2022) de Emma De Swaef, Marc James Roels, Niki Lindroth von Bahr e Paloma Baeza. Com vozes de Mia Goth, Matthew Goode, Jarvis Cocker, Susan Wokoma, Helena Bonhan Carter, Paul Kaye, Will Sharpe, Miranda Richardson e David Holt. ☻☻

domingo, 16 de janeiro de 2022

4EVER: Françoise Forton

08 de julho de 1957  ✰ 16 de janeiro de 2022

Nascida no Rio de Janeiro, filha de um francês e uma brasileira, Françoise iniciou a carreira de atriz em uma participação especial na novela A Última Valsa (1969) aos doze anos de idade. Alguns anos depois, participou da primeira versão de A Grande Família interpretando a namorada do Tuco no ano de 1973, mas ganhou fama nacional quando fez a personagem rebelde de Fogo Sobre a Terra (1974). Discreta sobre sua vida pessoa, a atriz participou de várias  novelas importantes ao longo da carreira, entre elas foi a miss de Estúpido Cupido (1976), a mulher traída em Tieta (1989), a vilã de Explode Coração (1995),  a emergente Meg em Por Amor (1997) e atualmente pode ser vista na reprise da novela O Clone (2001) como a cientista Simone. Ao longo da carreira, a atriz também realizou várias peças de teatro e nove filmes, entre eles Jardim de Alah (1988), Manobra Radical (1991) e Coração de Cowboy (2018). A atriz faleceu em decorrência de um câncer de colo de útero. 

#FDS Rumo ao Oscar: King Richard

Richard (Will Smith) e sua família: métodos controversos. 

Tão logo começaram as apostas para o Oscar 2022, eu afirmei que sentia um cheirinho de Oscar para Will Smith na próxima cerimonia. Afinal, o ator é um dos mais populares de Hollywood, já rendeu muito dinheiro para os estúdios e, caso seja indicado, este será seu terceiro reconhecimento junto à Academia, mas que até agora nunca lhe rendeu uma estatueta. Faz um tempinho que o astro já percebeu que figuras reais são o seu ponto forte quando se trata de cair no radar da Academia e ao produzir este filme sobre a importância do pai, Richard Williams, na carreira das tenistas Venus e Serena Williams, o ator acertou em cheio. A ideia do patriarca torná-las mais do que atletas, mas verdadeiras estrelas do esporte ocorreu quando ele assistia o French Open no final dos anos 1970 e traçou um plano detalhado para que duas de suas meninas se tornassem verdadeiras potências do tênis. O mais interessante é que as pessoas que esperam um paizão convencional e amoroso irá se surpreender com a pessoa que irá encontrar por trás do sucesso da dupla. Sim, Richard é amoroso, mas adepto de métodos pouco convencionais para que suas filhas aprendam valores que lhe são caros, ao ponto de deixá-las em uma loja e ir embora sem maiores explicações ou fazê-las ver filmes até que respondam perguntas sobre ele da forma que ele deseja. Se existe carinho e obstinação nesta história existe, também, um pouco de tirania na forma como lida não apenas com a família, mas também com a carreira das filhas (pelo menos no início como o filme apresenta), afinal, a forma como ele lida com os treinadores das filhas é contra a exploração que elas possam vir a sofrer, mas também tem doses consideráveis rabugice. No entanto, Will Smith consegue conciliar estas camadas quase antagônicas de seu personagem o tornando bastante coerente, especialmente quando relata fatos do seu passado que foram marcantes na construção de sua personalidade. Sorte das filhas que contam com uma mãe do porte de Brandy Williams (Aunjanue Ellis) para, de vez em quando, chamar Richard de volta à realidade e fazê-lo ver os sentimentos de quem está ao seu redor. Só pela história, além das performances de Smith e Ellis (ambos cotados para os prêmios da temporada), o filme já merecia atenção, mas conta ainda com as talentosas Saniyya Sidney e Demi Singleton na pele (respectivamente) de Venus e Serena adolescentes e (mais do que) convincentes quando treinam e pisam nas quadras. Embora o diretor Reinaldo Marcus Green pudesse ter optado por uma narrativa mais enxuta (manter o ritmo por quase duas horas e meia é uma tarefa difícil), ele consegue contornar este problema com o bom trabalho junto ao elenco (que ainda conta com Tony Goldwyn e Joe Bernthal como os treinadores das meninas) e oscilações entre as tensões que a família vivencia, seja pela realidade violenta do bairro, as primeiras experiências como esportistas ou nas pendengas familiares mesmo. Particularmente acho o desfecho do filme muito sem graça, o que acaba diminuindo a voltagem do longa até que subam os créditos ao som da canção tema de Beyoncé e arquivos da carreira das tenistas. Seja como for, ao viver um personagem tão cheio de camadas (e com muitas outras que acabaram ficando de fora do texto final do roteirista Zach Bailyn - como os filhos fora do casamento), Will Smith tem sua grande chance de levar para casa seu primeiro Oscar no dia 27 de março. Depois de uma temporada nos cinemas brasileiros, o filme está disponível no HBOMax.

King Richard: Criando Campeãs (King Richard/EUA-2021) de Reinaldo Marcus Green com Will Smith, Saniyya Sidney, Demi Singleton, Aunjanue Ellis, Joe Bernthal e Tony Goldwyn. 

sábado, 15 de janeiro de 2022

#FDS Rumo ao Oscar: No Ritmo do Coração

 
A Família Rossi: diversão para toda a família. 

Exibido em Festivais no início do ano passado e lançado nos cinemas em agosto, o americano CODA é o  tipo de filme discreto de pequeno porte que aos poucos ganha fãs fervorosos que (chegada a temporada de prêmios alguns meses depois) seguem na torcida para que o filme tenha seu valor reconhecido. Lembro que quando o filme chegou aos cinemas muita gente apontou que era uma refilmagem do filme francês A Família Bélier (2014), mas na verdade trata-se de uma versão, já que faz alterações relevantes na história ao levá-la para os Estados Unidos. Torna-se assim um novo filme e não apenas aquela versão sem alma feita para os sobrinhos do Tio Sam que não curtem legendas. O longa conta a história de Ruby (Emilia Jones), uma adolescente filha de surdos que gosta de música e ajuda seu pai (Troy Kotsur) e o irmão (Daniel Durant) no trabalho no barco de pesca. Aparentemente está tudo bem com a rotina de Ruby, já que ela possui plena consciência de sua importância em servir de intérprete para sua família no contato com um mundo dominado pela sonoridade que lhes escapa. A situação começa a mudar quando Ruby se inscreve nas aulas de música e o professor (Eugenio Derbez) percebe que a garota tem voz e talento para investir numa formação em música. No entanto, a constante dificuldade financeira de sua família a faz ponderar entre o que ela deseja e o que ela precisa fazer por eles. É preciso destacar que Ruby teve um caminho complicado quando chegou na escola, já que sua forma de se comunicar era semelhante à de sua família e gerou muitos comentários maldosos entre seus colegas de classe e, por outro lado, o filme provoca identificação da plateia ao abordar aquele período decisivo da adolescência às portas da vida adulta em que é preciso fazer escolhas sobre o seu futuro. O filme  ganha pontos ao retratar a rotina de uma casa de surdos e sua relação com o som, a linguagem de sinais usada de forma errada por leigos e outros detalhes... mas  o diretor e roteirista Sian Heder faz um filme fácil de assistir, leve e redondinho com personagens carismáticos e um tom de filme familiar que quase não se vê mais. Com fotografia outonal e trilha sonora agradável, o filme foge de parecer denso ou panfletário. No Ritmo do Coração é um filme que tem como maior ousadia a  sua capacidade de inclusão ao ter um elenco principal majoritariamente de surdos e se ele traz de volta a oscarizada Marlee Matlin (Oscar de melhor atriz por Os Filhos do Silêncio/1986) para os holofotes, apresenta também ao grande público o talento de Troy Kotsur (cotado na categoria de ator coadjuvante da temporada) que tem os melhores momentos ao lado de Emilia Jones. Feito para emocionar (e cair muito bem em uma futura Sessão da Tarde), No Ritmo do Coração assume o posto de produção independente querida da temporada e pode surpreender ao aparecer em mais categorias do Oscar do que qualquer envolvido teria imaginado. Os fãs agradecem. 

No Ritmo do Coração (CODA/EUA-2021) de Sian Heder com Emilia Jones, Marlee Matlin, Troy Kotsur, Daniel Durant, Eugenio Derbez e Ferdia Walsh Peelo. 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

#FDS Rumo ao Oscar: Bar Doce Lar

 
Ben e Tye: a melhor relação do filme. 

Começando o ano em meio à ressaca de janeiro, o que mais se fala sobre cinema são as apostas para o Oscar que se aproxima (os indicados serão divulgados dia 08 de fevereiro) e vários filmes que disputam uma vaga na disputa da estatueta dourada já estão disponíveis em serviços de streaming no Brasil. Neste #FimDeSemana irei comentar três longas que já aparecem nas primeiras premiações do ano e que devem cair nas graças da Academia em breve. O primeiro deles é o novo filme dirigido por George Clooney, que após sua parceira com a Netflix em O Céu da Meia-Noite (2020) agora aparece no Prime Video com The Tender Bar, filme que apesar da expectativa ganhou pouco mais do que a simpatia da crítica com sua adaptação do livro com traços biográficos de J.R. Moehringer. O filme começa com o menino J.R. (Daniel Ranieri) ao lado da mãe (Lily Rabe) morando com os avós e o tio (Ben Affleck). Para JR o pai não é mais do que uma voz que ele escuta no rádio (e uma promessa de proximidade que nunca se concretiza). Se a vida do menino poderia ser pura melancolia, ele tem uma família afetuosa que serve para alegrar seus dias, com destaque para um tio que cumpre muito bem as vezes de figura paterna em seu cotidiano. Tio Charlie administra o bar que dá título ao filme, que sob o nome de Dickens abriga mais do que bebidas, mas livros variados (que sempre são indicados para a leitura do sobrinho). A relação entre Charlie e J.R. é a mais calorosa do filme e constrói uma energia irresistível sempre que surge. Por seu trabalho como tio Charlie, Ben Affleck  aparece em vários prêmios do ano na disputa de ator coadjuvante e se ficar de fora no Oscar será de fato uma injustiça, já que aqui o ator apresenta seu trabalho mais leve e afetivo. Vale lembrar que Affleck tem um Oscar na estante pelo roteiro de Gênio Indomável (1997) e outra como produtor de Argo (2012), seu Oscar de Melhor File que não lhe rendeu indicação ao Oscar de direção (ou de ator). Affleck nunca foi indicado ao prêmio por uma interpretação (e até seu irmão Casey tem uma estatueta em casa). Ben constrói aqui seu personagem mais de carne e osso, não vive momentos heróicos ou de grandes estripulias, mas consegue compor uma figura imponente que torna palpável a influência que possui sobre o sobrinho (que ao crescer sonha em ser escritor (e passa a ser interpretado por Tye Sheridan, bom ator mas que não tem nenhuma semelhança com o menino que o interpretava na infância). Quando JR chega na adolescência ele vai para a faculdade, arranja um emprego, começa a beber e começa a ter suas primeiras experiências amorosas. Infelizmente conforme o garoto cresce o filme fica menos interessante e o roteiro tem uma dificuldade vergonhosa em encontrar uma linha narrativa para seguir até o desfecho e opta por se agarrar a mais fraca das linhas que tinha à disposição: o romance de JR com Sidney (Brianna Middleton). A relação entre os dois nasce moderninha mas aos poucos demonstra ser tão sem sal que ninguém de fato se importa com o que acontecerá ali (mas o roteiro teima em fingir que aquele é o aspecto mais interessante sobre o crescimento do personagem). Isso faz com que Bar Doce Lar entre no piloto automático e se arraste rumo ao desfecho. Aqui faz muita falta o diretor George Clooney com a empolgação de seus primeiros filmes (Confissões de Uma Mente Perigosa/2002 e Boa Noite e Boa Sorte/2005), o que começa como uma produção charmosa e simpática se torna cada vez mais desanimada, tendo uma fagulha de alguma coisa só quando JR se depara com quem seu pai é na realidade. No fim das contas, fica na lembrança o que o filme poderia ter sido e abandonou no meio do caminho em troca de um romance boboca. 

Bar Doce Lar (The Tender Bar /EUA - 2021) de George Clooney com Tye Sheridan, Lily Rabe, Ben Affleck, Christopher Lloyd, Daniel Ranieri, Briana Middleton, Sondra James e Ron Livingston. 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

4EVER: Sidney Poitier

20 de fevereiro de 1927✰ 06 de janeiro de 2022

Sidney Poitier nasceu prematuramente em um veleiro a caminho de Miami. Seus pais eram agricultores da cidade de Cat Islands nas Bahamas e viajavam para vender sua produção. Filho caçula de uma família de sete irmãos e descendente de haitianos, Poitier cresceu nas Bahamas e aos quinze anos foi morar com irmão mais velho em Miami. Sentindo a discriminação na nova cidade decidiu que iria para Nova York. Sidney mentiu a idade para alistar-se no exército durante a Segunda Guerra Mundial e ao deixar o exército resolveu seguir carreira no teatro, mas após várias rejeições conseguiu entrar no elenco de uma peça da Broadway. Seu primeiro trabalho de destaque no cinema no cinema foi como o médico de O Ódio é Cego. Desde então fez um filme após o outro. Em 1958 recebeu sua primeira indicação ao Oscar de ator por Acorrentados e em 1964 se tornou o primeiro ator negro a receber um Oscar da categoria (o seguinte só seria Denzel Washington por Dia de Treinamento em 2002). Astro de clássicos como Ao Mestre com Carinho (1966), No Calor da Noite (1967) e Adivinhe quem Vem Para Jantar (1968), Sidney não atuava desde 2001 após alguns trabalhos para a televisão. Trabalhando ainda como diretor e produtor, Sidney recebeu um Oscar honorário em 2002 por seus serviços prestados ao cinema. Mais do que um astro do cinema, Sidney Poitier se tornou um verdadeiro símbolo do cinema de Hollywood.