Christian ao centro: a verdade silenciada dói mais ainda.
Na lista de grandes surpresas do Oscar deste ano está a indicação do dinamarquês Thomas Vinterberg por seu último filme, Mais Uma Rodada (que concorre ao prêmio de filme estrangeiro). O cineasta se tornou famoso mundialmente em 1998 quando não apenas foi um dos idealizadores do movimento cinematográfico Dogma95 como foi o responsável pelo primeiro filme do movimento, o tão controverso quanto elogiado Festa de Família. Thomas tinha vinte e nove anos quando lançou o filme - apenas dois anos antes tinha marcado sua estreia em longa-metragem com o pouco falado Grandes Heróis. Quando Festa de Família estreou em Cannes as pessoas estavam bastante curiosas para saber como era um filme que seguisse os dez mandamentos do manifesto: "1 - A filmagem deve ser realizada no local, sem fornecer adereços ou cenários que não existam no próprio cenário; 2 - Som diegético apenas. Sons nunca devem ser produzidos, como música que não existam na cena; 3 - Todos as tomadas devem ser feitas na mão. Movimento, imobilidade e estabilidade devem ser alcançados manualmente; 4 - O filme deve ser colorido, sem iluminação especial. Se não houver exposição suficiente, uma única lâmpada pode ser acoplada à câmera; 5 - Não pode haver trabalho ótico ou filtros de lente; 6 - Nenhuma ação "superficial" (como assassinatos encenados, acrobacias elaboradas etc.); 7 - A alienação geográfica é estritamente proibida, o que significa que o filme deve acontecer aqui e agora; 8 - Sem filmes de gênero; 9 - 35mm é o único formato de filme aceito e 10 - Os diretores não devem ser creditados." Os mandamentos serviram de referência para obras de diretores do porte de Lars Von Trier, Harmony Korine, Lone Scherfig, Susanne Bier entre muitos outros ao redor do mundo e alcançou resultados variados (alguns bem sonolentos), mas nenhum deles foi tão acolhido como Festen. Para além da estética (que é quase um voto de pobreza) contra a artificialidade que o cinema havia tomado nas últimas décadas, o grande mérito do filme está no vigor com que Vinterberg conta a história de uma festa que começa como tantas outras e logo traz revelações assustadoras sobre o festejado. No aniversário de sessenta anos de Helge (Henning Moritzen) toda os seus parentes estão reunidos, incluindo seus pais e herdeiros, Michael (Thomas Bo Larsen), Helene (Paprika Steen) e Christian (Ulrich Thomsen) cuja irmã gêmea suicidou-se a pouco tempo. O que era para ser apenas um encontro com muita comida e bebida muda de tom quando o discreto Christian conta para mesa repleta de convidados que ele e sua irmã gêmea foram abusados sexualmente pelo pai várias vezes na infância. De início ninguém acredita muito no que ele diz. Desacreditado por todos, ele insiste na história duas, três vezes à mesa e as consequências são inevitáveis, provocando enfrentamentos com os familiares. Perante algumas outras informações que aparecem no filme, como o racismo explícito contra o namorado de Helene (com direito à uma música inconcebível cantada por quase todos) e o comportamento agressivo de Michael com esposa, irmãos, filhos... não fica difícil perceber existe algo escondido por trás da casca de bem estar e boa vida da família Klingenfeld. O filme prima pelo tom cru, desconfortável e urgente. Se a estética provocava curiosidade e estranhamento (estética que também foi absorvida por várias produções não "dogmáticas" que procuram dar uma atmosfera realista e quase documental à narrativa), ela não seguraria o filme somente com suas cores realistas e câmera na mão trêmula, Vinterberg sabe desde o início que o longa funciona pela sua essência: um drama familiar devastador. No entanto, troca o melodrama por um tom áspero que arranha os olhos, ouvidos e garganta. Por sua eficiência, o filme ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes, o Independent Spirit de Filme Estrangeiro e foi indicado ao Globo de Ouro. No Oscar o filme passou longe com seu estilo anti-Hollywood, mas Vinterberg filmou nos Estados Unidos seus dois filmes seguintes e se arrependeu. Caindo nas graças da crítica e do público novamente com o premiado A Caça/2012 (que concorreu ao Oscar de filme estrangeiro), Vinterberg prova que com dogma ou sem dogma ele sabe das coisas.
Festa de Família (Festen / Dinamarca - 1998) de Thomas Vinterberg com Ulrich Thomsen, Thomas Bo Larsen, Paprika Steen, Henning Moritzen e Trine Dyrholm. ☻☻☻☻
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