sábado, 20 de março de 2021

#FDS Ana Carolina: Das Tripas Coração

 
As mulheres e Fagundes: o caos criativo de Ana Carolina. 

Se algumas pessoas ficaram incomodadas com a estreia de Ana Carolina em Mar de Rosas (1977), acredito que Das Tripas Coração, incomodou muito mais. Ambientado numa escola só para mulheres, Ana permanece em seu interesse pelo feminino e as relações de poder, não sendo por acaso que o longa começa com um homem (Antonio Fagundes) chegando à tal escola anunciando o seu fechamento. A escola não é apenas um internato voltado para meninas, como também é dirigida por mulheres. Esta relação de poder ainda é ilustrada pelo vínculo religioso que a instituição possui, com seu crucifixo pendurado na parede, a missa durante a tarde e uma sala de punições (embora a figura de um padre vivido por Ney Latorraca já indica que não pode ser levada a sério). Porém, o filme subverte todos os elementos que possui, quebrando regras e padrões de conduta, criando uma narrativa que começa séria, torna-se bem humorada e torna-se cada vez mais ácida no que se espera de uma escola para moças. No centro da trama estão Renata (Dina Sfat) e Miriam (Xuxa Lopes, que depois faria a obra-prima Sonho de Valsa com a diretora), as principais responsáveis por administrar a escola. Existe uma certa tensão entre as duas por conta de um professor (Fagundes), que fala declamando enquanto flerta com ambas, e rende reflexões sobre o desejo do trio. No entanto, existem muitas outras mulheres diante da câmera, as duas professoras veteranas, Nair (Nair Bello) e Muniza (Miriam Muniz), a equipe de limpeza (que conta com Cristina Pereira e Stela Freitas) e um bando de alunas barulhentas que estão bem longe de obedecer as normas de boa conduta da instituição (a mais conhecida é a Maria Padilha). O texto brinca um pouco com os conflitos geracionais destes grupos e existem várias provocações, conversas sobre sexo e musiquinhas com obscenidades além de posturas bastante lascivas dos homens presentes naquela escola (o médico, o zelador, o Othon Bastos e por aí vai...) criando uma narrativa que se distancia cada vez mais da realidade rumo à uma atmosfera onírica que se intensifica perto do final. Esta ideia de que tudo não passa de um sonho ou fantasia é o que faz com que o filme se liberte das convenções e enverede pelo tom caótico em vários momentos. Ana aproveita para fazer o que bem entende com o cenário que tem em mãos, da imagem de Cristo que fala com os personagens, das reflexões de Miriam (pérolas como "a vingança tem gosto de presunto cru", algo muito semelhante no que vemos na parceria seguinte entre Xuxa e Ana), da libido incontrolável da adolescência, do incêndio com as duas senhoras explicando que a vida tem de tudo, alguns personagens que flertam com a homossexualidade, bissexualidade e até a transexualidade, sem esquecer da rivalidade entre as duas administradoras, da professora inerte vivida por Cristiane Torloni ou a classe de Célia Helena ser preterida pela permissividade. Ana esgarça ainda mais o tom de absurdo com muita subversão, evocando a ideia do último dia de aula na escola quase cono o anúncio do apocalipse.  Seja nos diálogos ou nas ações, o filme compõe uma verdadeira ousadia que parece até perder as estribeiras em vários momentos. Se no primeiro filme a protagonista não sabia muito para onde ir, agora, Ana Carolina coloca suas mulheres indo para qualquer lugar. Vale lembrar que o filme foi lançado num período complicado do cinema brasileiro e, de certa forma, o fechamento da escola e a crise qie motiva isso, fizeram muitos analisarem que se tratava de uma simbologia com o cinema nacional pós-pornochanchada. Ver o filme por esta ótica lhe empresta ainda novas camadas e leituras quase trinta anos depois de seu lançamento. 

Das Tripas Coração (Brasil/1982) de Ana Carolina com Dina Sfat, Antonio Fagundes, Xuxa Lopes, Nair Bello, Myrian Muniz, Cristina Pereira, Maria Padilha, Ney Latorraca, Stella Freitas, Célia Helena, Eduardo Tornaghi, Cristiane Torloni e Patricio Bisso. ☻☻  

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