quinta-feira, 29 de setembro de 2022

NªTV: Killing Eve - 4ª Temporada / Final

Jodie: uma vilã quase heroína. 

Sinto quase uma obrigação de falar sobre a derradeira temporada de Killing Eve. Quando a série estreou, lembro que tudo girava em torno de Sandra Oh que ganhou vários prêmios pela temporada de estreia, no entanto, o melhor de tudo foi ver como a série ganhava corpo ampliando a história de seus coadjuvantes. Obviamente que Villanelle (Jodie Comer) não era coadjuvante, ela precisava apenas de tempo para que a personagem deixasse de ser uma assassina misteriosa para roubar a cena. Havia desde o início mais do que o interesse de Eve por aquela assassina perspicaz, existia em Eve uma admiração que era praticamente um culto e (por que não?) desejo. Esta atração entre as duas personagens sempre foi a força motriz da série, mas seria ingenuidade imaginar que no meio de tantas reviravoltas ela permanecesse. Durante as quatro temporadas ficou claro que Villanelle era apenas uma das peças a serem movimentadas pelo grupo misterioso chamado Os Doze. Não cabe dizer muito mais do que isso porque alguém pode não ter visto a série e eu estrague as surpresas. O fato é que Killing Eve fez o que pôde para manter nosso interesse. Fez Eve ser gata e depois rata nas garras de Villanelle e vice-versa. As duas discutiram a relação diversas vezes, puxaram para cá e para lá o verniz lésbico da série, renderam algumas das cenas mais tensas da história de televisão e algumas das mortes mais criativas também, além de pilharem corpos de coadjuvantes querido pelo caminho. No entanto, nesta quarta temporada tudo me soou meio óbvio, sendo não desinteressante somente pelas performances afiadas do elenco aliada à minha vontade de saber o que aconteceria com cada personagem. Devo dizer que Eve permanece perdida após ter perdido tudo em sua vida. Villanelle permanece a coisa mais interessante da série e Fiona Shaw já foi melhor aproveitada como Carolyn  em temporadas anteriores (especialmente antes de seu filho, o fofo Kenny vivido por Sean Delaney deixar a série). Há de se destacar ainda a figura paterna de Kim Bodnia como Konstantin, o mentor de assassinas que merece uma série só dele. Aqui existe várias novas personagens femininas que borram ainda mais a ligação dos 12 com a história de Carolyn até chegar ao último episódio anticlimático. Talvez o anticlímax fique por conta de ser difícil se despedir da série que começou com um fôlego gigantesco e aos poucos o perdeu frescor conforme a criadora Phoebe Waller Bridge (baseada nos livros de Luke Jennings) embarcou em novos projetos, assim como a roteirista Emerald Fennell (que foi até indicada ao Oscar por sua estreia como cineasta). O fato é que Killing Eve aos poucos foi se matando, até morrer nesta despedida previsível.

Killing Eve: 4ª Temporada - Temporada Final (EUA-Reino Unido) de Phoebe Waller Bridge com Sandra Oh, Jodie Comer, Fiona Shaw, Kim Bodnia, Anjana Vasan, Robert Gilbert e Camille Cottin. ☻☻

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

KLÁSSIQO: O Quarto do Filho

Moretti (à direita): Família feliz antes da tragédia.

No Festival de Cannes em 2001 concorriam à Palma de Ouro filmes que se tornaram icônicos, estavam lá Cidade dos Sonhos de David Lynch, O Homem que Não Estava Lá dos Irmãos Coen, Moulin Rouge de Baz Luhrman, A Professora de Piano de Michael Haneke e até Shrek tinha chances ao subverter o que conhecemos como contos de fada. Eis que quando a Palma de Ouro foi anunciada, a surpresa foi geral com o italiano O Quarto do Filho de Nanni Moretti levando para casa o prêmio máximo do Festival. Comparado aos demais concorrentes é até compreensível que o filme tenha tocado os votantes com sua história simples sobre um recorte doloroso na vida de seus personagens. Moretti sempre foi conhecido pelo seu senso de humor, mas aqui ele faz um drama pesado de uma família que por conta de um acidente, perde seu filho adolescente - e não há o que fazer a não ser acostumar-se com a devastadora ideia de que aquela amada pessoa se foi. Para sempre. Moretti deixa claro desde o início que seu filme trata de pessoas comuns, que trabalham, vão à escola e escutam reclamações por conta do mal comportamento do filho. A diferença está quando esta normalidade é rompida sem piedade pelo destino (e um dos melhores momentos do filme é quando compõe este anúncio da tragédia, com uma série de acontecimentos triviais que poderiam ter consequências diferentes, um caminhão que passa, um esbarrão na rua...). O Quarto do Filho é sobretudo sobre o luto e a necessidade de neste período complicado encontrar forças para continuar. A forma como cada um dos personagens encara este momento difícil é um diferencial do filme, enquanto a mãe fica devastada, a filha tenta seguir a vida e o pai tenta manter a calma, o que vemos são pedaços de uma família que precisam se reconectar para prosseguir. É verdade que o maior destaque fica por conta do pai psicólogo que passa boa parte do filme ouvindo os problemas das outras pessoas e agora não consegue lidar com os seus. Existe uma verdadeira crise instaurada no personagem que permanece até perto do final, quando uma nova personagem surge e cria a possibilidade de perceber que a vida continua em seus mecanismos imperceptíveis. O filme fica a maior parte do tempo buscando seu momento de catarse, mas ele nunca chega (o que mais se aproxima é aquele paciente vivido pelo estupendo Stefano Accorsi que surta no consultório do protagonista e temos a impressão que o pai gostaria de fazer a mesma coisa), não por acaso o filme termina diante de uma estrada, uma alusão à vida que permanece para os que ficam. 

O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio/Itália - 2001) de Nanni Moretti com Nanni Moretti, Giuseppe Sanfelice, Laura Morante, Jasmine Trinca, Stefano Accorsi e Sofia Vigliar. ☻☻

Na Tela: Não, Não Olhe!

 
Daniel, Keke e Brandon: culpa daquela nuvem. 

Jordan Peele continua sua cruzada por criar filmes em que mistura comédia e terror de forma original quando Hollywood preza cada vez menos pela originalidade. Assistir Não, Não Olhe! é um verdadeiro prazer a partir do momento em que não fazemos a mínima ideia para onde a história vai, especialmente por conta daquela cena de abertura que demora muito para que possamos entender a ligação que possui com a história principal. A trama conta a história de dos irmãos Haywood, OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) que possuem uma espécie de rancho responsável por adestrar cavalos para trabalhos cinematográficos. O negócio foi herdado logo depois que perderam o pai (Keith David) de forma inexplicável. OJ ainda parece meio fora de órbita depois do acontecimento, deixando que a irmã expansiva tome conta das situações - o que não impede que os negócios comecem a ter problemas. Nas mãos de Peele, paira sobre os dois uma sensação de que algo estranho está por perto e o filme fermenta esta atmosfera por praticamente uma hora, desenvolvendo os laços e suspeitas de seus personagens, além de acrescentar outros dois sujeitos que serão importantes no andamento dos fatos. Um deles é um ex-ator mirim, Ricky Park (Steven Yeun) que cresceu e agora tem um parque temático - aquela cena inicial que citei tem relação direta com ele (e a narrativa hesita o máximo possível em apresentar o que houve e quando revela é de uma brutalidade sugestiva arrepiante. Não duvido que esta história renda algum trabalho futuramente pelas mãos do diretor) e deixa o personagem banhado em uma complexidade que até após seu desfecho permanece um verdadeiro enigma. Outro personagem que aparece é Angel (Brandon Perea) o rapaz responsável por instalar as câmeras de segurança no rancho para descobrir o que está acontecendo por lá. Há quem diga que o filme é o menos engajado de Jordan Peele, mas esqueceram de notar que por baixo de tudo existe uma alegoria sobre a forma como Hollywood colocou debaixo do tapete os cowboys negros dos EUA, aspecto que rende cada vez mais filmes atualmente. Assim, não é por acaso, que o casal de irmãos seja tataraneto do negro que montava um cavalo na primeira imagem registrada por uma câmera na história do cinema. No entanto, Nope tem relação com outro gênero cinematográfico: a ficção científica. Mas ao invés de explorar mais uma vez os discos voadores e seus alienígenas (e o filme brinca bastante com isso com bastante estranheza), opta por algo totalmente novo na abordagem de OVNIs, criando uma gostosa sensação de presenciar a criatividade de Peele na tela. Peele subverte as expectativas do espectador e nos presenteia com uma estética envolvente, assim, junta-se ao colorido e à trilha sonora uma plasticidade que impressiona, até mesmo nos detalhes mais aterradores (as chaves, as nuvens, o banho se sangue sobre a casa, o interior da ameaça que paira por ali...). Não, Não Olhe! (título que como disse a Isabela Boscov merece o troféu "Ai Caramba" do ano)  dificilmente será lembrado nas premiações como Corra! (2016), mas ficará na memória de quem buscava uma obra repleta de originalidade nos cinemas de 2022. 

Não, Não Olhe! (Nope/EUA-2022) de Jordan Peele com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yeun, Brandon Perea, Michael Wincott, Terry Notary e Keith David. ☻☻☻☻

domingo, 25 de setembro de 2022

PL►Y: Garotos de Bem

Os garotos: a sujeira debaixo do tapete. 

Em cartaz na Netflix, o italiano Garotos de Bem é um dos filmes mais incômodos que já assisti. Eu já imaginava isso, já que o filme é baseado em um crime real acontecido entre os dias 29 e 30 de setembro de 1975 que ficou conhecido como Massacre de Circeo. O crime gerou tanta polêmica na Itália que alterou a legislação penal do país após um longo debate que só foi concluído em 1996. A história desta atrocidade é contada no livro La Scuola Cattolica de Edoardo Albinati que ganhou esta versão cinematográfica pelas mãos de Stefano Mordini. Os protagonistas do filme são os jovens alunos de uma renomada escola católica de classe média na Itália. A escola só para garotos é vista como sinal de status e opção para deixar os jovens fora dos perigos das ruas (embora muitos tenham aspiração neofascista). O narrador do filme deixa claro que debaixo de tanta repressão, existe um bocado de inconveniências que são abafadas. Entre as diversas situações que aparecem envolvendo os personagens do filme, fica a impressão que o roteiro não gasta tempo desenvolvendo a personalidade daqueles personagens, deixando todos muitos parecidos, seja em sua situação familiar, aparência física ou amoralidade. Existe aqui muito material que deixou de ser explorado (o estudante que fantasia usar sua espada de samurai na própria família, o rapaz que fica excitado ao ser açoitado por seus amigos, o colega que gasta o tempo sendo amante das mães ricaças da vizinhança, uma fala sobre fascismo aqui, uma fala relativista sobre religião ali...). A coisa piora quando os limites passam a ser ultrapassados de forma cada vez mais constante até que duas jovens são sequestradas por um trio de estudantes e o filme se torna insuportável nas cenas de maus tratos que são exibidas sem firulas. Ao menos o diretor Stefano Mordini sabe trabalhar com o poder da sugestão e deixa tudo ainda mais tenebroso com o uso de sons e maquiagem de suas atrizes, além da nudez de seu elenco masculino e feminino. Falando em nudez, achei bastante fetichista a forma como o filme explora os corpos de seus jovens atores masculinos, brancos e esguios. Existe um motivo para isso, a ideia da juventude, do corpo ainda em desenvolvimento, da masculinidade em desenvolvimento (ainda que seguindo o caminho mais tóxico e criminoso possível), deixando o erotismo para as cenas coletivas da escola e deixando a nudez para momentos que são apenas degradantes. Arrastado em alguns momentos, raso na apresentação dos personagens, o filme vale pela discussão que levanta em como crimes calcados em feminicídios obtinha uma interpretação estranha para a lei italiana e para isso, expõe a ferida de forma dolorosa diante da câmera. 

Garotos de Bem (La Scuola Cattolica/ Itália - 2022) de Stefano Mordini com Leonardo Raggazzini, Benedetta Procaroli, Gulio Fochetti, Giulio Pranno, Alessandro Cantalini,  Guido Quaglione, Valeria Golino e Valentina Cervi.  ☻☻

sábado, 24 de setembro de 2022

PL►Y: Boa Noite, Mamãe

 
Cameron, Naomi e Nicholas: arrepios em família. 

Sei que muita gente torce o nariz para a minha resenha do filme austríaco Boa Noite, Mamãe (2014), relendo hoje acho que realmente fui muito severo com os problemas que identifiquei na execução do filme, especialmente em sua conclusão. Achei engraçado que os aspectos que não curti parecem ter sido os mesmos que os envolvidos  (incluindo a dupla de diretores do original Veronika Franz e Severin Fiala que assinam como produtores) nesta refilmagem também não gostaram e resolveram aparar algumas arestas. É verdade que o fato do filme ser uma refilmagem faz com que pague o alto preço da originalidade, mas, embora tenha assistido o original já a algum tempo, percebi algumas diferenças que alteram bastante o meu estado de espírito quando chegamos ao final. Nem vou calcar minha escrita na grande surpresa do filme que parece ter sido jogada fora por M. Night Shyamalan, a graça mesmo (para quem conhece o filme original) é ver como o filme consegue driblar a percepção do espectador enquanto segura a narrativa por uma hora e meia. Existe aqui, tal e qual no original, um jogo de ilusionismo onde o verdadeiro segredo do filme está ali diante dos nossos olhos o tempo inteiro, mas o roteiro teima em sugerir que existe outro muito mais perigoso diante dos personagens. A ideia aqui é a mesma: dois meninos (Cameron e Nicholas Crovetti) vão passar um tempo com a mãe (vivida agora pela grande Naomi Watts) que acaba de passar por uma cirurgia no rosto. Ela vive com o rosto coberto para evitar complicações e, devido a algumas situações, as crianças começam a desconfiar que aquela mulher não é quem diz ser. Seria uma sequestradora? Uma impostora? Uma intrusa? Uma alienígena invasora de corpos? As suspeitas nutre a tensão que só cresce até que o desfecho chega. Esta versão americana dirigida por Matt Sober tem um tom menos sinistro que o original, mas consegue atribuir novos elementos na história para deixar tudo mais redondinho. Explora a figura paterna (ainda que pouco), oferece uma história para a mãe para além daquele momento de reclusão e oferece pistas do que está realmente está acontecendo de forma a confundir ainda mais o que está aparente e o que está escondido. Temos a ideia de uma estrela em decadência, do medo do envelhecimento, da solidão, do ostracismo, o fantasma do divórcio... a protagonista ganha novas nuances que torna sua angústia ainda mais rica e palpável do que a presente no original - que era muito mais dependente do olhar dos filhos. No entanto, a grande diferença está mesmo no final, que é mais agridoce, sofrido e até mais arrepiante que o original. A ideia da mãe atormentada com cicatrizes expostas ainda funciona bem para os dias amargos vividos por aquela família e Naomi Watts tem seu melhor trabalho em muito tempo (especialmente quando precisa expressar todas as suas emoções apenas com os olhos), mas ela também está muito bem acompanhada pelos gêmeos Cameron e Nicholas Crovetti (que já demonstraram talento na série Big Little Lies/2017). Sei que muitos irão me tacar pedra, mas achei o filme melhor executado que sua fonte inspiradora. 

Boa Noite, Mamãe (Good Night, Mommy / EUA - 2022) de Matt Sober com Naomi Watts, Nicholas Crovetti, Cameron Crovetti, Peter Hermann, Jeremy Bobb e Crystal Lucas-Perry. ☻☻

PL►Y: Paris, 13º Distrito

 
Noémie e Makita: o amor em tempos pós-modernos. 

Nos últimos tempos Jacques Audiard optou por realizar filmes densos, seja qual fora  temática que escolher. Fez a obra-prima criminal moderna O Profeta (2009), mergulhou na intensidade quase melodramática do romance em Ferrugem e Osso (2012) e até abordou o drama de refugiados em Dheepan (2015). Todos eles exibidos em Cannes, todos elogiados e reconhecidos internacionalmente. Ano passado foi a vez dele colher elogios com Paris, 13º Distrito que está em cartaz na MUBI e que opta por uma atmosfera bem mais leve que seus filmes anteriores - mas isso não quer dizer que seja menos interessante. Tudo começa quando Émilie (a estreante Lucie Zhang) decide alugar um quarto de seu apartamento e aparece o professor Camille (Makita Samba). Ela fica surpresa, já que esperava por uma mulher para dividir as despesas, mas não demora muito para que ela acabe se envolvendo com o rapaz. Só que Camille está longe de querer um relacionamento sério com a colega de apartamento, o que começa a gerar conflitos que só pioram quando ele se interessa por uma professora de sua escola. Quando você se acostuma com os dilemas da dupla de amantes, o filme apresenta outra personagem, Nora (Noémie Merlant), estudante de direito que começa a ser confundida com Amber Sweet (Jenny Beth) uma porn star da internet e começa a sofrer as consequências disso. Aos poucos o filme entrelaça a vida destes personagens demonstrando várias possibilidades de romanceo, sem julga-los ou utilizar discursos moralistas, a câmera parece documentar a vida daquele microcosmos seja em momentos triviais ou de grande intimidade. Com personagens que estão longe de ser clichês ambulantes, a narrativa flui com uma leveza impressionante e deixa até saudade quando o filme termina. Audiard conta esta história numa vizinhança que conhece bem (já que morou no bairro que dá nome ao título original, o Les Olympiades) e opta por não mostrar lugares comuns do cinema francês, não existe o Rio Sena ou a Torre Eiffel, mas um grupo de personagens que caminham em ambientações que poderiam facilmente ser confundidas com lugares de diversos espaços do mundo. Os cenários ficam por conta dos prédios, do metrô, uma universidade, uma boate, um call center... e a fotografia em preto e branco deixa a sensação de que ele resolveu fazer um exemplar da nouvelle vague com a cara dos relacionamentos do século XXI, afinal, falando de relacionamentos existe a busca constante por  romance temperada com bastante erotismo. A ideia de contar uma história atual também se percebe no elenco multirracial que estrela o filme e, aparentemente, o longa pode não ter o impacto dos outros trabalhos do diretor, mas em suas mãos, o que poderia ser só mais um filme moderninho fica com a maior cara de obra de arte. 

Paris, 13º Distrito (Les Olympiades / França - 2021) de Jacques Audiard com Lucie Zhang, Makita Samba, Noémie Merlant, Jennye Beth e Camille Léon-Fucien. ☻☻☻☻

4EVER: Louise Fletcher

22 de julho de 1934✰24 de setembro de 2022
 
Nascida no Alabama, filha de um ministro episcopal, Estelle Louise Fletcher começou a atuar devido à influência de uma tia que a criou após o falecimento de seus pais. Depois que se formou na Universidade da Carolina do Norte, ela partiu em uma viagem junto com um grupo de amigas e foram parar em Los Angeles. Sem dinheiro para voltar para casa, começou a trabalhar como recepcionista e ter aulas de atuação à noite. Ela começou a atuar em programas de TV ao final dos anos 1950 e casou com um produtor - tendo dois filhos que deixaram sua carreira em segundo plano por algum tempo. Redescoberta por Robert Altman aos 40 anos, ela ganhou atenção de Milos Forman que a convidou para fazer a lendária enfermeira Ratched no clássico Um Estranho no Ninho (1975). O trabalho lhe rendeu o Oscar de melhor atriz e um lugar constante na galeria de maiores vilões do cinema. Embora os olhos intensos da atriz tenha ficado fora do radar da Academia desde então, a atriz foi indicada duas vezes ao Emmy e seu currículo conta com mais de 130 produções, incluindo consagradas séries de TV como Perry Mason (1960), Star Trek: Deep Space Nine (1993-1999), Contos da Cripta (1991), Plantão Médico (2005) e Shameless (2011). 

domingo, 18 de setembro de 2022

PL►Y: O Homem Ideal

 
Dan e Maren: quando o homem perfeito não agrada.

Em seu terceiro longa-metragem a diretora alemã Maria Schrader revisita uma ideia que já foi usada várias vezes: um robô capaz de satisfazer os desejos de uma mulher. Nos anos 1980 ele tinha a cara de John Malkovich (Construindo um Cara Certinho/1987) nos anos 2000 era a cara do Jude Law (o Gigolo Joe de Inteligência Artificial/2001) vinte anos depois a ideia está de volta com a cara do Dan Stevens - que perdeu peso e ficou sarado depois de falecer na série Dowton Abbey e migrar para as telas de cinema. A prova de que a ideia ainda funciona são os prêmios e as críticas positivas que o filme recebeu, além do sucesso de público que comprou a ideia mais uma vez. Talvez a maior diferença entre o robô que aparece aqui e os seus anteriores é que este surge num tempo em que o apreço à tecnologia é maior do que nunca na história da humanidade e, em alguns momentos, se você trocar o robô por um celular a ideia não parece tão distante. O filme foi o escolhido da Alemanha para conseguir uma vaga na categoria de melhor filme internacional, mas acabou ficando de fora, provavelmente pela sensação de déjà vu que por mais gracioso que o filme possa ser, torna-se inevitável. O filme é ambientado em um futuro próximo em que Alma (Maren Eggert), uma workaholic um tanto mal humorada, resolve testar um invento revolucionário: um robô, chamado Tom (Dan Stevens) capaz de ser tudo aquilo que ela deseja em um homem. O problema é que enquanto a máquina de última geração faz de tudo para agradar, ela parece estar disposta a não ser nem um pouco agradável com ele, afinal, como ela repete o tempo todo, ele é uma máquina e não possui sentimentos. Sendo assim, o filme se torna uma comédia romântica de uma piada só: já que em momento algum ela parece estar disposta a ter um relacionamento, seja com o simpático Tom ou com uma pessoa de verdade. A coisa complica se você imaginar que Tom foi composto com tudo que ela idealiza num homem (da inteligência ao formato do genital) e mesmo assim, ele não é possível de agradá-la. Obviamente que lá pelas tantas iremos entender o motivo de Alma hesitar mergulhar em relacionamentos, mas a pergunta de porque diabos ela foi se meter num experimento destes se não estava afim de colaborar não acaba mesmo depois dos créditos finais. Lembrei de alguns momentos de terapia em que eu era questionado por me aplicar demais ao trabalho para não perceber coisas na minha vida pessoal que me desagradava e a forma como por vezes nos fechamos e depois reclamamos da solidão. O Homem Ideal ainda tem aquele final deliciosamente contraditório, em que Alma sela de vez sua opinião negativa sobre robôs capazes de nutrir nossas carências para depois, bem... você verá. No fim das contas, fica a óbvia resolução de que homens ideais não existem, assim como mulheres ideias também não. 

O Homem Ideal (Ich bin dein Mensch / Alemanha - 2021) de Maria Schrader com Maren Eggert, Dan Stevens, Sandra Hüller, Jürgen Tarrach, Hans Löw e Inga Busch. ☻☻ 

CATÁLOGO: Cabaré Biblioteca Pascal

Mona e seus literatos: colagens de gêneros. 

Podemos dizer que a Hungria deu uma surtada quando selecionou para representar o país numa vaga ao Oscar de filme estrangeiro o esquisitíssimo Cabaré Biblioteca Pascal. Longe de mim dizer que o filme é ruim, já que em toda a sua estranheza o filme prende a atenção com suas maluquices, mas a Academia jamais o selecionaria entre os cinco integrantes da categoria. No entanto, se houvesse uma categoria para criatividade e ousadia, provavelmente o  filme de  Szabolcs Hajdu ganharia com louvores pelo cruzamento inusitado da atmosfera dos filmes de Pedro Almodóvar com David Lynch. Ao cineasta espanhol, o filme deve muito de sua dramaticidade que beira o exagero e ao americano, o filme herda o tom onírico que abraça o surrealismo sem pudores. A trama conta a história de Mona (Orsolya Török-Illyés) que vive pelas ruas da Hungria e que tem o desafio de convencer um assistente social de que tem condições de ficar com sua filha pequena após deixar um período com sua tia. Para tanto, ela precisa contar os acontecimentos que vivenciou nos últimos tempos e que explicariam seu distanciamento da menina por aquele período. Eis que Mona conta como conheceu o pai de sua filha, a forma como ela o perdeu, além do encontro derradeiro com seu pai - que sem maiores justificativas a entrega para a mercadores de escravas sexuais. Eis que ela chega no Cabaré do título. Localizado em Liverpool, os cultos cliente de luxo nutrem fantasias com personagens clássicos da literatura (que vão de Desdemona de Shakespeare, passando por Lolita e até Pinóquio). Trancafiada em seu quarto e tratada como objeto sexual, ela vivenciará um bizarro pesadelo enquanto aguarda ser livre novamente. Ao longo do filme, Szabolcs Hajdu faz questão de embaralhar realidades e fantasias sem deixar claro se o que Mona conta é verdade ou apenas um arremedo de histórias para comover o assistente social que está diante dela. Seja real ou imaginário, a história contada por ela, dá margem a várias leituras e analogias de sua conturbada trajetória. O resultado é instigante em toda sua mistura entre o colorido e o sombrio, lembrando em alguns momentos as colagens de gênero feitas pelo cineasta Leos Carax (Holy Motors/2012 e Annette/2021). Dado o conteúdo sexual (e o senso de humor um tanto irregular da produção), o filme não é para todos os gostos, mas quem se aventurar por esta produção poderá sentir-se até gratificado com a narrativa estranhamente envolvente. 

Cabaré Biblioteca Pascal (Bibliothèque Pascal / Alemanha - Hungria - Romênia - Reino Unido) de Szabolcs Hajdu com Orsolya Török-Illyés, Oana Pellea, Razvan Vasilescu, Andi Vasluianu, Shamgar Amram e Orion Radies. ☻☻☻

PL►Y: A Felicidade das Pequenas Coisas

 
Pem Zam (à frente) e sua colega: presença luminosa. 

Talvez a maior surpresa do Oscar 2022 tenha sido a indicação ao Oscar de Lunana, representante do Butão enviado à Academia e que desbancou favoritos como Um Herói de Asghar Farhadi e Compartimento nº6 da Finlândia. O melhor desta surpresa é que o Butão é um país com produção cinematográfica minúscula e com distribuição internacional menor ainda (levanta a mão quem já assistiu a um filme do país), sendo assim, não é difícil imaginar que esta é a primeira produção butanesa a ser indicada ao Oscar de filme estrangeiro, o que cumpre uma função cultural importante que a Academia hollywoodiana toma para si: dar destaque a obras que dificilmente conheceríamos sem a projeção que seus holofotes oferecem.  O Butão é um país que fica entre as montanhas da Índia e da China, sua extensão territorial é menor do que alguns estados brasileiros e sua população é inferior a de algumas cidades tupiniquins. Nem vou entrar nos méritos que Lunana é superior ou inferior aos seus oponentes que ficaram de fora, o mais interessante é entender como a produção cravou o número de votantes suficientes para figurar entre os cinco finalistas na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. O que considero mais importante é a ideia do apelo universal que a história possui, afinal, retrata um jovem butanês (Sherab Dorji) que ama música e quer ir para a Austrália se tornar um cantor famoso, mas, enquanto a oportunidade não chega, ele leciona em uma escola butanesa sem a mínima vontade. Ele está tão desanimado com o ofício de professor que decide largar o contrato obrigatório antes do término (o contratato é obrigatório no país e sua desistência beira uma ofensa na região), assim ele recebe uma espécie de castigo ao ser enviado para Lunana, a escola mais afastada do Butão e, talvez, a com maior dificuldade de acesso do mundo. Ao ver o trajeto do professor até chegar lá (uma longa jornada por vales, montanhas e rios ao longo de oito dias) descobrimos o motivo de outros professores não irem para lá. O fato é que o professor é um jovem antenado que vide na capital do seu país e o contraste com aquela comunidade rural isolada nas montanhas parece dificultar ainda mais as coisas para o seu lado, ou pelo menos até que ele passe a se encantar com as crianças da região que percebem nele a oportunidade de aprender e ele nota a possibilidade de fazer a diferença na vida delas (especialmente a luminosa Pem Zam, uma das crianças mais graciosas que já apareceram diante de uma câmera). Ele começa a ter contato com as moradores mais velhos da região e com canções antigas da localidade, fazendo com que seu olhar mude sobre tudo o que está ao seu redor. No entanto, a ideia de conquistar fama em outro país permanece e rende aquelas cenas de partir o coração, especialmente aquela última que demonstra como toda aquela vivência mudou suas perspectivas mais do que ele imaginava. Feito para abalar os corações mais céticos do universo, não é por acaso que o filme recebeu no Brasil o título de A Felicidade das Pequenas Coisas, nome que embora genérico, abraça bem a ideia do filme sobre sua identidade, seus sonhos e das lembranças nos momentos em que nos sentimos deslocados no mundo. O Oscar pode não ter ido para o Butão, mas fica a lição de como fazer um filme simples e emocionante para plateias mundiais. 

A Felicidade das Pequenas Coisas (Lunana / Butão - 2021) de Pawo Choyning Dorji com Sherab Dorji, Ugyen Norbu Lhendup,  Kelden Lhamo Gurung e Pem Zam. ☻☻☻

sábado, 17 de setembro de 2022

§8^) Fac Simile: Julianne Moore

Julie Anne Smith

No mundo fluído da fama, Julianne Moore é praticamente uma unanimidade, considerada uma das melhores atrizes em atividade no mundo, ela é uma das poucas atrizes que possui os principais prêmios do cinema mundial e continua na atividade após 38 anos de carreira e impressionantes 62 anos de  idade. Casada com o cineasta Bart Freundlinch desde 2003 e com um casal de filhos (Caleb e Liv), Julianne é quase uma anticelebridade quando se trata de falar de sua vida pessoal - de forma que nosso repórter imaginário conseguir esta entrevista (que nunca aconteceu) é praticamente um milagre:

§8^) Em primeiro lugar quero dizer que sou um grande fã do seu trabalho! Você é uma das melhores atrizes do mundo e como se sente sendo premiada com Oscar, Globo de Ouro, no Festival de Berlim, Cannes, Veneza, Independent Spirit, SAG Awards...

Julianne Em primeiro lugar obrigada por sua admiração. Em segundo, falando assim até eu fico assustada [risos]. É verdade, preciso de uma estante enorme em minha casa para guardar todos os meus prêmios e por muito tempo tive que evitar que as crianças brincassem ali por perto... mas não é algo que penso sempre que chego numa filmagem. O frio no estômago permanece. 

§8^) Você ainda sente este frio no estômago até hoje?

Julianne Sempre [risos], estou sentindo agora. Fico muito desconfortável em entrevistas, estreias, filmagens, eu não chamaria de insegurança ou medo, mas é algo de quem ainda deixa espaço para imprevistos e que algo inesperado possa acontecer. De certa forma isso até alimenta um pouco o meu trabalho, manter o controle na atuação é deixar tudo um pouco engessado, por vezes é melhor deixar a emoção tomar conta. 

§8^) Por muito tempo você esteve na lista de pessoas mais indicadas ao Oscar que nunca o levaram para casa. Foram quatro indicações até que você finalmente fosse premiada por Para Sempre Alice (2014) e muita gente considera que você teve trabalhos mais impressionantes até ali. Você concorda?

Julianne É estranho dizer se concordo ou não, porque não é uma escolha minha, mas dos votantes. Mas considero que tive ótimos papéis em minha carreira que poderiam ter me rendido uma estatueta, mas eram trabalhos um tanto transgressores. Na minha primeira indicação eu era uma diva do cinema pornô, na segunda eu era uma esposa adúltera, na terceira uma grávida suicida e junto com a quarta uma mulher que se apaixona pelo jardineiro negro nos anos 1950. Aí as pessoas ressaltam que não fui indicada quando fiz uma lésbica ou uma atriz maluca e que ganhei por ser uma professora mãe de família que está com Alzheimer precoce. Eu vejo uma lógica em tudo isso... eu gosto de todos estes trabalhos, os outros que os classificam e categorizam, eu apenas dou vida a estas mulheres incríveis. 

§8^) É verdade que você encontrou a fonte da juventude?

Julianne Eu adoraria, principalmente pela sociedade e o cinema serem mais cruel do que o tempo com as mulheres que envelhecem. Não sei por quanto tempo ainda terei papéis interessantes no cinema, mas sempre farei o melhor que posso. 

§8^) E houve um papel que você não gosta de lembrar?

Julianne Não... mas... talvez não por conta do papel, mas pela confusão que foi. Tive muitos problemas ao viver a Clarice Starling em Hannibal (2000), havia aquele peso enorme de ter sido um marco no cinema e na carreira de Jodie Foster, ela ganhou o Oscar por aquele trabalho e eu era sempre preterida... enfim, houve muita expectativa, especulação, tive que fazer um trabalho muito complicado e aceitar que eu não era a Jodie, que aquela era a Clarice em outra fase da vida, em outra história... foi bastante sofrido, mas o filme foi um sucesso de bilheteria e tem algumas cenas que eu aprecio bastante. Não aquela do banquete com miolos, eca!

PL►Y: Querido Evan Hansen

Ben Platt: cantando sobre saúde mental. 

Imaginar um musical que gira em torno de temas como saúde mental e suicídio parece um tanto estranho mesmo em tempos em que já vimos praticamente de tudo na tela grande. Pois foi com esta matéria-prima que Dear Evan Hansen se tornou um sucesso na Broadway em 2016, principalmente pelo seu elenco e a performance de Ben Platt - que foi agraciado com o Tony por seu trabalho. O sucesso carimbou o passaporte do ator e cantor para o estrelato, fazendo com que estrelasse série na Netflix (The Politician) e filmes em Hollywood. Portanto, nada mais natural que ao anunciarem a adaptação cinematográfica de Querido Evan Hansen alguns envolvidos batessem o pé para que Ben fosse o protagonista. Ironicamente, muitos críticos apontaram a presença do ator um dos maiores problemas desta adaptação, afinal, Ben tinha 26 anos na época das filmagens, praticamente, dez anos a mais do que o personagem principal, um adolescente com ansiedade social e que necessita de acompanhamento médico para manter a sua saúde mental. É visível o esforço de Ben para convencer no papel que já lhe é bem familiar, não por conta de transparecer os dilemas do personagem, mas porque a linguagem cinematográfica é bastante cruel em sua proximidade para evidenciar o que no teatro poderia ser imperceptível: a idade de seu ator principal. Ciente de que o olhar, a voz, a postura e o gestual talvez não dessem conta do rejuvenescimento do ator, apelaram para uma maquiagem que parece estranha até que você decida não dar importância para ela. Assim, Ben vive os dilemas de um adolescente que é solicitado pelo terapeuta a escrever uma carta para si mesmo e, por acidente, acaba a imprimindo na escola e deixando que ela caia nas mãos de um colega bastante agressivo, Murphy (vivido por Colton Ryan). Acontece que Murphy também possui sua cota de mazelas para administrar e, sem dar conta delas, se suicida deixando que a tal carta seja encontrada e confundam Hansen com seu melhor amigo. Começa então uma grande mentira que fará de Evan Hansen uma celebridade local, com direito a campanhas e tudo mais, além de uma colateral aproximação com a família do falecido. Dito tudo isso, fica a ideia de um drama pesado na cabeça do espectador, mas se você lembrar que subitamente o elenco irá cantarolar suas angústias a coisa fica estranha - afinal, na Broadway a ideia pode funcionar, na telona... a artificialidade da proposta fica bastante desconfortável. No entanto, vale destacar alguns pontos que evidenciam o que há de bom na história: a ideia das redes sociais para aproximação das pessoas, mas também para o massacre de indivíduos que passam a ser julgados por isso ou aquilo, a necessidade de uma geração em tornar tudo público (ainda que seja um segredo), a ideia ilusória de que você só importa se for for popular (o que só confunde as inseguranças vinculadas à sua autoestima), além de como o seu estado mental pode ser disfarçado com sorrisos ou agressividades. No entanto, ao optar por sua versão branda de tudo o que abraça, Querido Evan Hansen nunca atinge as notas que almeja. Resta o esforço de Ben e a atuação de Julianne Moore que percebe o abismo em que seu filho mergulha lentamente. Não é o desastre que anunciaram, mas é um filme muito esquisito. Ainda acho que a direção de Stephen Chbosky (de As Vantagens de Ser Invisível/2012 e Extraordinário/2017), contribui para a coisa não desandar de vez, mas deixa a impressão que o rapaz está se repetindo filme após filme e perdendo o fôlego cada vez mais. 

Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen/ EUA - 2021) de Stephen Chbosky com Ben Platt, Julianne Moore, Amy Adams, Kaitlyn Dever, Amandla Stenberg, Colton Ryan e Nik Dodani.  



terça-feira, 13 de setembro de 2022

4EVER: Jean Luc Godard

03 de dezembro de 193013 de setembro de 2022

Em 91 anos de vida, o francês Jean Luc Godard produziu mais de 127 filmes - seja em preto e branco ou em 3D. Representante do movimento da Nouvelle Vague do cinema francês e ganhador de inúmeros prêmios internacionais, o cinema de Godard através do tempo deixou de ser sobre contar histórias e mais sobre fazer História, com seus filmes não narrativos e banhados cada vez mais de reflexões e filosofia seja sobre o mundo e a própria forma como enxergamos o cinema. Seus filmes criavam inovações que muitas vezes eram considerados defeitos pelos tradicionalistas, mas aos poucos, eram incorporados ao cinema comercial. Seu cinema era mais do que autoral, era político, contestador, vanguardista e, por isso mesmo, muitas vezes era incompreendido. Diretor de clássicos como Acossado (1960), Uma Mulher é Uma Mulher (1961), O Desprezo (1963) até chegar aos filmes-ensaios derradeiros como Adeus à Linguagem (2014) em 3D e  Palavra e Imagem (2018). Filho de um médico que trabalhava na Suíça e neto de um banqueiro suíço, antes de se dedicar ao cinema, Godard formou-se em Etimologia na Universidade de Paris e vivia recluso nos últimos anos. A causa da morte não foi revelada pela família. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

PL►Y: Boa Sorte, Leo Grande.

 
Emma e Daryl: mais do que encontros sexuais. 

Eu prometo não comentar sobre a quantidade de filmes que a premissa de Boa Sorte, Leo Grande me fez lembrar. Afinal, a história passada no encontro de dois estranhos num quarto para satisfazer desejos sexuais já foi utilizada várias vezes, seja no cinema ou no teatro. A grande maioria está preocupada em mexer com as fantasias do espectador e, por vezes, conseguem dar profundidade a seus personagens a partir do que se agrega ao sexo como ponto de partida. No entanto, poucas vezes vi um filme conseguir soar tão terno e sincero como Boa Sorte, Leo Grande. Apesar do roteiro atriz inglesa Katy Brand deixar a primeira impressão de que foi feito para o teatro (dois personagens dialogando em um cenário específico a maior parte do tempo), a diretora australiana Sophie Hyde sabe como utilizar esta aparente limitação para um tom mais intimista, como se o mundo lá fora não existisse, mas ainda assim se fazer presente deixando tudo mais revelador sobre os dois personagens que tem em mãos (e defendidos muito bem pelo seu casal de atores). O filme gira em torno dos encontros de Nancy Stokes (Emma Thompson) com um garoto de programa, Leo Grande (Daryl McCormack). Nancy é uma professora com filhos crescidos e que em toda a sua vida teve apenas um parceiro sexual: o esposo. Viúva e sem ter tido um orgasmo na vida, ela considera que já está na hora de saber o que é ter prazer no sexo. No entanto, quando ela se depara com o jovem Leo, seu desconforto é visível. O peso de anos de uma educação conservadora acerca de sua feminilidade é visível. Ela pensa em desistir várias vezes. Conversa sobre assuntos variados. Gagueja. Engasga. Tropeça. Hesita... ainda que esteja muito curiosa em saber como é ter relações com um homem atraente feito Leo. Ele por sua vez, deixa claro que está ali para mais do que fazer sexo, parece que deixar Nancy confortável com tudo aquilo é uma de suas prioridades. Talvez por conta de ter ali uma cliente fixa, ou por conta do desafio de seduzir uma mulher mais velha, ou apenas por querer fazer alguém se sentir confortável consigo mesmo. O filme se desenvolve com a bela dinâmica estabelecida entre os dois personagens e, por vezes, os dois parecem trocar de papéis, seja pela relação de poder ou cumplicidade que se instaura naquele quarto, ou por conta das inseguranças que são tocadas aqui e ali. Aparentemente simples, Boa Sorte, Leo Grande funciona principalmente por conta de sua dupla principal, Daryl McCormack (que pode ser visto na série A Roda do Tempo) prova que é mais do que um colírio para os olhos e oferece uma personalidade cheia de camadas para seu personagem. Terno, educado, envolvente, sedutor e emotivo, a transição de seu personagem torna o filme ainda mais rico no contato com a experiente Emma Thompson, que merece comentários a parte pela coragem em cena. Oscarizada por sua atuação em Retorno a Howard's End (1992) e pelo roteiro de Razão e Sensibilidade (1995) a atriz foi indicada outras três vezes pela Academia, mas anda esquecida por ela desde 1996. A coragem com que oscila entre o drama e a comédia em sua concepção desta inibida Senhora Robinson numa jornada de autoconhecimento é digna de prêmios, se levarmos em conta então sua última cena (uma nudez frontal aos 63 anos de idade) teremos certeza que Emma é uma das atrizes mais destemidas em atividade no cinema atual. A cena não é vulgar, gratuita ou debochada. É uma verdadeira ode ao tempo, à feminilidade e à autoestima. 

Boa Sorte, Leo Grande (Good Luck to you, Leo Grande - EUA / Reino Unido) de Sophye Ryde com Emma Thompson, Daryl McCormack e Isabella Laughland. ☻☻☻

PL►Y: O Peso do Talento

Pascal e Cage: talento em boa companhia.

Acho que a esta altura já é de domínio público a crise financeira de Nicolas Cage que o fez topar fazer qualquer projeto que lhe caísse nas mãos para saldar suas dívidas, afinal, proporcional ao seu talento, somente a sua inabilidade em controlar as finanças. No entanto, uma verdadeira legião de fãs fieis mantiveram seu nome em evidência até nos piores momentos deste ator oscarizado. Claro que no meio de tantos projetos indignos de nota, algumas vezes Nicolas demonstrava ser o mesmo ator inspirado de antes. Parece que a má fase do ator já passou, as dívidas já foram quitadas e agora ele pode ser mais criterioso em suas escolhas, basta ver seu trabalho em PIG (2021) no ano passado, que quase o levou novamente ao Oscar (e injustamente acabou ficando de fora). Nesse ano ele voltou a uma produção de grande estúdio com este O Peso do Talento em que o trailer já deixava claro que o tom de galhofa iria predominar. Cientes de que Cage é capaz de tudo, o público ficou bastante curioso em ver o ator vivendo a si mesmo na tela em meio à uma baita presepada. Obviamente que Cage vive uma versão de mentirinha de si mesmo, mas as brincadeiras com sua vida pessoal estão todas ali, some isso às brincadeiras com suas conversas cerebrais sobre cinema e literatura com a filha adolescente (Lily Sheen), os conflitos com a esposa (Sharon Horgan), a frustração de perder um projeto sério para um jovem ator e a necessidade de topar trabalhos obscuros para pagar boletos (muitos boletos). Ser astro em Hollywood desde os anos 1980 não é para qualquer um (e você pode contar nos dedos quantos permanecem relevantes depois de tanto tempo no século XXI). Cage recebe de seu agente (Neil Patrick Harris) o convite de se encontrar com um bilionário (Pedro Pascal) que é seu fã de longa data por uma quantia gorda de dólares, o ator (que está convencido em dar um  ponto final na carreira com o que lhe resta de dignidade) topa a empreitada e... o milionário tem seus delírios de grandeza (e o carisma habitual de Pascal torna fácil torcer por ele), mas que estão destinados à frustração com a decisão de aposentadoria de Cage. Esta parte cômica já daria conta de manter o filme funcionando, mas o diretor Tom Gormican (que antes realizou o bobinho Namoro ou Liberdade/2014) resolveu mudar o filme no meio do caminho para uma trama de ação das mais canhestras já feitas pelo astro com direito a envolvimento da CIA, sequestros, traficantes... como o tom de galhofa permanece, a coisa fica cada vez mais absurda e funcionando bem pela destreza de Nicolas Cage em lidar com este tipo de loucura criativa. Temperado com referências a sucessos do passado do ator e amparado por um ótimo elenco de apoio, O Peso do Talento é feito para divertir e cumpre seu papel com louvor e sandices, ainda que no final o astro aprenda uma lição que é pura ficção. Mas ok, bem vindo de volta ao mainstream, Nick Cage. Você merece!

O Peso do Talento (The Unbearable Weight of Massive Talent) de Tom Gormican com Nicolas Cage, Pedro Pascal, Tiffany Haddish, Sharon Horgan, Paco Léon, Neil Patrick Harris, Lily Sheen, Alessandra Mastronardi, Jacob Scipio, David Gordon Green e Demi Moore. ☻☻☻

sábado, 10 de setembro de 2022

PREMIADOS FESTIVAL DE VENEZA 2022

"All the Beauty...": considerado o melhor de Veneza. 

Fazia tempo que o Festival de Veneza não fazia tanto barulho com os seus selecionados. Considerado um dos eventos mais importantes do mundo do cinema, em sua nonagésima edição, o Festival viveu quase duas semanas intensas de exibição de filmes, incluindo alguns dos mais aguardados do ano como The Whale marcando o retorno de Brendan Fraser a um papel de destaque (e sob a preciosa batuta de Darren Aronofsky) , a versão de Ana De Armas para Marilyn Monroe em Blonde da Netflix, as picuinhas que se tornaram mais interessantes do que o filme em si em Don't Worry Darling de Olivia Wilde, mas no fim das contas, alguns favoritos ganharam força e levaram seus prêmios para casa, ainda que provocando surpresa como o novo trabalho da documentarista Laura Poitras, eleito o melhor do Festival em sua parceria com a fotógrafa Nan Goldin e sua campanha contra família Slacker, dinastia da indústria farmacêutica e grandes responsáveis pela epidemia de opióides. Segue abaixo os premiados do Festival de Veneza - e suas chances ampliadas para a temporada de ouro que está logo ali. 

Leão de Ouro: "All the Beauty and the Bloodshed" de Laura Poitras

Leão de Prata - Grande Prêmio do Júri: "Saint Omer" de Alice Diop

Leão de Prata - Melhor Direção: Luca Guadagnino (Bones and All)

Prêmio Especial do Júri: "No Bears" de Jafar Panahi

Melhor Atriz: Cate Blanchett (TÁR)

Melhor Ator: Colin Farrell (The Banshes of Inisherin)

Melhor Roteiro: "The Banshes of Inisherin" de Martin McDonagh

Melhor Jovem Ator: Taylor Russell  (Bones and All)