Com a chuva de longas metragens assinados por diretores vindos da TV em nossos cinemas, dia desses me dei conta de que o filme Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho faz dez anos e merece ser revisto. O diretor realizou um dos trabalhos mais notáveis do cinema brasileiro, sendo ousado, inovador e nada televisivo. Desde que dirigia novelas na Globo (Renascer/1993, Rei do Gado/1996) era mais do que visível que o diretor trazia para a telinha qualidades da sétima arte. Na verdade, Lavoura trouxe Carvalho de volta às suas origens, já que foi no cinema que construiu sua primeira obra-prima (o curta A Espera/1986) e devido às qualidades sublimes deste trabalho foi convidado a injetar sangue novo na teledramaturgia (o que causou grande polêmica entre os diretores tradicionais). Admiro a coragem de, neste retorno, Carvalho tenha escolhido um dos mais belos livros de nossa literatura - embora seja um dos mais densos também, um jorro de memórias de um protagonista autocentrado que abandona os sua família de imigrantes libaneses, assim como os seus valores. A narrativa é tão forte e vertiginosa que depois dele o escritor Raduan Nassar largou a literatura (foi viver numa fazenda após, somente, três livros publicados). O filme Lavoura Arcaica busca reproduzir o jorro narrativo em forma de imagens e consegue realizar, magistralmente, um filme irretocável visualmente. Visualmente inebriante, o filme causa algum desconforto a partir do momento em que temos contato com a escrita forte e literata na boca de seus atores, mas a intensidade das atuações, os enquadramentos, o jogo de luzes e sombras nos absorvem de tal forma que é impossível ficar indiferente. Não é todo mundo que se satisfaz a este estilo narrativo (me lembra muito o cinema de Terrence Mallick com as vozes alternadas em off e cenas que remetem às memórias do protagonista) mas é uma experiência inesquecível. Carvalho realizou um trabalho de preparação intenso para o filme, preparou seu elenco por três meses numa fazenda afastada da civilização. A produção se alongou por três anos e juntou um elenco excepcional com dois atores de grande apelo perante o público (Raul Cortez e Selton Mello, que perdeu vinte quilos para o papel) e quatro (então) menos conhecidos em papéis estratégicos (Juliana Carneiro da Cunha, Simone Spoladore, Leonardo Medeiros e Caio Blat). O filme cria o avesso da parábola do filho pródigo, André (Selton, excepcional no papel que fincou seus pés no cinema) saiu de casa deixando para trás todo o rigor de seu pai (Cortez, em mais um grande momento), o afeto (que é visto como uma anomalia na casa) da mãe (Juliana Carneiro, estupenda) e seus irmãos. Para buscá-lo a família envia o primogênito Pedro (Leonardo Medeiros), que ao encontrá-lo se depara com as angústias que levaram ao distanciamento da família. André se mostra confuso, entre a vulnerabiliade e a ira, jorrando sobre Pedro todos os seus dilemas e contradições sobre o discurso de seu pai e seus sentimentos - especialmente pela irmã Ana (a espetacular estreia de Simone Spoladore). Isso é suficiente para que o diretor nos mergulhe em belas imagens pontuadas por diálogos áridos, numa espécie de paradoxo estilístico. Mesmo que alguns considerem o filme pretensioso em demasia (talvez merecesse perder uns vinte minutos), há de se ressaltar que o filme desperta as mesmas sensações que o livro, com a vantagem de ampliar os sentimentos dos personagens secundários (já que o livro se concentrava especialmente em André). Apesar de Selton ter mais tempo em cena, todos tem seus momentos (Spoladore não tem uma fala, mas nem precisava, suas cenas de dança são as mais impressionantes que já vi, Cortez mostra sua eficiência habitual num diálogo com Selton que é de arrepiar, Denise Del Vecchio tem uma participação pequena e memorável, Medeiros, Blat e Juliana tem atuações precisas, contidas e inesquecíveis em todas as cenas). Além deste acréscimo o filme ainda me fez despertar para uma leitura que ainda não havia feito sobre o livro, o diálogo do pai com André remetem diretamente à filosofia pós-moderna ao expor as contradições do poder e das referências expostas naquele lar. Um lar que ao final dá a sensação de ruir perante as revelações que André desejava esconder. Carvalho faz uma adaptação muito pessoal do livro (tão pessoal que até assume a narração, como o André adulto, durante quase todo o filme), apesar de precisar de um ajuste aqui e outro ali, o longa é uma das obras mais impressionantes do cinema brasileiro.
LAVAOURA ARCAICA (Brasil/2001) de Luiz Fernando Carvalho com Selton Mello, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha, Simone Spoladore, Leonardo Medeiros e Caio Blat. ☻☻☻☻☻
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