Demick e Marco: dois perdidos na noite cearense.
Pedro (Marco Nanini) é um enfermeiro de 70 anos que no meio da noite vai com Daniela (Denise Weinberg) para o hospital em que trabalha. Não fica muito clara qual a relação que existe entre os dois, mas ao chegar no hospital não existe leito para Daniela e Pedro começa a se movimentar para ver o que consegue fazer. Neste movimento, percebemos a forma como este homem se relaciona com alguns pacientes, assim como em poucos diálogos o filme torna sua solidão torna-se palpável. É nesta mesma noite, em que deveria estar de folga, em que ele conhece Jean (Demick Lopes), um paciente que está louco para fugir após se meter em uma briga. Ajudando Jean a fugir do hospital, Pedro arranja um lugar para Daniela e acaba abrigando aquele desconhecido. Pedro e Jean irão conviver debaixo do mesmo teto por algum tempo, numa relação em que este senhor sempre terá a esperança de que acontecerá algum romance entre os dois. No entanto, nada é simples neste filme de personagens fortes, solitários e sedentos de afetos. O mais interessante é que diante desta premissa, a história policial fica diluída em nome das relações que se estabelecem e, conforme a história de Jean se revela, a de Renato se entrelaça a ele de uma forma bastante fluida - embora a plateia saiba desde o início os dilemas éticos que estão ali envolvidos. Em sua estreia como diretor, o cearense Armando Praça realiza um ótimo trabalho. Os personagens aqui vivem em dois mundos mundos paralelos, o trivial e o marginalizado em ambientes que fazem oposição o tempo inteiro à ambição glamourosa de Pedro de se tornar a sua musa Greta Garbo (que não por acaso tinha medo de envelhecer diante das câmeras e se afastou dos holofotes quando para ser lembrada bela e no auge, criando um verdadeiro mito cinematográfico). Neste subtexto sobre envelhecimento ("não me chame de velhota" diz Pedro em cena), Marco Nanini não tem pudores de mostrar seu corpo envelhecido, com rugas e quilos a mais, tanto que ousa até fazer cenas de nudez (e o filme realiza estas cenas com a mesma naturalidade com que apresenta cenas de sexo bastante ousadas), o resultado compõe um dos seus melhores e mais corajosos trabalhos. Sua química com Demick Lopes impressiona, especialmente quando começa a se notar o afeto que se desenvolve entre os dois. O filme ainda se envolveu numa grande polêmica por escalar a talentosa Denise Weinberg para encarnar uma personagem trans, ao mesmo tempo em que escolheu uma atriz trans (Greta Starr) para viver uma mulher cis. Embora a ideia tenha despertado a fúria de alguns, tinha a intenção de compor as intenções da produção, que joga o tempo inteiro com a aparência masculina e feminina (as roupas de Pedro, as expressões e posturas de Daniela, o apresentador andrógino que a apresenta, a transformação física no final). Greta também possui um ótimo trabalho de luz, sombras e cores na composição dos ambientes pelos quais seus personagens transitam. Curiosamente, toda a atualidade do filme é inspirada em uma peça de Fernando Melo lançada no início dos anos 1970, chamada Greta Garbo, quem diria, Acabou no Irajá. A peça ganhou várias montagens (as mais célebres com Raul Cortez no papel principal) e aqui ganha uma versão cinematográfica melancólica, mas ainda temperada com a esperança de remediar a solidão urbana de seus personagens. O filme participou da Seleção oficial do Festival de Berlim do ano passado.
Greta (Brasil/2019) de Armando Praça com Marco Nanini, Damick Lopes, Denise Weinberg e Greta Starr. ☻☻☻☻
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