Rosamund e Ben: o casamento segundo o surrealismo Fincheriano.
Podem dizer o que quiser, o fato é que Garota Exemplar é um filme surreal. Acredito que quem acreditar que a proposta do filme é ser realista irá achar apenas defeitos no filme, seja pelos seus momentos mais absurdos ou mirabolantes. O fato é que o novo filme de David Fincher funciona melhor quando percebemos como o diretor abraça tudo que a trama pode ter de mais absurdo, ampliando as percepções da plateia em tudo que a trama do livro de Gillian Flynn (que também assina o roteiro) possui de superlativo quanto à vida no casamento, a influência da mídia e o poder do discurso sobre a mente do espectador. O filme retrata as investigações acerca do desaparecimento de Amy Dunne (Rosamund Pike, já cotada para o Oscar), a escritora de poucos livros, rica, filha de escritores que criaram a cultuada série de livros infantis "Amy Exemplar". Amy conhece Nick Dunne (Ben Affleck), igualmente escritor, mas que teve de se contentar em dar aulas sobre redação criativa na cidade onde vive - mas ele gosta mesmo de frequentar o The Bar, um bar (oras!) em que administra junto com a irmã Margo (Carrie Coon). É no The Bar que Nick vai na fatídica manhã em que sua esposa desaparece. Quando ele retorna para casa existe sinais de que algo de ruim aconteceu e ele chama a polícia imediatamente. Encarregados do caso, a detetive Rhonda Boney (Kim Dickens, ótima) e o oficial Jim Gilpin (Patrick Fugit) encontram alguns vestígios de que houve uma luta naquela casa e que Amy pode ter sido tão sequestrada quanto assassinada. Contar mais do que isso estragaria muito do meticuloso quebra-cabeça que Fincher oferece para a plateia. Resta revelar que acompanhamos a trajetória desastrosa de Nick em lidar com a mídia, que passa a crucificá-lo e apontá-lo como assassino da esposa, ao mesmo tempo que acompanhamos as anotações realizadas por Amy em seu diário. Durante boa parte da sessão, Amy e Nick disputam nossa credibilidade, ela sempre perfeita e ele mostrando-se cada vez mais falho. Fincher utiliza um ponto de partida simples para demonstrar como estamos vulneráveis às informações chegam até nós, exibindo as entranhas do mecanismo de produzir vilões, culpados e vítimas sem ressaltar o quanto a realidade é mais complexa e cheia de camadas de desejos e sentimentos de pessoas que lidam com papeis sociais e impressões constantemente. No entanto, perceber Garota Exemplar como uma alegoria sobre o papel da mídia seria simplificar as outras nuances que oferece ao público. Seja Amy presa à sua perfeição ou Nick aos seus defeitos, ambos se tornam vítimas dos estereótipos que aceitaram vestir, embora lidem com isso de forma distintas. Neste ponto, o casamento torna-se um verdadeiro campo de batalha quando as máscaras (que usaram um para seduzir o outro) começam a cair. Nesse ponto, o desfecho (que pode decepcionar a grande maioria que assiste ao filme como um suspense trivial) funciona como um espelho do casamento que tornou-se um refúgio seguro para o jogo de aparências, para a imagem de sucesso, da família perfeita, bela e feliz. David Fincher trata a história com sua habilidade habitual em colocar surpresas pelo caminho com grande naturalidade e, mesmo quando tudo é mirabolante demais e o humor surge inevitável, o filme mantem seu tom sereno. Para cumprir essa tarefa mais complicada do que parece, o diretor escolheu um elenco preciso para viver os signos de sua história (basta lembrar que não importa o quanto Ben Affleck se esforce ele nunca convence os fãs de Batman!). Garota Exemplar, com seus traços que beiram o terror, é na verdade um romance às avessas que mistura Atração Fatal (1987) com O Reverso da Fortuna (1990) de uma forma tão engenhosa como as distorções da trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross.
Garota Exemplar (Gone Girl/EUA-2014) de David Fincher com Ben Affleck, Rosamund Pike, Kim Dickens, Carrie Coon, Patrick Fugit, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Missi Pyle e Sela Ward. ☻☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário