Laurence: alma feminina num corpo masculino ou alma masculina num corpo feminino?
Em 2012 o jovem canadense Xavier Dolan já tinha dois filmes no currículo e já desfrutava do status de prodígio do cinema. O cineasta tinha vinte e três anos quando Laurence Anyways foi exibido no Festival de Cannes e, apesar de dividir opiniões, recebeu a Queer Palm daquele ano. Dolan confirmou aqui seu capricho estético e o uso da música pop - que aqui parece ainda mais sublimada do que em seus filmes anteriores (a cena de abertura ao som da banda Fever Ray é arrepiante). Dolan conta a história de Laurence Alia (o francês Melvil Poupaud), professor conceituado com aspirações de ser escritor. Casado com a maluquete Fred (Suzanne Clément - premiada em Cannes) o casal vive feliz, até que Laurence começa a sentir algumas inquietações sobre sua identidade. Laurence decide mudar de sexo e o que acompanhamos (em quase três horas de sessão), é o efeito dessa decisão na vida do casal. Embora o centro da história seja Laurence tentando lidar com sua metamorfose (primeiro com peças íntimas, depois com roupas femininas, jóias, peruca... até chegar às mudanças físicas de fato) perante um mundo que também não sabe lidar bem com ela. O diferencial está em Dolan utilizar a angústia de Fred como contraponto, abordando os dilemas de uma mulher apaixonada pelo seu homem que deseja tornar-se mulher. Embora Fred o apoie no início, aos poucos a tarefa torna-se cada vez mais árdua. O cineasta compõe uma narrativa ambiciosa sobre o impacto da nova identidade de Laurence em seu trabalho, na vida amorosa, familiar, no bairro onde vive e, principalmente consigo mesmo, tanto que suas mudanças acontecem aos poucos e precisando de uma mudança dos cenários que frequenta. Por vezes Laurence e Fred são inseparáveis, se desentendem, seguem caminhos diferentes, se reencontram, se perguntam sobre os caminhos que seguiram e os que poderiam seguir. Centrado no amor dos dois personagens, Dolan cria uma bela reflexão sobre a identidade de gênero, o masculino e o feminino se friccionam o tempo inteiro durante o filme, não apenas em Laurence, mas em vários personagens que cruzam seu caminho (seja de forma consciente ou inconsciente). No entanto, com duas horas e quarenta e oito minutos de duração, Laurence Anyways soa cansativo, o que pode desviar a atenção de seus méritos. Existem cenas belíssimas na trajetória dos personagens, enquanto outras são desnecessárias (tirando a cena inicial, a primeira meia hora eu teria cortado quase que por inteiro, as cenas com a turma de Mamy Rose também não fazem a mínima diferença na história, se ainda cortarmos um maneirismo aqui e outro ali... uma lipoaspiração de quarenta minutos faria muito bem ao filme). Os excessos podem ser creditados à pretensão do jovem cineasta (que não é pouca), mas Xavier Dolan exala a vontade de ter uma assinatura autoral em sua carreira e prova que é capaz de contruí-la na forma de um cinema pulsante, meio pop, meio cabeça, sem medo de parecer desvairado. Há quem o compare com Orson Welles por ter encontrado a consagração tão cedo, mas eu percebo mais a figura de um jovem cineasta do século XXI que tomou muito Pedro Almodóvar na veia. Laurence Anyways só confirma a minha teoria.
Laurence Anyways (Canadá/França-2012) de Xavier Dolan com Melvil Pupaud, Suzanne Clément, Nathalie Baye, Monia Chockri e David Savard. ☻☻☻
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