domingo, 30 de julho de 2023

PL►Y: Veja como Eles Correm

Rockwell e Ronan: brincando com trama de mistério. 

Tramas de mistério costumam seguir as mesmas regras que muitas vezes se tornam apenas clichês quando a criatividade do autor não é capaz de surpreender a plateia. Saber manter o mistério até o final é um dos motivos pelos quais Agatha Christie é uma verdadeira rainha do gênero, o que não impossibilita que um engraçadinho faça troça de seus artifícios narrativos. Veja Como Eles Correm é uma brincadeira com as tramas de mistério e consegue ser bastante divertida enquanto faz chacota com uma trama de investigação e assassinatos nos bastidores de uma peça de teatro. O filme gira em torno do sucesso da peça A Ratoeira, baseado na obra de Christie, que se torna um enorme sucesso nos palcos, ao ponto de chamar atenção de um produtor que planeja fazer um filme e faturar muito dinheiro nos cinemas. O diretor escolhido, Leo Kopernick (Adrien Brody) não parece muito fã do gênero e nos conta a história sem muita convicção. Descreve que este tipo de história tem um morto pouco querido, uma série de suspeitos com motivos suficientes para matá-lo, mas que o assassino é um personagem que ninguém imagina, mas com um passado cheio de traumas que motivam seu crime. O que Kopernick não imagina é que o morto da história será ele. Desagradável com quem está ao seu redor, ele termina morto durante uma festa e começa uma investigação. É neste momento que entram em cena o Investigador Stoppard (Sam Rockwell) e a jovem policial Stalker (Saoirse Ronan) que adora tramas de mistério e está disposta a desvendar o crime (e tietar um pouco aquele universo de estrelas que está ao redor de toda a situação). Veja como Eles Correm é o filme de estreia de Tom George, que realizou vários trabalhos na televisão britânica. Ele consegue construir uma narrativa ágil cheia de idas e vindas que revela um verdadeiro quebra-cabeças em torno da morte do narrador. Todos realmente se tornam suspeitos, do roteirista (David Oyelowo) em desavença com o diretor, a produtora teatral (Ruth Wilson), o galã bonitão (Harris Dickinson) e o filme se beneficia pela boa escolha de elenco para manter o mistério até o final e render algumas risadas. Embora o protagonista seja Sam Rockwell, fica difícil disfarçar que é Saoirse Ronan é o grande destaque do filme com a interpretação esperta de um policial com futuro promissor. Quando o ritmo começa a tropeçar é ela que consegue fazer graça e manter o ritmo da narrativa. O filme tem ótima reprodução de época para os anos 1950, com bons cenários e figurinos caprichados. Atenção para o desfecho com participação especial de Agatha Christie vivida por Shirley Henderson. Em outros tempos o filme renderia uma ótima Sessão da Tarde! O filme está em cartaz no Star+

Veja Como Eles Correm (See How They Run / EUA - Reino Unido - 2022) de Tom George com Sam Rockwell, Saoirse Ronan, Adrien Brody, David Oyelowo, Ruth Wilson, Harris Dickinson, Charlie Cooper, Oliver Jackson e Jacob Fortune-Lloyd. ☻☻☻

PL►Y: O Acontecimento

 
Anamaria: uma jornada solitária. 

Ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2021, o drama francês O Acontecimento da diretora Audrey Diwan é baseado no romance homônimo da escritora Annie Earnoux que narra a jornada de uma jovem estudante em busca da interrupção de uma gravidez indesejada. A história se passa em 1963 e deixa bem claro que o aborto era um crime na França, que poderia levar para a prisão a pessoa que realizou o aborto, assim como todas as pessoas ao seu redor ajudaram na situação. Anne (Anamaria Vartolomei) é uma dedicada estudante de letras que sonha em ser escritora, mas fica instigada quando seu ciclo menstrual atrasa. Logo começam as dores de cabeça, o mal estar e ela descobre que está grávida. Diante dos planos que tem para sua vida, imediatamente Anne declara que precisa de ajuda para não ter o bebê. A partir dali, quase todos os personagens que descobrirem a sua situação irá deixar claro os perigos de tentar realizar um  aborto, mas Anne não desiste, se envolvendo em situações desconfortáveis, enganadoras e até fatais. A corajosa Anamaria Vartolomei (que lembra uma jovem Winona Ryder com expressivos olhos azuis) dá conta de sua personagem com louvor, a retratando como uma pessoa comum que precisa lidar com uma situação que mudará sua vida para sempre. Audrey Diwan opta por uma narrativa direta, sem firulas ou medo de gerar imagens desconfortáveis para a plateia. É curioso como em alguns momentos ela parece criar um filme de espionagem (como aquela em que Anne anda pelo parque com a "mulher do jornal") ou de terror (a cena no vaso sanitário), estas iniciativas servem para carregar ainda mais as tintas de tensão em torno das angústias da protagonista que encontra-se cada vez mais solitária em sua jornada. Sobram pessoas para questionar e até tentar se aproveitar da situação em que a personagem atravessa. De amigas, passando pelo pai da criança, um amigo ou até um médico é possível perceber todo o peso que se acumula nos ombros da protagonista. Além disso, pesa a vergonha capaz de fazer com que não conte em momento algum para sua família (destaque para a mãe vivida pela veterana Sandrine Bonnaire). Diwan cria cenas bastante gráficas sobre os procedimentos adotados por Anne que expressam com vigor os horrores do aborto clandestino, que independente do seu posicionamento sobre o tema, faz pensar sobre toda discussão em torno do tema. O filme em cartaz na HBOMax é poderoso em sua narrativa, meu único problema com o filme é que em momento algum ele me convenceu que era ambientado nos anos 1960, sei que a construção de diálogos e posturas semelhantes ao de nosso tempo são propositais para aproximar o público atual dos dramas da personagem, assim como sinalizar que toda aquela situação continua acontecendo nos dias atuais. No entanto, em vários momentos eu tinha que lembrar a mim mesmo que o filme era sobre uma história ambientada em 1963. A prática do aborto foi legalizada na França em 1975. 

O Acontecimento (L'Événement / França - 2021) de Audrey Diwan com Anamaria Vartolomei, Sandrine Bonnaire, Luàna Bajrami, Louise Orry-Diquéro, Kacey Mottet Klein, Louise Chevilotte, Pio Marmaï e Leonor Oberson ☻☻☻☻

PL►Y: O Sonho de Greta

Bethany: quando Wes Anderson encontra David Lynch.

Infelizmente o cinema australiano não chama mais tanta atenção quanto o fazia nos anos 1990, quando produzia verdadeiros hits que rivalizava com os filmes dos Estados Unidos em nossos cinemas. No entanto, de vez em quando, um  filme da terra dos cangurus aparece e nos brinda com alguma nostalgia dos tempos de O Casamento de Muriel (1994) e Priscila a Rainha do Deserto (1994). A história de O Sonho de Greta tem nada relacionado com as duas obras citadas, mas o visual lembra aquele frescor que aqueles filmes traziam, sem medo de soarem estranhos ou cafonas para o grande público. O filme conta a história da adolescente Greta (Bethany Whitmore), que é bastante tímida e introspectiva. Ela tem dificuldades para fazer amizades no colégio e logo chama atenção de um garoto ruivo que parece gostar dela, Elliot (Harrison Feldman). Mas Greta é tão insegura que é mais fácil entender que ela não gosta dele do que possa ter qualquer outro sentimento. Ela também vive sendo cercada pelas trigêmeas populares da escola que causam mais arrepios do que simpatia, mas ela queria mesmo era ser invisível. Até dentro de casa, com  o pai bondoso (Matthew Wittet), a mãe animada (Amber McMahon) e a irmã (Imogen Archer) um pouco mais velha que já passou da fase de tentar agradar todo mundo - e acabou conseguindo um namorado bonitão (Eamon Farren). Se tudo o que a protagonista quer é ficar sossegada no canto do seu quarto, a ideia da mãe fazer uma festa de aniversário de 15 anos lhe causa verdadeiro horror. Imaginar os colegas de escola visitando seu refúgio é um verdadeiro festival de gatilhos sobre tudo o que pode dar errado. O Sonho de Greta é o simpático filme de Rosemary Myers que foi bastante lembrado nas premiações australianas no ano de seu lançamento. Baseado na peça do próprio Mathew Wittet (um dos atores favoritos de Baz Luhrman) o filme pode ser dividido em duas partes, na primeira é sobre a realidade da protagonista com todos os seus medos e temores típicos da insegurança adolescente. Nesta primeira parte, a diretora investe num tratamento visual que lembra bastante as comédias de Wes Anderson. A influência do diretor hollywoodiano aparece bastante na direção de arte que cria uma moldura de início dos anos 1980 com marcas da década anterior, assim como na composição de cenas que flerta com a simetria conferindo um tom graciosamente artificial à apresentação dos personagens. Curiosamente tudo mudo de configuração quando tem início a segunda parte em que somos apresentados ao sonho de Greta. Ali todos são transformados em outros personagens bastante simbólicos das fantasias  da personagem, o que faz tudo parecer uma brincadeira com o cinema de David Lynch. De figuras imaginárias e outras que inserem camadas sobre a sexualidade de Greta em sua passagem para a vida adulta, o filme traz um bem-vindo estranhamento ao que antes era tido como fofo, contido e ingênuo numa alusão de despedida da infância. Num elenco esforçado e correto, o destaque vai mesmo para Wittet que encarna dois personagens bastante distintos no decorrer da história e me deixou curioso de vê-lo em outras obras. O filme está atualmente em cartaz na MUBI e merece uma visita. 

O Sonho de Greta (Girl Asleep / Australia - 2015) de Rosemary Myers com Bethany Whitmore, Amber McMahon, Matthew Wittet, Harrison Feldman, Eamon Farren e Imogen Archer. ☻☻☻ 

sábado, 29 de julho de 2023

PL►Y: Medéia

 
Medéia e seus filhos: um clássico nas mãos de Lars von Trier. 

Feito para televisão dinamarquesa em 1988, Medéia é o terceiro longa-metragem de Lars von Trier. Depois de dividir opiniões com seus projetos para o cinema (Elemento de um Crime/1984 e Epidemia/1987) e não alcançar boas bilheterias, Trier resolveu fazer uma adaptação da clássica tragédia de Eurípedes baseado no texto de Carl Theodor Dreyer. Aqui existem algumas mudanças na clássica trama da mulher desesperada ao ser abandonada pelo marido com seus dois filhos. Acho que muita gente já sabe como essa história termina, mas não vou contar o desfecho da trama, apenas dizer que mesmo que o final da obra seja uma das mais conhecidas da História, Trier ainda consegue nos surpreender ao expor toda a dor daquela situação. Medeia (ótima atuação de Kirsten Olesen) tem dois filhos em seu casamento com Jazão (Udo Kier num papel bem diferente do que acostumamos vê-lo). Eis que após as vitórias em uma batalha, ele recebe a mão da princesa (Solbjørg Højfeldt), filha do Rei Creonte (Henning Jensen) em casamento. Medéia nao aceita a decisão do esposo de abandoná-la com os meninos, mas aos poucos começa a tecer sua vingança contra o ex-esposo, para que este perca tudo. No entanto, para que a espiral de acontecimentos se concretize, a própria Medeia irá realizar o maior sacrifício de sua vida. Diante do destino dos personagens que se traça lentamente, Lars von Trier esbanja distanciamento, numa narrativa que pode ser vista como fria por alguns, mas tanta contenção acaba ampliando toda a dor da mulher que se desfaz diante da arquitetura de seu plano. Particularmente adoro a concepção que apresenta Medéia como um ser quase mítico, com a cabeleira negra censurada por um tecido, com as vestes escuras lhe cobrindo a pele quase que por completo e o semblante sempre dolorido pelas armadilhas que lhe foram reservadas. Sua figura encaixa com perfeição nos cenários valorizados pela tonalidade sépia da fotografia. Existe muita terra, muita água, pântanos, galhos secos e campos amarelados, criando ambientações externas para uma encenação de marcações quase teatrais. Trier costuma ser acusado de ser misógino pela forma como trata suas personagens femininas. Ele mesmo já disse em entrevistas que conta histórias sobre mulheres sofrendo por "ninguém se importar com homens sofrendo". Não sei muito bem o que ele quis dizer com isso, mas o fato é que em Medéia ele constrói uma personagem feminina que não se quebra diante dos arranjos dos homens que a cerca e, por isso mesmo torna-se tão assustadora aos outros personagens. Obviamente que a cena do derradeiro sacrifício da inocência é de partir o coração, mas fiquei surpreso pelo tom impresso, que a torna ainda mais emocional e dolorosa para a clássica personagem.  Embora não tenha sido aclamado em sua época de lançamento, Medéia pode ser reconhecido hoje como o primeiro grande filme do diretor dinamarquês. Mais interessante ainda é perceber os momentos desta produção que ecoaram em outros filmes do cineasta (mas não vou citar quais para não estragar a surpresa). 

Medéia (Medea / Dinamarca - 1988) de Lars Von Trier com Kirsten Olesen, Udo Kier, Henning Jensen, Solbjørg Højfeldt, Ludmilla Glinska e Baard Owe. ☻☻☻☻

PL►Y: Babilônia

Margot: sabor de fim de festa. 

Com La La Land (2016) o cineasta Damien Chazelle se tornou a pessoa mais jovem a receber o Oscar de melhor direção. Ali ele declara um pouco do seu amor pela cidade de Los Angeles ancorado na história de amor de um atriz e um pianista que tentavam a sorte nos arredores de Hollywood. O filme era todo colorido e adocicado fazendo com que as premiações caíssem de amores por ele. Era um passo um tanto surpreendente para quem havia estreado com o raivoso Whiplash (2014), que também havia caído nas graças do Oscar. Em nome da não obviedade o diretor fez algo ainda mais inusitado para quem acompanhava sua carreira, fez O Primeiro Homem (2018) sobre o primeiro astronauta a ir para o espaço. O filme foi considerado frio e sem graça por muita gente. Ele então resolve revisitar personagens que tentam a sorte na capital do cinema, só que desta vez vira tudo do avesso. Babilônia é o quarto filme de Chazelle e era um dos títulos mais aguardados para o Oscar desse ano, mas acabou indicado somente aos prêmios de figurino, trilha sonora e direção de arte - o que no fim das contas é o que realmente pode ser visto como unanimidade perante a trama que se expande por três horas de duração.  Muitos alardearam que a visão do diretor para a transição do cinema mudo para o falado como algo caótico. Mas acho que isso não incomoda o diretor, já que considero que esta sensação era justamente o que o diretor queria. O problema é que no meio de tudo isso o que poderia ser uma comédia ácida se torna um novo subgênero: a comédia azeda. Não como um abacaxi ou um limão, mas como uma laranja que passou do ponto. Dizem que para construir o roteiro, Chazelle pesquisou muito material sobre o cinema dos anos 1920 que são considerados os mais loucos de Hollywood. Afinal, a indústria cinematográfica estava em seus primórdios e atraía todo tipo de gente para lá, geralmente pessoas cheias de sonhos e histórias de vida complicadas. Embora o elenco seja cheio de rostos conhecidos, a trama gira mais em torno daquele período do que das histórias de cada personagem, de forma que eles terminam carecendo de um pouco mais de desenvolvimento. A sorte é que o diretor conta com Margot Robbie (indicada ao Critic's Choice e Globo de Ouro pelo papel) para dar vida a Nelle LaRoy, uma aspirante à atriz que consegue alguma fama ao final da era do cinema mudo, mas que logo encontra dificuldade na transição para o cinema falado. O mesmo acontece com o astro Jack Conrad (Brad Pitt também indicado ao Critic's Choice e Globo de Ouro) que sabe ter chegado no auge e o fato que agora resta apenas descer. Outros personagens que merecem destaque são Manny Torres (Diego Calva), um faz tudo do estúdio que cobiça um lugar de respeito e Sidney Palmer (Jovan Adepo) que tem a cor da pele como um obstáculo ainda maior para ganhar respeito em uma indústria majoritariamente branca. Existem ainda mais dezenas de personagens que por vezes falam ao mesmo tempo (o que por vezes me fez lembrar alguns filmes de Robert Altman) e curtem festas, muitas festas. O mais interessante do filme é a reconstrução dos bastidores do cinema mudo em sua transição para o cinema falado, criando uma mudança na sonoridade do próprio filme, que é muito mais barulhento quando se está no cinema mudo (afinal, não havia captação de som). Chazelle constrói sua narrativa oscilando entre o glamouroso e o grotesco, mas não demonstra o amparo de um roteiro sólido para dar conta de tudo que aponta. O filme tropeça aqui e ali, perde o foco, mata um personagem, emociona em alguns momentos, aborrece em outros, se estica demais, mata mais alguns personagens e resulta um tanto desengonçado diante da história que quer contar. Não é o desastre que muita gente apontou, mas também não é a obra-prima que o diretor almejava. É um filme caro, exuberante e azedo - não como o destino de alguns de seus personagens, para estes o desfecho é amargo mesmo. 

Babilônia (Babylon/EUA-2022) de Damien Chazelle com Margot Robbie, Brad Pitt, Diego Calva, Jovan Adeppo, Jean Smart, Flea, Olivia Wilde, Lukas Haas, Eric Roberts, Max Minghella e Katherine Waterston. ☻☻☻

MOMENTO ROB GORDON: As Barbies de Margot Robbie

Margot Elise Robbie nasceu na cidade de Dalby na Austrália em 02 de junho de 1990. Ela começou  atuar profissionalmente aos 17 anos e começou a chamar atenção do público em seu trabalho na telenovela Neighbours (2008-2010). Com o sucesso em sua terra natal partiu para Hollywood, conseguindo um papel na série Pan Am (2011-2012). A série não fez muito sucesso, mas no ano seguinte fez uma pequena participação no filme Questão de Tempo e, posteriormente, recebeu destaque em O Lobo de Wall Street. Desde então, Margot foi indicada duas vezes ao Oscar, quatro vezes ao Globo de Ouro e cinco vezes ao BAFTA. Considerada uma das cem artistas mais influentes no mundo pela revista TIME, Margot está no auge com o sucesso de Barbie, tanto que vale a pena lembrar outras Barbies que já encarnou em sua carreira.

#05 Barbie Esquecida
Margot Robbie não deve ter boas lembranças de 2022. A estrela estava no elenco de dois filmes de diretores renomados que se tornaram duas das produções mais aguardadas do ano. Porém, nenhum dos dois vingou nas bilheterias. Se Babilônia ainda lhe rendeu uma indicação ao Critic's Choice e ao Globo de Ouro, Amsterdam nem passou perto disso. O filme foi um fiasco de bilheteria como todos os outros em que a atriz aparece de cabelos escuros (o cabelo da diva é realmente castanho). 

#04 Barbie Rainha
Embora Duas Rainhas (2018) não tenha feito o sucesso esperado, Margot Robbie se tornou uma unanimidade na pele da Rainha Elizabeth I. Ela acabou roubando a cena da verdadeira protagonista da história, a prima escocesa Mary Stuart (Saoirse Ronan) que tentava tira-la do trono. Pela performance ela foi indicada ao prêmio de coadjuvante no SAG Awards e no BAFTA. Simplesmente uma rainha!

#03 Barbie Hollywoodiana
Todo mundo queria saber quem era aquela jovem atriz desconhecida que despontava como a esposa de Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street. Martin Scorsese disse ter escolhido a atriz para o papel por conta de uma cena teste em que ela deu um tapa na cara do Leo. Ela achou que sua carreira em Hollywood acabaria ali, mesmo antes de começar. Logo ela se tornaria uma das novas atrizes mais faladas do ano. 

#02 Barbie Desequilibrada 
Ou Barbie Estranha... é irresistível não parodiar a personagem de Kate McKinnon com a Arlequina que Margot Robbie encarnou três vezes na telona. Se ela é uma das poucas coisas que salvam Esquadrão Suicida (2016), ela logo aperfeiçoou a personagem quando se tornou produtora de Aves de Rapina (2020) e deu as caras novamente na repaginada vista em O Esquadrão Suicida (2021). A anti-heroína PHD em Psiquiatria nem precisou do Coringa para ser um marco na sua carreira. 

#01 Barbie Patinadora
Nada me tira da cabeça que Margot Robbie merecia aquele Oscar de melhor atriz ao viver a patinadora Tonya Harding em Eu, Tonya/2017 (pelo menos aqui no Blog ela foi escolhida a melhor atriz daquele ano. Produzido por Margot, o filme conta a controversa versão da atleta sobre suas polêmicas. Aqui, a australiana provou que estava disposta a se tornar um dos maiores nomes de sua geração. A ótima atuação lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar de melhor atriz (depois ela foi indicada como coadjuvante por O Escândalo/2019). Simplesmente espetacular!

Na Tela: Barbie

 
Ryan e Margot: o rosa contra o patriarcado. 

Faz tempo que não vejo um filme provocar tanta comoção como Barbie. Não digo isso pelo discurso antipatriarcado do filme e a legião de pessoas que se doeram com isso, falo pelo grupo de pessoas que foram ver o filme conforme manda o figurino: de rosa. As lojas foram tomadas pela cor que tempos atrás causava urticária ao ser associada ao sexo feminino, agora Barbie reverteu o jogo no imaginário pop. Acho que não precisa nem dizer que muitos meninos também foram ver o filme de rosa (na sessão que eu assisti havia três de vestido rosa) e uma menina sentada ao meu lado que pedia para mãe para ir embora e tomar milkshake, mas a matrona se irritava dizendo que queria ver o filme até o final. A criança tinha uns cinco anos e não estava nem aí para Barbie e suas desventuras, afinal, conforme bem explica a classificação do filme, ele não é para os miúdos (caso ainda resta dúvida a classificação é de doze anos). A diretora Greta Gerwig ao lado de sua estrela produtora, Margot Robbie, criaram um verdadeiro fenômeno e (espertas do jeito que sempre foram) sabiam que um filme para criar tanto alarde precisava quebrar o nicho de um público e se expandir para todos os demais. Por isso, Barbie tem aquele estilo arrebatador baseado nos acessórios da boneca, os visuais clássicos do brinquedo e versões de carne e osso de várias versões da personagem. Todas são Barbies, mas o protagonismo fica por conta da Barbie Estereotipada (Margot Robbie), aquela que você imagina sempre que se fala a palavra que dá título ao filme. Foi ela quem rompeu o paradigma das meninas brincarem com as bonecas que pareciam bebês e se relacionavam com a maternidade e fez com que as meninas olhassem para o futuro e se vissem como mulheres adultas e não somente mães. Muito já foi discutido ao longo da história sobre o papel da boneca da Mattel no imaginário cultural de várias gerações. Sorte que na Barbielândia tudo isso já está muito bem resolvido com a Barbie presidente , a Barbie ganhadora do Nobel, a Barbie doutora, a Barbie com corpo fora dos padrões, a Barbie cadeirante, a Barbie grávida... todas são bem resolvidas e ocupam o topo da pirâmide local, enquanto os Kens estão no mesmo lugar de sempre: o de acessório da Barbie. Muita gente parece chocada em descobrir que o Ken não tem casa e carro feito a Barbie (mas se tem gente que polemizaram o fato de ambos não terem genitais - em que planeta esta gente vive? Oops, desculpa, será que isso é um SPOILER?). No entanto, começa a acontecer coisas estranhas com Barbie Estereotipada. Ela começa a ter pensamentos diferentes das outras, seu pé perde aquele formato próprio para usar salto alto (e ela mesma cita que se tivesse pés planos jamais usaria salto) e até aparece celulite em suas pernas. Horrorizada, ela conversa com a Barbie Estranha (KAte McKinnon) e descobre que a forma de resolver estes problemas é ir para o mundo real e encontrar sua dona. Assustada ela topa o desafio e acaba sendo acompanhada por Ken (Ryan Gosling), que faz de tudo para chamar a atenção da loura, mas não recebe muito mais do que pouca atenção. No mundo real Barbie vai descobrir que as coisas são muito diferentes  e Ken também, especialmente no que diz respeito às relações de gêneros e de poder. Greta Gerwig constrói uma sátira esperta, com piadas bem sacadas sobre o choque entre um mundo de fantasia e o mundo real com verniz adequado de crítica social. O problema é que após a primeira hora de filme a narrativa perde ritmo  e precisa de algumas quebras na narrativa (a dancinha dos Kens, a hilariante propaganda da Barbie Depressiva) para voltar a fazer rir, é engraçado que quando o Ken assume a posição de líder de Barbielândia o filme se torna menos divertido, talvez por tornar aquele lugar uma paródia de um mundo real que conhecemos tão bem. O filme acaba se tornando mais previsível com o plano de fazer voltar tudo ao normal e a execução do plano se torna um tanto repetitiva até o desfecho com ares de Pinóquio. Com uma cenografia impressionante e um elenco radiante (com destaque óbvios para Margot e Ryan Gosling), o filme também conta com uma trilha sonora esperta, com destaque para a canção animada de Dua Lipa e a (belíssima) música introspectiva de Billie Eilish. Prevejo um duelo das duas no Oscar do ano que vem e não me surpreendo se Barbie for lembrado em várias categorias com sua graça  entre o realismo e surrealismo.

Barbie (EUA - 2023) de Greta Gerwig com Margo Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Ariana Greenblat, Kate McKinnon, Issa Rae, Emma Mackey, Alexandra Shipp, Simu Liu, Kingsley Ben-Adir, Ncuti Gatwa, Scott Evans, Will Ferrell, Connor Swindels e Helen Mirren. ☻☻

domingo, 23 de julho de 2023

4EVER: Sinéad O'Connor

 
08 de dezembro de 196626 de julho de 2023

Sinéad Marie Bernadette O'Connor nasceu em Dublin na Irlanda, sendo a terceira filha de uma família de cinco irmãos. Sineád viveu um relacionamento conflituoso com a mãe e sofreu abusos quando pequena. Seu primeiro álbum (The Lion and the Cobra) foi lançado em 1987, mas foi com o segundo trabalho, I Do Not Want What I Haven't Got (1990) que a artista ganhou fama mundial ao vender sete milhões de cópias em todo o mundo alavancado pelo sucesso da canção Nothing Compares 2u. Famosa por sua voz doce com entonação rebelde e o cabelo raspado, a carreira de Sinéad também foi marcada pela militância, temas como racismo, feminismo, direitos humanos e abuso infantil eram recorrentes em sua carreira. A artista pagou um alto preço após rasgar uma foto do Papa em sua participação no Saturday Night Live em 1992. O que era um protesto sobre denúncias de abuso infantil contra clérigos, ganhou grande repercussão e incompreensão. Católica desde a infância, em 1999 ela foi ordenada pela Igreja Católica Ortodoxa Irlandesa, mas em 2018 converteu-se ao islamismo. A artista também era bastante sincera em seus relatos sobre traumas e saúde mental, não escondendo seu abalo perante a morte do filho, Shane de 17 anos em 2022. Ao longo da carreira, Sinéad lançou dez álbuns e teve várias parcerias com outros artistas. Ela também participou da trilha sonora de vários filmes (como Em Nome do Pai/1993, Vanilla Sky/2001 e Albert Nobbs/2011) e atuou em outros (como O Morro dos Ventos Uivantes/1992 e Nó na Garganta/1997). Em 2021 ela lançou seu livro de memórias, que tornou-se um bestseller. A artista foi encontrada desacordada em sua residência em Londres e faleceu em seguida. 

#FDS Para Maiores: Théo & Hugo

 
Couët e Nambot: desinibição com alma romântica 

A cena de abertura de Théo & Hugo é uma verdadeira afronta: um grupo de homens se entregando aos prazeres da carne em uma legítima black room localizada abaixo de um bar gay na França. A cena de estende por longos minutos e dá a impressão que estamos diante de mais um filme pornográfico que tem aos montes em sites da Internet. Quase vinte minutos depois, quando você imagina que o filme vai ficar só nisso, o filme muda de tom e passa a se dedicar a dois rapazes presentes naquela ocasião. No caso, os dois personagens do título que sentiram algo diferente um pelo outro perante a multiplicidade de parceiros presentes ali. Os dois resolvem continuar a noite em outro lugar, engatam uma longa conversa pelas ruas vazias de Paris que se transforma em uma crise quando Hugo (François Nambout)al descobre que Théo (Geoffrey Couët) não usou preservativo durante a transa que tiveram. Se você é um daqueles que consideram a atitude de Hugo um exagero (vale lembrar os riscos do lugar em que estavam durante a noite), a situação logo recebe maiores explicações quando Hugo revela ser soropositivo. O que prometia ser apenas o início de um romance logo se torna uma reflexão sobre o fantasma da AIDS consciência frente à doença no século XXI. Entre uma conversa e outra a atração entre os dois personagens oscila. Eles discutem, se afastam, se atraem, trocam acusações, questionam a postura de um e de outro, mas existe uma preocupação legítima de um com o outro que não consegue ser disfarçada. Em alguns momentos o filme lembra a trilogia do Before de Richard Linklater com as longas caminhadas embaladas pela conversa dos personagens que se revelam aos poucos, de forma que podemos perceber como Hugo é calejado e Théo ainda é um bocado ingênuo perante a vida sexual que pretende levar. O filme da dupla Olivier Ducastel e Jacques Martineau  foi premiado com o Teddy Bear no Festival de Berlim e ganhou alguma repercussão pela forma como retrata a AIDS nos dias de hoje, uma doença que pode parecer sob controle quando devidamente diagnosticada e medicada, mas que ainda necessita muito da prevenção e conscientização. Estes elementos complementares aparecem muito na vida aparentemente normal que Hugo consegue levar tendo com o uso de medicamentos e cuidados pessoais e encontra um contraponto na postura um tanto inconsequente de Théo. O  filme por vezes se torna cansativo por ser palavroso demais, algo que tenta contornar com uma certa tensão sobre o resultado do exame de Theo, aspectos que preenchem o filme até que volte a investir na desinibição de seus atores no último ato. Mas não se engane, apesar de toda ousadia, o filme tem uma alma romântica que busca retratar de forma mais natural possível a atração entre os personagens. Inicialmente assisti ao filme na Filmmica para escrever sobre no CICLO DIVERSIDADESXL no mês passado, mas ele acabou ficando de fora, mas cai como uma luva para encerrar esse #FimDeSemana dedicado a produções ambiciosas e ousadas dedicadas ao público maior de dezoito anos. 

Théo & Hugo (Théo et Hugo Dans le Même Bateau / França - 2016) de Olivier Ducastel e Jacques Martineau com Geoffrey Couët, François Nambot, Bastien Gabriel e Miguel Ferreira. ☻☻

sábado, 22 de julho de 2023

#FDS Para Maiores: Os Frutos da Paixão

Klaus e Arielle: fragmentos de fetiches variados.

Em 1975 o filme francês A História de O contava a história de uma bela jovem que é levada pelo namorado para um retiro bizarro em que recebe informações sobre escravidão e perversão sexual. No entanto, por conta de uma dívida pessoa, ela fica cada vez mais aos cuidados do cruel Sir Stephen, que a torna a escrava de seus desejos mais obscuros. Nem precisa dizer que o filme de Just Jaeckin provocou polêmica na época do seu lançamento ao levar para as telonas a obra de Pauline Réage, lançado em 1955, sobre a mulher que era livre e se vê submetida ao prazer máximo pertencente ao outro. Um filme já estava de bom tamanho para contar a história da protagonista chamada O, mas em 1984 o filme recebeu uma sequência oficial e nos anos 1990 rendeu até uma versão nacional com Paula Burlamaqui, Paulo Reis e João Camargo. O mais curioso é que em 1981 O recebeu uma espécie de fanfic de Shûji Terayama (1935-1983) que escalou o cultuado (e difícil) Klaus Kinski para encarnar Sir Stephen. Dessa vez a protagonista está nas mãos de Stephen desde o início e ele a leva para um bordel na China. O país é apresentado incialmente em fotos, mas depois torna-se um cenário quase imaginário da fantasia que emoldura os fetiches que perpassam o filme. A jovem O aqui é vivida por Isabelle Illiers, que ama Stephen, mas ele só demonstra ter prazer em vê-la submetida aos caprichos de outros homens. Existe a sensação de poder e domínio daquele velho homem sobre a jovem a toda instante, quem observa o filme hoje pode ver no rosto envelhecido de Kinski o retrato de um patriarcado fantasmagórico sobre o feminino, que observa as mulheres apenas como instrumento de satisfação dos seus desejos (algo que a obra de Pauline Réage já sinalizada décadas atrás). O veterano ator alemão já estava calejado de polêmicas em sua carreira e não teve pudores em encarar cenas de sexo não simuladas (com closes nada discretos) com suas parceiras de cena. Na maioria delas é a musculatura de seu corpo envelhecido que fica em maior evidência (e ele fez questão de permanecer de meias e sapatos brancos durante as cenas de sexo por achar que ficava melhor). O fato dele portar um leque em algumas cenas e fazer cara de malvado o tempo todo traz uma estranha semelhança com o estilista Karl Lagerfeld dos anos 2010, o que traz ao filme um anacronismo interessante. Talvez sua presença malévola seja a coisa mais interessante do filme, já que a montagem resulta num amontoado de cenas picotadas dedicadas à rotina sexual de seus personagens. O roteiro até ensaia alguns pontos para desenvolver no roteiro: a depressão de O em busca de seu lugar no mundo, o efeito dissonante de um triângulo amoroso dos protagonistas com experiente Nathalie (Arielle Dombasle), a inocência do amor pelos olhos do rapazinho vivido por Kenichi Nakamura e até uma revolta dos chineses contra o governo britânico (lembrando que Sir Stephen é britânico, apesar de Klaus ser alemão), mas tudo soa empolado e pouco envolvente. Dizem que o experiente Terayama estava doente na época e não tinha muita energia durante as filmagens, fato que se comprovou com sua morte dois anos depois, de forma que Frutos da Paixão se tornou seu penúltimo longa-metragem.  Acho que um pouco do resultado também se deve ao trabalho de Isabelle Illiers que está visivelmente desconfortável nas cenas que tem pela frente (e o fato de sua carreira de atriz terminar após o filme só aumenta essa impressão), algo que contrasta consideravelmente com o ímpeto de Klaus em cada cena.

Os Frutos da Paixão (Fruits of Passion/ França - Japão) de Shûji Terayama com Klaus Kinski, Isabelle Illiers, Arielle Dombasle, Kenichi Nakamura e PîTâ e Keiko Niitaka. 

sexta-feira, 21 de julho de 2023

#FDS Para Maiores: O Império dos Sentidos

Eiko e Fuji: muito mais do que sexo. 

Resolvi dedicar este #FimDeSemana a alguns filmes que assisti nos últimos meses e que por algum motivo deixei de comentar por aqui. Em comum, os três filmes listados aqui tem cenas de sexo bastante explícitas e pretensões artísticas que as retiram do nicho dos filmes pornográficos. Obviamente que os os próximos três filmes citados por aqui podem ser considerados ofensivos por parte do público, mesmo para aqueles que estão acima de sua classificação a partir de 18 anos, mas lembro que ninguém é obrigado a ler as postagens, assistir os filmes, concordar comigo ou gostar do que eles apresentam. Como qualquer crítica, trata-se da forma como eu me relaciono com as obras e como realizo minhas considerações meramente subjetivas sobre elas. Escolhi começar por O Império dos Sentidos de Nagisa Ôgima, não apenas por ter se tornado um clássico, mas também por conta da ordem cronológica que o tornou numa referência para os filmes que utilizam o sexo como elemento narrativo em obras autorais. Acredito que este seja um dos filmes mais famosos de todos os tempos, despertando a curiosidade de várias gerações desde o seu lançamento. O ponto de partida é bastante simples: Abe (Eiko Matsuda) é uma ex-prostituta que se apaixona por seu patrão casado Ishida (Tatusuya Fuji), dono de uma hospedaria. O que começa de forma até singela, a cada encontro dos personagens a obsessão de um pelo outro se torna crescente, rendendo cenas tórridas perpassadas por uma atmosfera pesada e acontecimentos que revelam cada vez mais a sensação de incompletude que os dois sentem. Vez por outra os dois fazem sexo com outros personagens, mas suas angústias aparecem mesmo quando estão juntos, criando um verdadeiro mundo a parte para ambos. Ainda que em primeiro plano seja a relação carnal que possa chamar mais atenção do espectador, os diálogos fortes provocam incômodo em quem espera um filme erótico convencional, construindo um clima de suspense até o seu desfecho. O longa é baseado em uma história real ocorrida no Japão em 1936 e torna-se o pretexto ideal para o diretor apresentar a relação da cultura japonesa com o sexo (seja na relação com o pudor, com as gueixas, mangás eróticos...). Amparado por fetiches variados, o filme avança com cenas que causaram escândalo na época pela forma natural com que apresenta o entrosamento entre o casal protagonista. Eiko Matsuda consegue imprimir várias camadas à sua personagem, a tornando em uma figura por vezes assustadora, enquanto Tatusuya Fuji consegue ser extremamente sedutor e atraente, mesmo que seu porte de galã não evite que as ações de seu personagem sejam questionadas (o que não o impede de se assustar com as fantasias de sua amante). Os enquadramentos bem realizados, a fotografia escura em ambientes fechados e toques sonoros quase macabros colaboram bastante para a densidade entre os personagens e ajudam a romper os limites entre o pornográfico e o artístico, território em que vários cineastas autorais explorariam mais tarde (o dinamarquês mergulhou no mesmo território com o gélido Ninfomaníaca/2013 mas é em Anticristo/2009 que vemos sua inspiração mais explícita na obra de Ôshima e o indie Kelly+Victor/2012 também bebeu diretamente na mesma fonte). Entre cenas que hoje podem ser consideradas degradantes e abusivas, existe de fato um tom de crônica sobre a relação entre os gêneros ao longo do filme que extrapolou a tela, enquanto Tatusuya Fuji ganhou prêmios pelo papel e permaneceu em atividade até hoje, Eiko Matsuda sofreu muito preconceito pelo papel, realizando poucos filmes nos anos seguintes. Rompendo tabus, ainda acho que uma tradução mais literal do título (Ai no Korïda, algo como "tourada do amor") faria mais sentido no alto dos créditos. Vale lembrar que o diretor lidou com um ponto de partida semelhante em O Império da Paixão (1978) que lhe rendeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes ao mudar um pouquinho a perspectiva do casal protagonista (mas o filme não fez um décimo do sucesso de seu clássico cult). Por aqui, O Império dos Sentidos o filme foi eleito o Melhor Filme Estrangeiro pelo Festival SESC de Cinema em 1981!  

O Império dos Sentidos (Ai no Korïda / Japão - 1976) de Nagisa Ôgima com Eiko Matsuda, Tatusuya Fuji, Aoi Nakagima, Yasuko Matsui e Meika Seri. ☻☻☻

PL►Y: Tetris

 
Nikita e Taron: comunismo x capitalismo. 

Comentei aqui no blog que senti falta de algo em Air - A História por Trás do Logo, último filme dirigido por Ben Affleck, o que não impediu que o filme fosse um dos mais falados do primeiro semestre do ano, chegando a ser apontado por alguns críticos como uma produção que pode ser lembrada na temporada de ouro que se aproxima. Talvez seja tudo uma estratégia de marketing para que o filme, produzido incialmente para o catálogo do Prime Video, ganhe ainda mais notoriedade. É interessante notar que outro filme sobre um produto famoso chegou ao streaming recebendo uma escala bem menor de atenção, embora o considere bem mais interessante. Tetris é um filme que não se concentra na criação de um dos games mais populares de todos os tempos, mas na complicada jornada de sua popularização, afinal, apesar do joguinho ter ficado famoso mundialmente através do gameboy da Nintendo, tudo foi construído em um lugar que não dava a mínima para o que se passava no mundo dos videogames na década de 1980: a União Soviética. Quando Tetris começava a ficar famoso de forma quase clandestina, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) já começava a sentir que o comunismo estava mal das pernas. Gorbatchov já percebia o declínio, as denúncias de corrupção já  apareciam, a KGB também percebia que algo estava mudando no cenário da Guerra Fria... mas o que tudo isso tem a ver com o joguinho dos quadradinhos caindo (isso não é uma metáfora para a situação da URSS... ou seria?)? Foi neste cenário que o soviético Alexey Pajitnov (Nikita Efremov) inventou o jogo de estratégia que dependia do pensamento rápido do jogador. De início sua criação fez a diversão de seus colegas de trabalho, mas não demorou para que começasse a chamar atenção do outro lado da economia mundial, especialmente de Henk Rogers (Taron Egerton), que em uma feira de games tropeçou no joguinho viciante e percebeu todo o seu potencial. Começa então uma verdadeira disputa pelos direitos do jogo, geralmente intermediada por Roert Stein (Toby Jones), mas aos poucos, Henk descobre que nada é tão simples como parece. A lógica da URSS é totalmente diferente do que os empresários capitalistas imaginam, afinal, Alexey, como cidadão da sociedade socialista soviética, não tinha direito sobre o jogo, e sim a própria União Soviética detinha os direitos de negociação. Com a intenção de priorizar o bem coletivo ao invés do individual, toda arrecadação em torno dos direitos do jogo, deveriam ser revertidos para o país e não para Alexey. Sendo assim, ao invés de  negociar com o criador, Henk deveria agir de acordo com os termos de uma estatal que lidava com assuntos vinculados à importação e exportação. Não bastasse isso, existe uma série de detalhes contratuais que complicam ainda mais as negociações com as autoridades russas. Parece complicado? Não é. Pelo menos não com o roteiro de Noah Pink (da série Genius) que consegue criar uma história tão tensa como divertida. O ritmo impresso pelo diretor John S. Baird também é envolvente, deixando o espectador curioso para saber como o jogo de popularizou ao redor do mundo e, obviamente, fica na torcida por Henk e Alexey que são defendidos por Taron Egerton e Nikita Efremov cheios de carisma. Existe aqui ainda um panorama bastante compreensível sobre as tensões da Guerra Fria, com direito a espiões e tudo mais, alcançando um resultado surpreendente para quem conhece o jogo (que é usado como referências várias vezes nas transições de cenas e quando o filme precisa resumir o que está acontecendo para lidar com as limitações de orçamento). Bem realizado e interessante, Tetris merece mais atenção do que recebeu durante os últimos meses na AppleTV. 

Tetris (Tetris / Reino Unido - EUA) de John S. Baird com Taron Egerton, Nikita Efremov, Toby Jones, Oleg Stefan, Anthony Boyle, Sofya Lebedeva, Ayane Nagabuchi, Miles Barrow e Igor Grabuzov. ☻☻☻☻

4EVER: Tony Bennett

03 de agosto de 192621 de julho de 2023

Anthony Dominick Benedetto nasceu em Long Island no estado de Nova York (EUA). Filho de Ana e John Benedetto, ele começou a cantar desde muito jovem, mas antes de se dedicar somente à música, Anthony lutou ao final da Segunda Guerra Mundial. Foi somente depois de sua passagem pela vida militar que aprimorou ainda mais o seu canto, ainda que tenha se dedicado por um período às artes plásticas, assinando como Anthony Benedetto. Sua primeira música, Because of You (1951), alcançou o topo das paradas e marcou o início da carreira promissora. Mas foi em 1962 que lançou a belíssima "I Left My Heart in San Francisco", que pode ser considerada seu maior hit. Nos anos seguintes a sua sonoridade jazzística perdeu espaço com a popularidade do rock, mas entre os anos 1980 e 1990, Tony Bennett conseguiu renovar seu público, chegando a gravar um premiado Acústico para MTV em 1994. Nos anos 2000 gravou parcerias com Stevie Wonder, Amy Winnehouse e Lady Gaga (com quem gravou dois aclamados álbuns). Ao longo da carreira, Tony lançou 70 álbuns, vendeu mais de 50 milhões de cópias, ganhou mais de 20 Grammys e recebeu 2 Emmys se tornando um verdadeiro ícone da música que manteve sua sonoridade intacta ao longo da carreira. Diagnosticado com Alzheimer em 2016, e apresentando problemas de saúde desde então, a causa de sua morte não foi revelada. 

domingo, 16 de julho de 2023

4EVER: Jane Birkin

 
14 de dezembro de 1946 ✰ 16 de julho de 2023

Jane Mallory Birkin nasceu em Londres, filha de uma atriz e um tenente-comandante da Marinha Real Britânica. Depois de alguns trabalhos com Michelangelo Antonioni, foi após seu divórcio com o compositor John Barry, com quem teve uma filha, que a estrela buscou sua consolidação como atriz. Ela conheceu Serge Gainsbourg nas gravações do filme Slogan (1968) e se tornaram um duo avassalador. Os dois lançaram um álbum juntos e filmaram o polêmico Je t'aime moi non plus (1976), que rendeu à Jane mais trabalhos nos anos seguintes. Birkin se separou de Gainsbourg em 1980, quando a filha do casal (a cantora e atriz Charlotte Gainsbourg) tinha nove anos. Birkin prosseguiu sua carreira da cantora e atriz participando de inúmeros filmes, sendo dirigida por grandes nomes como Jean-Luc Godard, Agnes Varda, James Ivory e Alain Resnais. Jane também foi um ícone da moda ao conceber a famosa bolsa da Hermès que foi imaginada para atender suas necessidades em sair com suas filhas. Ela casou-se novamente com o diretor Jacques Doillon e teve mais uma menina. Símbolo de mulher livre e indicada ao César em três ocasiões, seu último trabalho no cinema foi no curta La femme et le TGV que foi indicado ao Oscar de melhor curta metragem. Em 2021 a atriz sofreu um AVC e recentemente havia cancelado shows por problemas de saúde. 

domingo, 9 de julho de 2023

PL►Y: Em Trânsito

Franz e Paula: amor em tempos fascistas. 

Georg (Franz Rogowski) tinha a missão de guiar um escritor para fora da França após a ocupação fascista por lá. O escritor planeja ir para o México com sua esposa e devido a um imprevisto, Georg acaba assumindo a identidade do escritor perante a embaixada. O que era uma missão, acaba se tornando um plano para fugir do continente europeu antes que o regime totalitário impeça de vez a saída de países em que chega ao poder. Nem tudo sai como o planejado para Georg. Além de ter que convencer que é de fato o tal escritor, Georg ainda precisa provar que não representa uma ameaça para o regime a sua saída de Marselha. Como se isso não bastasse, uma mulher vive cruzando o seu caminho, Marie (Paula Beer). Embora esteja acompanhada de seu amante, Richard (Godehard Giese), ela está desesperada na busca por seu esposo, que estava sumido, mas agora ela recebeu a notícia de que ele está na cidade em busca de sua autorização para sair da Europa. Em Trânsito foi considerado o Melhor Filme do Festival de Berlim em 2018, levando o Urso de Ouro para casa com uma história sem época definida, que remete ao passado, mas que, infelizmente, também pode apontar para o futuro. O diretor Cristian Petzold embaralha a história de seus personagens que estão em rota de fuga, mas que por algum motivo sempre ficam presos no lugar em que estão, a sensação é que estão prestes a testemunhar o pior que está por vir. Obviamente que o filme remete diretamente a ascensão de Hitler na Alemanha e a sensação de desespero de quem desejava estar bem longe dali enquanto a escalada totalitária só crescia, mas Petzold faz questão de não localizar sua trama no tempo, denotando que aquela situação ainda é uma ameaça em qualquer período.  Franz Rogowski está ótimo mais uma vez em cena, assim como Paula Beer, numa química sutil que repetiriam em Undine (2020) do mesmo diretor, e aqui também paira sobre os dois a sensação de que toda a história de amor que poderiam viver está fadada ao fracasso desde o início. No entanto, conforme caminha para o desfecho, Petzold acentua isso quando acreditamos estar próximos de um final feliz e o destino revela algo que só aumenta a culpa do protagonista. Não por acaso, Petzold apresenta o filme como a última parte de uma trilogia chamada Amor em Tempo de Sistemas Opressores, que é formado por Barbara (2012) e Phoenix (2014). Em Trânsito, com sua estética contemporânea e seus romances perdidos atemporais, prende a atenção ao reconstruir um pesadelo histórico que desejamos que seja algo preso somente ao campo da ficção. 

Em Trânsito (Transit - Alemanha/2018) de Christian Petzold com Franz Rogowski, Paula Beer, Godehard Giese, Maryam Zaree, Lilien Batman, Sebastian Hülk e Alex Brendemühl.  ☻☻☻☻

.Doc: Wham! / Tina / Love to Love you, Donna Summer / Moonage Daydream

 
George e Andrew: desconstruindo o Wham! 

Confesso que estava um tanto ansioso para ver o documentário Wham! sobre a dupla pop formada por George Michael e Andrew Ridgeley. Muito por conta da minha surpresa quando adolescente de descobrir que muitas músicas que eu considerava ser de George era na verdade de grupo. Além disso, teve todas as piadinhas ao longo do tempo sobre Andrew não fazer nada por ali. O documentário de Crhis Smith, disponível na Netflix, não apenas passa a limpo a carreira da banda, como também supre nossa curiosidade pela dupla de amigos que chegou ao topo das paradas musicais dos anos 1980, aos poucos eles deixaram as críticas sociais de lado e investiram cada vez mais numa sonoridade pop. O filme é praticamente todo costurado por cenas de arquivos e entrevistas da dupla e ajuda a reconhecer o talento inestimável de George Michael, na verdade Georgios Kyriacos Panayiotou, um jovem inglês, filho de imigrantes gregos que com vinte e poucos anos era cantor, compositor e produtor. Um verdadeiro prodígio que tinha que lidar com a fama e o assédio de fãs enquanto internamente lidava com a descoberta de sua homossexualidade. Se Wham! serve para viajar no tempo e lembrar do sucesso da dupla, o destaque para os conflitos de George enquanto se tornava um grande astro pop ajuda a entender melhor os rumos de sua carreira solo e os dilemas que atravessou entre brigas com gravadoras, problemas com policiais em banheiros públicos e outras desventuras que deixou os fãs desavisados um tanto surpresos. Por outro lado, o filme torna a figura de Andrew Ridgeley como alguém crucial para George desenvolver seus talentos e persona pública, afinal, sem o apoio do amigo, provavelmente o astro teria se tornado um garoto tímido comum desde aquele primeiro dia na escola em que os dois se aventuraram a fazer tarefas juntos. O documentário se torna mais do que um registro sobre artistas que fizeram sucesso nos anos 1980, mas também um belo registro sobre a amizade da dupla, que ao que tudo indica chegou ao fim sem conflitos de ego ou desavenças.

Tina: furacão na vida e nos palcos. 

O documentário da Netflix prova mais uma vez que o cinema volta-se cada vez mais para o fascínio que histórias de artistas renomados provoca no público, não apenas em produções como Bohemian Rhapsody (2019), Rocketman (2019) ou Elvis (2023), mas também em outros documentários recentes que estão disponíveis no streaming. Outro deles é Tina que está no HBOMax, que conta a história de Tina Turner, passando por sua infância pobre, o casamento turbulento com Ike Turner e seu renascimento para a música pop nos anos 1980 numa idade em que a maioria das artistas começam a penar para se manter em evidência. A história de Anna Mae Bullock já foi muito bem contada em Tina - A Verdadeira História de Tina Turner (1993) e quem viu o filme estrelado por Angela Bassett não encontrará muita novidade por aqui, talvez apenas a irritante menção constante da imprensa ao ex-marido Ike em entrevistas da artista. Talvez a lembrança da dupla Ike e Tina Turner fosse muito vívida entre o público dos Estados Unidos, mas no resto do mundo, Tina ressurgiu com luz própria como um furacão da música pop. O documentário celebra o talento da artista e apresenta aspectos delicados de sua vida pessoal, sem esquecer sua obstinação em resistir quando a indústria da música lhe deu as costas. Diante do recente falecimento da artista, o documentário se torna uma homenagem à considerada Rainha do Rock. Quem também possui documentário na HBOMax é a diva da disco music Donna Summer com Love to Love You, que apresenta aos fãs a história da maior cantora dos anos 1970. Lembrando o início da carreira dela como atriz de teatro e posteriormente chamando atenção com a provocante canção que dá título ao documentário, o filme deixa aquele gosto de ver uma cinebiografia de Donna nos cinemas. Feito com cenas de arquivo e entrevistas de pessoas que estavam por perto da diva, o filme revive o marco que foi ver uma cantora negra romper barreiras no cenário da música pop  nos Estados Unidos. Algumas canções de Donna ainda soam inovadoras (como a sonoridade e I Feel Love ou as letras de She works hard for the Money ou Bad Girl) e são capazes de animar qualquer balada até hoje. 

Love to Love You: a história da rainha da disco music. 

Sempre me perguntei o que teria acontecido que fez a carreira de Donna perder força ao final do século XX e o filme esclarece sua declaração infeliz sobre "Deus não ter criado Adão e Ivo" no meio de um show. A diva que era cultuada pelo público gay sofreu críticas severas em um tempo em que a AIDS começava a aparecer. A declaração fementada na mídia fez com que a artista começasse a sofrer boicotes e represálias por grande parte do seu público. A coisa só piorou com os problemas de saúde que atravessou mais tarde. Embora seja mais convencional e feito direto para a TV, Love To Love You, Donna Summer é um belo resgate da história da diva. No TelecinePlay temos Moonage Daydream o celebrado documentário sobre David Bowie. O longa de Brett Morgen segue um caminho diferente de todos os outros citados aqui. Mais experimental, o filme constrói um verdadeiro universo para Bowie, com cenas de shows, entrevistas, clipes, fotos e entrevistas, deixando que a sonoridade e a estética criada pelo artista faça todo o resto aos olhos e ouvidos do público. A sensação é que somos tragados para um mundo diferente, liderado por um alienígena de sexualidade fluída que deixa as plateias enlouquecidas. Esta mistura entre o artista e seu personagem Ziggy Stardust é proposital e não abandona o filme mesmo quando o camaleão do rock muda de pele. Cada fase do cantor é contextualizada dentro de uma ideia particular que perpassa até seus trabalhos no cinema e atitudes mais polêmicas. Em um tempo em que termos como não-binário não existia e a androginia era o rótulo reservado a ele, Bowie quebrou paradigmas no mundo da arte e criou alvoroço quando assumiu sua bissexualidade. O filme reserva poucos momentos para a vida pessoal do artista e celebra mesmo é a sua carreira. É verdade que depois do sucesso sem fronteiras com Let's Dance (1983), seus discos pairaram em lugares sem o mesmo estrondo, de forma que o filme dedica menos espaço para esse período posterior da vida do artista. Nessa fase, Bowie parece mais disposto a digerir o que era inovador e não criar tendências, no entanto o último ato com Black Star poderia ter sido mais aproveitado na montagem final. Presente em várias listas de melhores filmes do ano, Moonage Daydream é uma belíssima viagem psicodélica pela mente de Bowie. Para os fãs é um verdadeiro delírio. 

Moonage Daydream: jornada intergalática em David Bowie.

Wham! (EUA-2023) de Chris Smith com George Michael, Andrew Ridgeley e Elton John.  ☻☻☻☻

Tina (EUA-2021) de Dan Lindsay and T.J. Martin com Tina Turner, Carl Arrington e Ike Turner.  ☻☻☻☻

Love to Love You, Donna Summer (EUA - 2023) de Brooklyn Sudano e Roger Ross Williams com Donna Sumer, Michael McKean e Arsenio Hall.  ☻☻☻

Moonage Daydream (EUA - 2022) de Brett Morgen com David Bowie, Iman e Mick Ronson.  ☻☻☻☻

sábado, 8 de julho de 2023

PL►Y: Armageddon Time

 
Banks e Jaylin: memórias sem sal. 
 

Filme após filme, o novaiorquino James Gray conquistou fãs e admiradores entre os críticos. Sua carreira começou em filmes independentes como Fuga para Odessa (1994) e Caminho sem Volta (2000), ganhou cores de mainstream com Os Donos da Noite (2007) e Amantes (2008), ganhou ambição com Era Uma Vez em Nova York (2013), tons épicos com Z: A Cidade Perdida (2016) e de sci-fi com Ad Astra (2019), revelando um diretor cada vez mais ambicioso e diverso, no entanto, sua carreira sempre teve algo em comum: nenhuma indicação ao Oscar. Mesmo os atores que foram cotados ao prêmio, sempre ficaram de fora na reta final. Essa história parecia que mudaria com Armageddon Time, seu oitavo longa-metragem, e também o mais pessoal de todos: um registro de suas lembranças de infância. No entanto, quando o filme foi lançado nem os fãs e nem a crítica se empolgou, imagina o Oscar. Sem indicações mais uma vez, o filme está disponível no TelecinePlay para que você tire suas próprias conclusões. As minhas não são muito empolgantes. Parece que o diretor ao se ver diante de sua própria história (e considero que o que vemos aqui seja os momentos mais relevantes de suas memórias de menino), o cineasta não consegue empolgar a plateia com uma série de situações que não chegam a ser desastrosas, mas que soam um tanto desinteressantes. Seria maldade atribuir ao pequeno Banks Repeta a falta de empolgação gerada pelo filme, na pele do protagonista Paul Graff ele faz o que pode com as travessuras que tem em mãos. No geral ele fantasia e apronta o tempo inteiro durante o filme e quem paga o pato é seu amigo Johnny (Jaylin Webb), um menino negro e repetente que não é visto com bons olhos por nenhum outro personagem do filme. Johnny mora com a avó e já está bastante saturado de todo o preconceito ao seu redor, que cresce ainda mais com o discurso conservador pré-era Reagan nos Estados Unidos. Na casa de Graff, de origem judia, todos temem a eleição de Reagan para a presidência e se consideram perseguidos e excluídos, mas são incapazes de ver a perseguição e exclusão dos negros que estavam na mesma escola que seu filho caçula. Essa cegueira poderia ser o ponto mais interessante do filme, mas ela fica de lado, assim como qualquer outro resquício de boa história para contar. No fim das contas, o filme vira do avesso a ideia de "branco salvador" tão criticada no cinema e investe no oposto com a situação de Johnny piorando com as ideias mirabolantes de Paul. Em torno dos meninos estão Anne Hathaway como a mãe e Jeremy Strong como o pai da família Graff, mas a ternura ficaria por conta de Anthony Hopkins na pele do vovô confidente do protagonista. O trio se esforça, mas tem pouco a fazer em personagens sem muitas camadas a serem apresentadas. A fotografia sem vida também não ajuda, deixando a produção toda ainda mais cansativa. Talvez eu já esteja um tanto cansado de histórias de diretores lembrando de suas infâncias, mas a de Gray parece dizer que suas memórias são apenas sem sal. 

Armageddon Time (EUA-2022) de James Gray com Banks Repeta, Anne Hathaway, Jerey Strong, Anthony Hopkins, Jaylin Webb, Andrew Polk, Ryan Sell e Jessica Chastain. ☻☻ 

NªTV: Os Outros

 
O elenco de Os Outros: grande acerto da GloboPlay

Fenômeno de audiência na GloboPlay, Os Outros alcançou a difícil tarefa de alcançar elogios de público e crítica com sua história repleta de suspense e pesadelos urbanos. Tudo parte da briga entre dois adolescentes na quadra de um condomínio da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. Aparentemente o que poderia ser resolvido com um pedido de desculpas (e alguma punição por parte da família do agressor), se torna uma verdadeira guerra entre as duas famílias, só que depois piora. Afinal de contas, a mãe de Marcinho (Antonio Haddad), o menino agredido é Cibele (Adriana Esteves), contadora disposta a defender seu filho com unhas e dentes. Do outro lado do ringue, ops, do condomínio, temos Vando (Milhem Cortaz) que talvez não se dê conta de como incentiva a agressividade do filho agressor Rogério (Paulo Mendes) em vários momentos do dia. Ao lado destes dois pesos pesados estão respectivamente o passivo Amâncio (Thomás Aquino), que parece tentar resolver as coisas da forma mais harmoniosa possível, pelo menos até conhecer Mila (Maeve Jinkins) que lhe desperta... algo diferente. Do ponto de partida aparentemente simples, a série ganha fôlego nos dois primeiros episódios e amplia a tom de paranoia e raiva nos episódios seguintes com ajuda de Sérgio (Eduardo Steiblich), um ex-policial expulso por corrupção que ironicamente se torna a salvação dos morados com seu discurso de tudo por segurança auxiliado pela síndica Dona Lúcia (Drica Moraes), que assim como ele tem segundas e terceiras intenções a cada taxa extra que é cobrada dos moradores. No entanto, se antes a briga entre dois adolescentes se torna a batalha entre Cibele e Vando, logo ela se torna um imenso buraco caótico que começa a dragar todos que chegam perto com consequências inesperadas. Criado por Lucas Paraizo, responsável pelos textos de Sob Pressão (iniciada em 2017) e por sua colaboração em Justiça (2016), dois outros sucessos da Globo, a crítica social em tom de guerra em um lugar que deveria inspirar segurança, fala nitidamente da agressividade que tomou conta de nossas relações, fala dos impulsos que poderiam ser evitados se os personagens fizessem aquilo que sempre inicia cada episódio (um respiro longo para oxigenar o cérebro e fazer pensar melhor), no entanto, como todo mundo parece estar no limite, acaba tomando atitudes desesperadas e complicando ainda mais a situação e, pior ainda, abrindo espaço para personagens perigosos que vendem o discurso de "segurança" quando na verdade seus interesses são outros. Para além do texto de Paraizo, a direção de Luisa Lima é um primor, oscilnado entre o tenso e o terno nas horas certas. A diretora consegue imprimir uma escalada de emoções sempre envolvente e que contorna alguns momentos complicados. A série se perde um pouco quando o destino de Vando é traçado, dali em diante tudo se torna um tanto fácil demais para Sérgio enquanto Rogério pende para lá e para cá tomando atitudes pouco críveis, porém, nada atrapalha a atmosfera de pesadelo urbano de que a série necessita. Além disso, o elenco está espetacular, com destaque para Adriana Esteves (que parece sempre com o coração prestes a explodir a cada cena) e Maeve Jinkins numa relação complicada entre duas mulheres em busca de um sentido para tudo aquilo. O final deixa uma brecha para uma segunda temporada, mas eu preferia que a produção parasse por aqui, gosto da sensação que o título faz alusão de que os outros são desconhecidos, quando a última cena deixa a sensação de que até quem está próximo pode ser um outro desconhecido. 

Os Outros (Brasil-2023) de Lucas Paraizo e Luisa Lima com Adriana Esteves, Milhem Cortaz, Maeve Jinkins, Eduardo Sterblitch, Drica Moraes, Thomás Aquino, Antonio Haddad, Paulo Mendes, Guilherme Fontes e Rodrigo Garcia. ☻☻