Deadwyler: atuação marcante em ótima estreia de Malcolm Washington. |
Em 1936, durante a Grande Depressão econômica dos Estados Unidos, a família Charles vive em Pittsburgh na companhia de um piano carregado de histórias da família. O instrumento está na família por conta de ter sua madeira talhada por um ancestral que marcou ali uma homenagem aos parentes que foram separados durante o período da escravidão. No entanto, os dois irmãos que herdaram o piano vivem um conflito por conta dele. Boy Willie (John David Washington) está de passagem na cidade para vender melancias ao lado do sócio, Lymon (Ray Fisher) e resolve passar um tempo na casa do tio Doaker (Samuel L. Jackson), durante este tempo, ele também vai tentar convencer a irmã, Berniece (Danielle Deadwyler) a vender o piano. Se a irmã não gosta da presença do irmão na casa, a coisa só piora pelo fato dela não ter a mínima intenção de vender o instrumento. Não é difícil perceber que além de toda ancestralidade que emana do piano, a própria Berniece tem sua cota de memórias ao som daquelas teclas. Começa então um impasse entre os dois carregado ainda por um toque sobrenatural, já que a casa passou a ser assombrada pelo espírito do herdeiro da propriedade na qual os antepassados dos Charles foram escravizados. Há quem acredite que ele morreu em um acidente (caiu em um poço). Há quem acredite que ele sempre quis o piano de volta. Há quem acredite que ele está naquela casa por conta de quem o empurrou para dentro do poço. Como se percebe, Piano de Família é uma trama cheia de fios a serem trabalhados, especialmente pelo emaranhado de histórias daquela família. Cada um sabe um detalhe que torna a trama ainda mais rica e emocional. Portanto, Malcolm Washington (filho do Denzel e irmão de John David) merece aplausos por iniciar sua carreira como cineasta com um desafio desses nas mãos, afinal, muitos consideram que esta é a obra-prima de August Wilson. A peça ganhou o Pulitzer em 1990 (assim como Fences recebeu em 1987) e várias montagens aclamadas, portanto havia uma pressão enorme sobre o rapaz. O melhor de tudo é que ele se sai muito bem! Obras recentes do autor que foram adaptadas para o cinema pecavam pelo tom teatral (tanto Fences que virou Um Limite Entre Nós quanto A Voz Suprema do Blues), Piano de Família tem lá os momentos em que a teatralidade está presente (poucos, mas tem), mas que não comprometem um filme de duas horas de duração. Malcolm é muito esperto ao saber aqueles momentos do texto original que geram cenas externas à casa dos Charles, da mesma forma consegue criar várias cenas em que muitos personagens na mesma cena tornam a narrativa mais dinâmica. Além disso, o rapaz filma com uma paixão visível pelo material que tem em mãos. Particularmente achei a história daquela família muito tocante, especialmente pelos dois irmãos se verem em momentos de suas vidas em que precisam seguir em frente ainda que paire sobre eles os fantasmas passados. Neste ponto, se John David Washington segue em sua saga de honrar o nome da lenda que se tornou seu pai, Danielle Deadwyller tem algumas cenas espetaculares (e em duas delas, ela me fez chorar, não vale dizer quais, mas uma delas é aquela em que ela finalmente toca piano...). A atriz deve ser indicada ao Oscar de coadjuvante (especialmente porque o Oscar a ignorou quando era uma das favoritas a serem indicadas por seu trabalho em Till/2022). Outro que também gostei muito em cena foi Ray Fisher (o Cyborg de Liga da Justiça/2017), que amplia um papel discreto com uma presença cênica marcante e gera até torcida na plateia. Misturando um drama familiar histórico emocionante com um verniz sobrenatural, Piano de Família me surpreendeu pela sensibilidade com que conta uma história que cairia facilmente no melodrama. Se existe uma reclamação sobre o filme é a fotografia que deixa quase tudo no mesmo tom (cenários, figurino, iluminação...), mas um deslize pequeno diante do acerto que é esta adaptação que acaba de estrear na Netflix.
Piano de Família (The Piano Lesson / EUA -2024) de Malcolm Washington com John David Washington, Danielle Deadwyler, Samuel L. Jackson, Ray Fisher, Michael Potts, Corey Hawkins, Eryka Badu e Skylar Aleece Smith. ☻☻☻☻
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