Bruno (o cão), Champion e Souza: só vendo, só vendo...
Eu ainda estava na faculdade quando uma amiga comentou ter assistido à animação francesa As Bicicletas de Belleville de Sylvain Chomet. Ela comentava com um deslumbramento que mais parecia uma espécie de transe e vivia repetindo que não sabia nem falar sobre o filme, dizia: "só vendo, só vendo". Eu acabei não vendo o filme nos cinemas e a outra referência que eu tinha era sua indicação ao Oscar de animação e ao prêmio de canção (pela chiclete Belleville Rendez-vous, que rendeu um dos números mais animados da história da premiação). Eu acabei vendo o longa há alguns anos quando achei o DVD numa daquelas bancas promocionais de loja de departamento e entendi totalmente o que minha amiga queria dizer. Só vendo. Mas vou tentar escrever sobre ele. Pra começar, Chomet confia tanto em sua capacidade de contar uma história com seu traço originalíssimo que dispensa diálogos pela maior parte da sessão, tudo se concentra bastante na força das imagens que deseja nos mostrar e sua conjugação perfeita com a trilha sonora, talvez por privilegiar tanto as sensações que suas imagens incomuns nos provocam, muitos consideram a trama de Belleville surreal. O traço lembra muito os livros infantis mais antigos - e as cores só ressaltam o aspecto envelhecido em sua paleta de tons predominantemente marrons. A trama conta a história de Champion, um garotinho que é cuidado pela sua avó, uma portuguesa chamada Madame Souza. Com o objetivo de alegrar o neto, ela lhe compra um cachorro, mas logo o animalzinho é esquecido pelo menino. Souza então percebe o interesse do menino por bicicletas e lhe compra um triciclo. Nessa parte o diretor evoca diretamente o clima da década de 1930 (embalado pelo sucesso de três irmãs cantoras de cabaret desses anos), mas tudo que era luminoso se torna sombrio quando a narrativa avança vários anos e apresenta uma cidade que cresceu sem planejamento, perdendo luminosidade e recebendo um aspecto bagunçado e até sombrio. Descobrimos que Souza treinou seu neto para ser um grande ciclista para participar da famosa competição Tour de France (e o traço inesperado de Chomet reserva um corpo esguio para Champion em contraste com as pernas grossas que se espera de alguém que treinou a vida inteira numa bicicleta), o problema é que ao participar da prova (com a ajuda de sua avó que fica apitando atrás dele como uma severa treinadora) o rapaz acaba desaparecendo, sendo sequestrado por misteriosos personagens vestidos de preto. Madame Silva então parte na missão de encontrar o neto ao lado do seu fiel cão de guarda. O diretor poderia investir no tom de aventura, mas prefere se dedicar a explorar as esquisitices que a esperta Madame Souza encontra pelo caminho numa cidade grande. Neste ponto o melhor momento é quando torna-se hóspede das famosas cantoras de Belleville - não vou nem contar como e o que elas pescam para o jantar, mas posso dizer que estranhamos como Souza não pode ler jornais, mexer na geladeira vazia ou no aspirador de pó na casa de suas anfitriãs. Enquanto descobrimos o sombrio motivo de Champion ter sumido, nos deparamos com um dos momentos musicais mais bacanas de todos os tempos - quando o trio de cantoras ressignificam objetos como instrumentos musicais, criando uma melodia que serve para a cena mais delirante e lírica de todo o filme (que se passa na mente do cachorro). Com uma cena de perseguição no final que mais parece um episódio do desenho Corrida Maluca, Sylvain Chomet termina seu filme como uma ode nostálgica (e ousada) à França que perpassa toda a trama sobre o amor de uma avó pelo seu neto. Vejo que minha amiga tem razão, o máximo que eu consegui fazer foi descrever um pouco a história, a melhor mesmo é captar toda a atmosfera do filme quando nos rendemos às esquisitices de Chomet (com referência à obra de Salvador Dalí) numa viagem para um universo estranho, que na verdade é uma releitura fabulosa do nosso.
As Bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville/França-Canadá-Bélgica-2003) de Sylvain Chomet com vozes de Michèle Caucheteux, Jean Claude Donda, Michel Robin e Monica Vegas. ☻☻☻☻☻
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