quinta-feira, 23 de junho de 2022

PL►Y: Pleasure

 
Kappel: estreia transgressora. 

Quando a sueca Bella Cherry (a estreante Sofia Kappel) chega no aeroporto de Los Angeles, lhe perguntam se ela chegou nos Estados Unidos por motivos de "Negócios ou Prazer?", ela não pensa muito e responde que veio à prazer. Provavelmente o interlocutor não imaginava que aquela jovem chegava por lá com a ambição de se tornar uma grande estrela do cinema pornô. Aparentemente Bella é uma novata na indústria pornográfica, não tem muita experiência e carrega o hábito de fotografar e publicar suas experiências em redes sociais (em busca de novos seguidores e alimentar a sua fama). Bella consegue um agente, passa a morar com um grupo de garotas um tanto parecidas com ela e se mete em projetos cada vez mais degradantes. É preciso dizer que esta espécie de "Nasce Uma Estrela" do cinema pornô é dirigido pela cineasta sueca Ninja Thyberg, ativista há vinte anos contra a pornografia e que realizou uma pesquisa severa na construção de seu filme. Além de estar ciente do tipo de pornografia que é mais consumida na internet e da forma como as "preferências" se tornam marca de status dentro da indústria, Thyberg visitou os bastidores deste tipo de produção para ver o comportamento dos envolvidos nas filmagens. Esta é a inspiração para o choque dos sonhos de sua protagonista com a realidade, especialmente nas cenas cada vez mais violentas a que se submete para se tornar uma estrela. A cineasta faz o que pode para simular o sexo em cena, faz bom uso de cortes e sons, os closes milimetricamente calculados e oferece até mais destaque aos, digamos, atributos masculinos do que os femininos. A ideia do masculino no filme ainda está temperada com um cinismo trágico em cenas que beiram o insuportável de serem assistidas. Confesso que em alguns momentos fechei os olhos como se estivesse diante de um filme de terror (e acredito que em alguns momentos o filme é isso mesmo) e em outras, avancei a cena como só o streaming é capaz de permitir (o filme foi disponibilizado recentemente na MUBI). Soa como uma ironia que um filme chamado Pleasure (Prazer) beire a tortura. Salvo as devidas proporções, o filme lembra um pouco o brasileiro Bruna Surfistinha (2011) no retrato de ambições amparadas por ilusões de um conforto que só os sonhos são capazes de proporcionar - e que a realidade transforma em pesadelos sem muita dificuldade. No entanto, na comparação, Pleasure perde no que diz respeito à sua estrutura narrativa. Ao optar por ser mais expositivo, o filme perde um bocado de fôlego ao não deixar muito claro para onde caminha até chegar ao seu desfecho. O que salta aos olhos aqui é a transgressão de seu formato para expor as relações de poder temperada com um tanto de sadismo, seja diante da câmera ou nos bastidores pornôs. Um filme que exige estômago para ser assistido. 

Pleasure (Suécia / Países Baixos / França - 2022) de  Ninja Thyberg com Sofia Kappel, Zelda Morrison, Evelyn Claire, Chris Cock, Jason Toler, John Strong, Alex Braun e Bill Bailey. 

PL►Y: Spiderhead

 
Chris: drogas, para que te quero? 

Se formos imaginar uma santíssima trindade de atores da fase inicial da Marvel Studios, teriam destaque o Robert Downey Jr (o Homem de Ferro), Chris Evans (o Capitão América) e Chris Hemsworth (o Thor). Não é novidade para ninguém que o primeiro Vingadores (que completou dez anos em 2022) se amparava principalmente nos três personagens e seu apelo diante do público. Não é novidade para ninguém que os dois primeiros se despediram do Universo Compartilhado da Marvel, mas Hemsworth continua lá firme e forte, tendo o novo filme do Deus do Trovão entre os mais aguardados do ano (e estreia em breve). Ironicamente, enquanto a carreira de seus ex-colegas de elenco está demorando para ganhar fôlego longe do universo dos super-heróis, o australiano tem conseguido filmes de projeção fora dos filmes da editora. Um deles é este Spiderhead, que estreou recentemente na Netflix e que se colocava entre os lançamentos mais esperados do serviço de streaming. A história é baseada num conto de sucesso publicado na revista The New Yorker que dá ares de ficção científica ao uso de remédios para mudar o humor e as atitudes das pessoas. Spiderhead é uma espécie de prisão alternativa em que um grupo de condenados se submetem a alguns testes com substâncias experimentais em troca de um ambiente mais agradável para cumprir suas penas. Assim, naquele espaço, desfrutam de celas individuais, comida saborosa, ausência de guardas e outros "confortos" - mas ao preço de se tornarem verdadeiros ratos de laboratório nos testes realizados por Abnesti (Chris Hemsworth). A maioria não parece se importar muito... pelo menos até que um dos voluntários, Jeff (Miles Teller) começa a perceber que existe algo de muito errado em tudo aquilo. Obivamente que todo aquele mecanismo em breve sairá do controle, gerando tortura física e psicológica e, óbvio, mortes. Como dá para perceber, a trama imaginada pelo escritor George Saunders tem material para um filme bastante interessante sobre comportamento humano, ética e direitos humanos e se tornaria um filme sombriamente relevante nas mãos certas. Infelizmente nas mãos dos roteiristas Rhett Reese e Paul Wernick a coisa desanda logo na metade da sessão. Curiosamente, colabora muito para isso a direção indecisa de Joseph Kosinski (responsável pelo hit cinematográfico da temporada, a continuação de Top Gun que já se consagra como a maior bilheteria da carreira de Tom Cruise), que ao invés de abraçar o que a história possui de mais incômodo, resolve fazer humor totalmente fora de hora - e a atuação canastrona de Hemsworth piora ainda mais a situação. Também não ajuda o romance morno entre Jeff e Lizzy (Jurne Smollett) que parece que está ali só para dar toques de melodrama ao que já não estava indo bem. A direção de arte parece feita pelo primo pobre de Gattaca (1997) e ajuda a deixar o espectador um tanto entediado. No entanto, debaixo de todo potencial desperdiçado, Spiderhead tem uma temática tão interessante quanto perigosa, pena que o resultado seja tão bobo.

Spiderhead (EUA-2022) de Joseph Kosinski com Chris Hemsworth, Miles Teller, Jurnee Smollett,  Mark Paggio, Tess Haubrich e Ben Knight. 

domingo, 19 de junho de 2022

#FDS Made in Canada: Os Cinco Sentidos

 
Mary e Leonardi: paladar em ação. 

Nos anos 1990 com os trabalhos em alta de Robert Altman e seu discípulo, Paul Thomas Anderso) os filmes caleidoscópicos estavam em alta, o problema é que vários diretores resolveram misturar um monte de personagens em histórias cheias de tramas paralelas com uma fragilidade pouco envolvente. O canadense Jeremy Podeswa resolveu fazer diferente e unir seus personagens em torno de um ponto de partida palpável (o sumiço de uma garotinha) e um outro mais abstrato (os cinco sentidos) e o resultado funciona que é uma beleza, especialmente pelo corte e costura excepcional que o diretor oferece para sua trama. Podeswa começou a fazer cinema em meados dos anos 1980, mas teve seu primeiro lançamento em circuito comercial somente em 1994 com Eclipse, filme sobre um grupo de pessoas e as relações sexuais estabelecidas entre elas. A produção chamou atenção em alguns festivais e ajudou o diretor a dar forma este seu filme seguinte, que consegue ser bastante interessante na forma como aborda seus personagens principais, sua relação com os sentidos e a sugestão de que para além da percepção de mundo que estes oferecem, são necessários outros elementos para que a percepção do mundo seja mais completa. Assim, conhecemos a confeiteira Rona (Mary Louise Parker) que está prestes a receber a visita de Roberto (Marco Leonardi), com quem teve uma aventura romântica em uma viagem pela Europa. Ela está meio insegura, mas o amigo Robert (James MacIvor) acredita que a visita pode ser o início de um relacionamento mais duradouro. Robert trabalha com serviços de limpeza e acredita que ao encontrar o amor de sua vida irá sentir um cheiro especial, mais específico... Em paralelo a estas história, existe o oftalmologista Richard Jacob (Philippe Volter) que está perdendo a audição e a massoterapeuta Ruth (Gabrielle Rose) que tem problemas de relacionamento com a filha, Rachel (Nadia Litz) que está cada vez mais silenciosa e curiosa sobre o mundo (o que a torna cada vez mais adepta do voyeurismo). Podeswa embaralha a história de seus personagens com cortes precisos e mistura drama, comédia e doses de suspense, mas o que funciona como ótimo tempero para as histórias é um senso de solidão urbana para personagens que gravitam numa mesma localidade mas que raramente se encontram. Entre uma pegadinha aqui e outra ali (em que retrata como os sentidos podem nos enganar), Os Cinco Sentidos parece ampliar ainda mais sua percepção de como  o ser humano possui outros sentidos para além do olfato, audição, paladar, tato e visão. São as emoções que emanam de seus personagens que tornam estes sentidos mais plenos e coerentes. Demonstrando pleno controle dos personagens que tem em mãos, o filme se tornou um pequeno clássico cult do cinema canadense, foi foi premiado no Festival de Toronto e foi indicado a nove Genie Awards (o Oscar Canadense), mas levou para casa somente o prêmio de melhor direção. Pena que Podeswa passou a se dedicar cada vez mais ao trabalho na televisão (se bem que estes já lhe garantiram quatro indicações ao Emmy pelo trabalho de direção em séries do porte de Game of Thrones, Boardwalk Empire e The Pacific). Apesar de pouco conhecido, este é um dos meus filmes canadenses favoritos e achei uma boa escolha para encerrar este #FimDeSemana dedicado ao cinema feito no Canadá. 

Os Cinco Sentidos (The Five Senses / Canadá - 1999) de Jeremy Podeswa com Mary Louise Parker, JAmes MacIvor, Marco Leonardi, Nadia Litz, Gabrielle Rose, Phillipe Volter e Molly Parker.  

sábado, 18 de junho de 2022

#FDS Made in Canada: O Mito do Orgasmo Masculino


Miranda e Bruce: sexo e romance em discussão. 

Nos anos 1990 o cinema canadense ganhou status cult e rendia lançamentos concorridos aqui no Brasil. Lembro que um dos mais falados foi este O Mito Do Orgasmo Masculino, filme dirigido por John Hamilton que chamava atenção pelo título com título de dissertação de mestrado, mas revelava debaixo de suas pretensões politicamente incorretas uma comédia romântica divertida (a estratégia já fora usada por outro canadense, o Denys Arcand em O Declínio do Império Americano/1986) O filme conta a história de três amigos que resolvem participar de uma pesquisa acadêmica sobre a masculinidade ao final dos anos 1990. O foco está principalmente na forma como homens pensam e vivenciam a relação entre sexo e romance em suas vidas. Daí em diante seguem as entrevistas com pensamentos, posturas e confissões dos moços. Um dos amigos é dispensado logo no início, o outro se recusa a continuar aquelas conversas, mas o professor Jimmy Rovinsky (Bruce Dinsmore) resolve prosseguir no experimento e revela cada vez mais as suas contradições. Rovinsky acredita ser um homem diferente, que busca algo mais do que apenas sexo com a mulherada, mas a entrevistadora (Miranda de Pencier) o desafia com perguntas e jogos de palavras que o deixam cada vez mais confuso e exposto perante suas convicções. Nas conversas sobram provocações para homens e mulheres em suas desventuras amorosas, brincando até mesmo com alguns fetiches na forma como a entrevista é realizada (ele de olhos vendados numa sala escura conversando com um mulher que nunca deve se identificar num rito quase sadomasoquista que parece fasciná-lo gradativamente). Conforme a trama avança pode-se imaginar que começa a se estabelecer um interesse mútuo entre os dois personagens, mas pesa contra eles, o mundo para além da confidencialidade daquele ambiente de laboratório. Complementam a história a ex-namorada de Jimmy, a Paula (Macha Grenon) e uma amiga, Mimi (Ruth Marshall), pela qual o entrevistado tem uma verdadeira paixão platônica. Se a dupla principal consegue trabalhar bem as ambiguidades presentes nas conversas, o mesmo não de pode dizer do elenco de apoio. Tanto Paula e Mimi, como os dois amigos de Jimmy parecem não se desenvolverem o suficiente para deixar o filme mais provocador e interessante, não se afastando muito dos clichês que representam. A graça mesmo é ver a pesquisadora e seu voluntário destrinchando balelas manjadas das comédias românticas com tom de seriedade. Na época o filme rendeu várias discussões entre público e crítica, visto hoje com o distanciamento histórico (quase três décadas depois) as discussões podem até reaparecer sob o olhar dos dias atuais, mas convenhamos que a produção fica muito mais divertida se não for levada a sério em seu tom farsesco na abordagem da guerra dos sexos. O filme foi o maior sucesso da carreira de seu diretor, que hoje trabalha mais como produtor cinematográfico. 

O Mito do Orgasmo Masculino (The Myth of Male Orgasm - Canadá/ 1993) de John Hamilton com Bruce Dinsmore, Miranda de Pencier, Ruth Marshall, Mark Camacho, Burke Lawrence e Macha Grenon. 

sexta-feira, 17 de junho de 2022

4EVER: Jean-Louis Trintignant

 
11 de dezembro de 1950 ✰ 17 de junho de 2022

Jean-Louis Xavier Trintignant nasceu na cidade francesa de Piolenc. Antes de decidir ser ator, ele chegou a cursar Direito na universidade, mas bastou começar a fazer filmes em 1955 para desistir da advocacia. Ele começou a chamar atenção no cinema somente no ano seguinte quando lançou quatro filmes no decorrer do ano - entre eles o clássico "E Deus Criou a Mulher" de Roger Vadim, em que atuou ao lado da musa Brigitte Bardot. Aquele era o início de uma carreira de quase 150 produções que lhe rendeu vários prêmios em festivais, entre eles o prêmio de melhor ator em Berlim (por Um Homem que Mente/1968) e Cannes (Z / 1969). O ator concorreu cinco vezes ao César de Melhor Ator (uma delas pelo magnífico A Fraternidade é Vermelha/1994), mas foi premiado somente em Amor/2012 - produção indicada a cinco Oscars e premiado com a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. Considerado há tempos um dos melhores atores da Europa, Jean dedicou os últimos anos de sua carreira ao teatro. O ator faleceu após uma longa batalha contra o câncer.  

#FDS Made in Canada: Jesus de Montreal

Lothaire (ao centro): aclamação e martírios. 

Daniel (Lothaire Bluteau) é um jovem ator promissor da cidade de Montreal no Canadá que acaba de ter um aclamado trabalho no teatro. Com as atenções voltadas para o próximo passo de sua carreira, ele causa surpresa ao aceitar realizar uma montagem da Paixão de Cristo para a paróquia local, sendo solicitado apenas que realize uma modernizada na adaptação para agregar novos fiéis. Cheio de ideias, o rapaz começa a fazer pesquisas sobre a história de Jesus e imagina um espetáculo inovador no parque local administrado pela igreja. Para participar da empreitada, ele começa a convidar atores desconhecidos, como a amiga Mireille (Catherine Wilkening) que agora ganha a vida como garçonete para sustentar a filha, o dublador Martin (Rémy Girard), o meticuloso René (Robert Lepage) e a modelo (Johane-Marie Tremblay) que está cansada de ser vista somente como um corpo em campanhas publicitárias. A peça estreia e se torna um sucesso, mas a igreja começa a ter problemas com algumas alterações feitas por Daniel - além de um incidente causar problemas com a justiça. Escolhi Jesus de Montreal para abrir este #FimDeSemana com filmes no Canadá por ser um clássico da cinematografia do país. Este é o sexto filme do canadense Denys Arcand, o primeiro a ser lançado após a projeção mundial recebida com O Declínio do Império Americano (1986) - que rendeu sua primeira indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Aqui ele se ampara mais uma vez nos diálogos para construir uma narrativa inteligente, cheia de humor e ironias, no entanto, ao invés de provocações baratas com temas religiosos, ele prefere revelar algumas hipocrisias ao longo da história. O padre que tem problemas com o celibato, a forma como obras religiosas são vistas pela mídia, o apelo perante o público em contraponto com a censura que começa a ameaçar a peça... mas a graça mesmo está nos paralelos que Arcand estabelece entre a jornada de Daniel e seus seguidores com algumas passagens bíblicas. A analogia entre Madalena e a mulher que precisa ser levada a sério, a lição aos vendedores do templo (agora com um grupo de publicitários), a postura de Daniel em confronto com o poder local e até a ideia de ressurreição ao final do filme. Arcand está tão seguro de si que ousa apresentar grande parte da peça no meio do filme de forma bastante envolvente, de forma que faz imaginar sua capacidade de filmar algo teatral com toda desenvoltura que o cinema oferece. O filme tem um discurso bem interessante sobre a arte perante um olhar mais conservador e as dificuldades que artistas encontram para conseguir sustento e serem reconhecidos. Não por acaso o metrô se torna um cenário importante no último ato. Não apenas pela ideia do underground se fazer presente de forma literal como a cena final com as duas cantoras deixa um nó na garganta. Visto hoje o filme está longe das polêmicas que suscitou em seu lançamento, mas permanece interessante nos pontos que tem a destacar perante o público. Um filme que envelheceu bem e hoje parece fazer ainda mais sentido. 

Jesus de Montreal (Jésus de Montréal / Canadá - 1989) de Denys Arcand com Lothaire Bluteau, Catherine Wilkening, Rémy Girard, Robert Lepage, Johanne-Marie Tremblay, Yvves Jacques, Gilles Pelletier, Cédric Noél e Pauline Martin.  

terça-feira, 14 de junho de 2022

Pódio: Bill Hader

Bronze: o cara legal. 
3º Descompensada (2015) Ainda bem que aquele tempo que somente homens com pinta de galã poderiam ser o par perfeito de uma comédia romântica já passou. Foi na pele do médico responsável por cuidar de atletas famosos que Bill Hader quase roubou a cena de Amy Schumer nesta comédia politicamente incorreta de Judd Apatow. Hader consegue viver um cara legal de verdade, sem cinismo ou segundas intenções e faz com que a gente torça para que tudo termine bem para ele (com ou sem a desmiolada protagonista). Um trabalho tão legal que nos faz perceber quanto aquele comediante que faz rir no Saturday Night Live pode fazer todo tipo de coisa parecer real.

Prata: o irmão perdido. 
2º Irmãos Desastre (2014) Arrisco a dizer que foi neste ponto que Bill resolveu escolher papéis que exigissem dele mais do que fazer a plateia rir. Foi assim que ele apareceu neste drama ao lado de Kristen Wiig, interpretando Milo, o irmão que tem problemas de seguir em frente após um desastroso relacionamento com um professor na adolescência. O tempo passou, mas o rapaz ainda continua preso ao passado. Se distanciando dos clichês de gays no cinema, Bill faz um trabalho cheio de melancolia e amargura que lhe valeu uma indicação ao Gotham Awards de melhor ator. 

Ouro: o ator assassino
1º Barry (2018-) Foi na pele do assassino profissional que acaba se tornando um ator promissor que Bill Hader encontrou a consagração de vez. Desde que a série estreou em 2018 na HBO, o ator já ganhou dois Emmys, um Satellite Awards, foi indicado duas vezes ao Globo de Ouro e ao SAG Awards. Oscilando entre a comédia e o drama, Barry se torna um personagem cada vez mais complexo e se atrapalha cada junto aos coadjuvantes irresistíveis que cruzam seu caminho. A série acaba se ser renovada para a quarta temporada e, do jeito que é imprevisível, pode durar muitas outras sem perder o fôlego. Resta dizer que Bill não apenas estrela a série como também é um dos seus criadores. Um projeto pessoal que deu certo!

NªTV: Barry - Terceira Temporada

Bill Hader: uma preciosidade imprevisível chamada Barry. 

 As outras que me desculpem, mas nenhuma série me fez sentir mais saudades durante a pandemia do que Barry, a brilhante sandice de Bill Hader em cartaz na HBO. A saga de Barry (Hader), um ex-fuzileiro que se torna matador profissional que, pela obra de um serviço acaba ingressando numa escola para atores e repensando sua vida, estreou em 2018 com uma originalidade ácida que fazia falta na televisão. A mistura precisa de comédia e drama caiu no gosto do público e da crítica, rendendo uma segunda temporada no ano seguinte que aprofundava ainda mais a imprevisibilidade do programa. Infelizmente, com a pandemia, o programa ficou três anos sem novos episódios causando desalento aos fãs. O fato é que durante este período, com a chegada do HBOMax no Brasil, pudemos rever todos os episódios (dezesseis episódios com menos de meia hora) e perceber o quanto a série impressiona nas diferentes alternâncias que seus episódios provocam. Ao longo das temporadas, os coadjuvantes também receberam destaque e a forma como seus dramas pessoais se misturam com o protagonista torna a série ainda mais atraente. Assim, do desfecho arrepiante da segunda temporada, envolvendo diretamente a felicidade do professor de interpretação Gene Cousineau (Henry Winkler), a traição do mentor criminoso Monroe Fuches (Stephen Root), o affair do mafioso NoHo Hank (Anthony Carrigan, impagável) com o traficante Cristobal (Michael Irby) e até o romance de Barry com a ambiciosa Sally (Sarah Goldberg) deixaram bastante material a ser trabalhado na nova temporada. No entanto, obviamente que nada sai como o previsto. As ideias de Bill Hader e Alec Berg parecem ter fermentado bastante durante o tempo em que a série ficou fora do ar, tornando as situações ainda mais elaboradas e atuais. No entanto, fica claro que não importa se Barry quer mudar de vida, ele precisa responder pelos crimes que cometeu - e este acerto de contas perpassa todos os oito episódios desta temporada, fazendo o protagonista mergulhar em uma verdadeira maré de azar. Se Hader já estava ótimo em cena nas temporadas anteriores, aqui ele está mais dramático, oscilando entre o desgosto e o descontrole sobre a vida dupla que já ultrapassou seus limites do cansaço físico, mental e moral. Com a impressão de que tudo vai ladeira abaixo sobra até para sua namorada, Sally que tem problemas com sua inserção na mídia televisiva, agora misturada a algoritmos, redes sociais e cancelamentos antes mesmo que ela possa sentir o gosto da fama. Precisa dizer que Barry é uma das minhas séries favoritas da temporada? Sorte que já foi renovada para quarta temporada e, para o prazer dos fãs, adoraria que a próxima temporada fosse lançada o quanto antes. 

Barry - Terceira Temporada (EUA - 2022) de Bill Hader e Alec Berg com Bill Hader, Henry Winkler, Sarah Goldberg, Stephen Root, Anthony Carrigan, D'Arcy Carden e Michael Irby. 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

4EVER: Philip Baker Hall

 
10 de setembro de 1931 ✰12 de junho de 2022

Phillipe Baker Hall foi criado nas pobres redondezas ao extremo norte de Toledo, em Ohio, durante a Grande Depressão da economia americana. O interesse pela atuação veio na Universidade de Toledo, o jovem Philip nunca havia imaginado atuar na TV ou no cinema até então, uma vez que por ter crescido sem televisão, a profissão nunca havia sido cogitada por ele. Ele começou a atuar profissionalmente aos trinta anos durante os anos 1970. Ao longo de cinco décadas de carreira, Philip participou de vários filmes conhecidos como Fuga à Meia-Noite (1988), O Show de Truman (1998), O Informante (1999) e Dogville (2000). Se tornou um dos atores favoritos de Paul Thomas Anderson, com quem participou de filmes como Boogie Nights (1997) e Magnólia (1999) que rendeu suas únicas indicações ao prêmio do Sindicato dos Atores (SAG) como membro do elenco. Hall era especialista em viver tipos sombrios, estressados e rabugentos, tipo que lhe rendeu o famoso papel do policial mal humorado da biblioteca da cultuada série Seinfeld (1989-1998). Phillip faleceu em casa em consequência de enfisema pulmonar. 

FILMED+: Zola

 
Riley e Taylour: saga registrada no Twitter. 

Faz um tempinho que o Oscar quer soar renovado e inclusivo, mas se ele também quisesse parecer moderno e descolado teria indicado Zola em várias categorias na última edição, ou, pelo menos ao Oscar de roteiro adaptado. Afinal, quantas vezes vimos um filme tão cheio de energia adaptado de uma thread do Twitter? Nunca antes. É verdade que não se trata de uma thread qualquer, afinal, foram 148 postagens de como teria sido o final de semana mais louco da vida de Zola, uma stripper que se mete em um esquema de prostituição ao conhecer Stefani. Tudo aconteceu em 2015 e o conteúdo viralizou na rede social e ganhou maior detalhamento em uma matéria publicada na revista Rolling Stone com o título "Zola Tells All: The Real Story Behind the Greatest Stripper Saga Ever Tweeted" (ou "Zola Conta Tudo: A História Real por trás da maior saga de uma Stripper já Twitada"). A história era tão impressionante que chamou atenção do cinema e quase virou filme dirigido por James Franco, que graças às deusas do cinema foi substituído por Janicza Bravo que realizou um ótimo trabalho. Bravo constrói uma das narrativas mais inventivas dos últimos tempos e conta a história da dançarina em apuros em pouco mais de oitenta minutos de projeção. Flertando com a linguagem da rede social (palavras, fotos, desenhos e sons) em que a história foi originalmente publicada, Zola transborda frescor e ousadias o que fez o filme se tornar um verdadeiro hit do cinema indie nos Estados Unidos. Muito do sucesso do filme também se deve ao talento e carisma de Taylour Page, uma atriz ainda pouco conhecida, mas que carrega a situação complicada de sua personagem com bastante desenvoltura. Page vive Zola e está muito bem acompanhada de Riley Keough (a neta de Elvis Presley que faz tempo merecia um reconhecimento maior no cinema), responsável por interpretar a nebulosa loura Stefani. É Stefani que convence Zola a cair na estrada para ganhar mais dinheiro em shows em outras cidades, mas as coisas já ficam estranhas quando ela se depara com X (Colman Domingo), um cafetão bastante ameaçador. Também acompanha a viagem o ingênuo Derrek (Nicholas  Braun) que, na pele do namorado da loura merece lugar entre os maiores patetas da história do cinema. O quarteto irá se meter em um bocado de encrencas, mas que irá revelar que em termos de gerar lucros, Zola é bem mais astuta do que X poderia supor. Obviamente que isso chama atenção da concorrência e... melhor parar por aqui. Obviamente que diante do seu conteúdo "para gente grande", o filme traz algumas cenas que podem deixar os mais conservadores constrangidos (e este deve ser o motivo para a Academia do Oscar ignorar o filme por completo e rendeu censura de 18 anos por aqui), mas a forma como equilibra tudo com agilidade, brilhos, humor e acidez o torna uma atração irresistível. O filme deveria ter sido lançado em 2020, mas por conta da pandemia, sofreu vários adiamentos e problemas de distribuição. Tantos problemas não prejudicaram o apelo do filme que recebeu sete indicações ao Independent Spirit Awards, sendo premiado nas categorias de melhor atriz (Taylour Paige) e montagem (Joi McMillion). Por aqui o filme está disponível no HBOMax (tire as crianças da sala e divirta-se).

Zola (Zola / EUA-2020) de Janicza Bravo com Taylour Paige, Riley Keough, Colman Domingo, Nicholas Braun e Ari'el Stachel. 

PL►Y: Quatro Dias com Ela

 
Glenn e Mila: encontro de duas gerações de ótimas atrizes. 

Glenn Close é uma atriz que dispensa comentários. Famosa por suas oito indicações ao Oscar (e nenhuma vitória), a atriz merece ser sobretudo lembrada pelo seu talento ao longo de quase quarenta anos de serviços prestados ao cinema. Se o seu nome já é capaz de chamar atenção para uma produção, posso dizer que, ainda em menor escala, o nome de Mila Kunis consegue o mesmo. A celebrada atriz que duelou com Natalie Portman em Cisne Negro (2011), bem que merecia uma indicação ao Oscar por seu trabalho no filme (mas a Academia preferiu ignorar). Na última cerimonia, o Oscar lembrou da atriz para que ela discursasse contra a guerra em seu país de origem, a Ucrânia, mas bem que poderia ter lembrado também do trabalho dela no drama Quatro Dias com Ela, indicado na categoria de melhor canção original. O filme não fez sucesso de público ou crítica e teve seu lançamento prejudicado por conta da pandemia do Corona Vírus e, embora não tenha traga novidades para os filmes do gênero, o filme é bem conduzido pelo diretor Rodrigo García e conta com atuações competentes das atrizes. O filme é baseado na história real de Amanda Wendler, que chamou atenção ao ser publicada no Washington Post sobre seu conflituoso processo de se livrar do vício em drogas. Neste trajeto de reabilitação, ela contou com a ajuda da mãe, que já a considerava um caso perdido após tantos problemas enfrentados. No filme, Amanda se chama Molly (Milla Kunis) e quando bate à porta da mãe, Deb (Glenn Close), em busca de ajuda, existe uma boa dose de desespero, mas, também, paira sobre a mãe a suspeita de que a filha pode estar prestes a realizar outro golpe sobre as finanças da família. A cena em si já é bastante dura de assistir, mas a competência das atrizes deixa o espectador ciente da perspectiva de ambas as personagens, o que se torna fundamental para o que veremos a seguir. A imagem de Mila Kunis destruída impressiona, assim como o equilíbrio que Glenn encontra entre a suspeita e a vontade de ajudar a filha. As duas terão que conviver pelos dias do título para que Molly esteja preparada para começar o uso de uma nova medicação para se tratar, no entanto, mais do que o vício, as duas precisam superar a própria relação de mãe e filha que tiveram até ali - e as cenas de lavada de roupa suja são inevitáveis, assim como momentos manjados, como aquele em que a mãe se depara com a realidade chocante de uma casa habitada por amigos da filha ou a cena em que Molly enfrenta uma turma de estudantes dispostos à julgá-la sem sinal de empatia. Quatro Dias com Ela se equilibra entre a sensibilidade e os clichês do gênero, porém alcança um bom resultado graças ao trabalho de seu elenco e da direção  sensivelmente crua de Rodrigo García. A amizade do filho de Gabriel García Márquez e Glenn Close é antiga. Eles trabalharam juntos pela primeira vez na estreia dele no cinema com o ótimo Coisas que Você Pode Dizer só de Olhar para Ela (2000), se reencontraram em Questão de Vida (2005), depois ela o convidou para versão cinematográfica de Albert Nobbs (2011) - que  valeu a sua sexta indicação ao Oscar da atriz -, agora compartilharam mais este projeto que merecia um pouco mais de atenção. 

Quatro Dias com Ela (Four Good Days / EUA - Canadá /2020) de Rodrigo García com Glenn Close, Mila Kunis, Stephen Root, Joshua Leonard e Carlos Lacamara. ☻☻

PL►Y: Emergência

 
RJ, Chacon e Donald: três amigos em apuros. 

Kunle (Donald Elise Watkins) e Sean (RJ Cyler) são dois amigos que estão prestes a terminar a faculdade e, como despedida, planejam em uma noite frequentar todas as festas possíveis para concluir esta fase de suas vidas. Kunle é uma aluno aplicado, mas Sean parece mais preocupado em curtir as festas e o que elas podem oferecer -  e este descompromisso pode ser uma das causas do rompimento com sua namorada. Sean criou até um esquema elaborado para que ao longo da noite possam aproveitar todas as festividades e concluir com aquela que é a mais aguardada de todas. Só que em meio a um imprevisto os dois acabam descobrindo uma garota branca desacordada na casa em que dividem com Carlos (Sebastian Chacon) - que, mais uma vez, deixou a porta aberta enquanto passava o tempo jogando games online. A primeira ideia é chamar a polícia, mas o trio fica receoso, afinal, como explicar que uma garota branca está desacordada na casa deles, some isso à tensão racial e o fato do trio ser formado por dois jovens negros e um latino torna-se um complicador. A ideia por trás do filme do diretor Carey Williams já havia rendido um curta-metragem premiado em Sundance no ano de 2018, mas aqui ele comprova que sua criatividade ao lado da roteirista K.D. Dávila é capaz de ampliar a trama e a tensão daqueles doze minutos em um longa-metragem com competência. Embora no início o filme pareça uma comédia adolescente comum, ela não demora a demonstrar o seu verniz provocador sobre o racismo estrutural e suas consequências. Conforme o trio de amigos tenta resolver a situação da menina desacordada, ainda que seja através de vias tortas, a coisa se complica ainda mais e sobra ao espectador acompanhar tudo aquilo apreensivo diante do que pior pode acontecer. No entanto, vale ressaltar, que Emergência trabalha seu tema principal de forma bastante engenhosa, sem parecer forçado. Estão presentes aquelas situações em que fica latente a frase "eu não sou racista, mas...." e como o filme sabe onde pisa, prefere mostrar estas posturas em ações e situações que se tornam bastante emblemáticas. Não cabe falar muito para não estragar as surpresas e obviamente que alguns irão dizer que a tensão existiria mesmo se o trio de amigos fosse branco (mas aí seria outro filme, meu caro). O melhor e que mesmo nas situações mais bem humoradas, paira a angústia e o mal estar do que pode acontecer aos personagens e o efeito que aquilo terá sobre suas vidas. Entreter e fazer pensar em uma trama bem construída tem sido difícil em Hollywood, por isso mesmo, é bom ficar de olho nos próximos trabalhos de K.D. e Carey Williams. 

Emergência (Emergency/EUA-2022) de Carey Williams com RJ Cyler, Donald Elise Watkins, Sebastian Chacon, Sabrina Carpenter, Maddie Nichols, Diego Abraham e Summer Madison. 


domingo, 12 de junho de 2022

CICLO DIVERSIDADESXL: Deserto Particular

 
Sara e Daniel: amor impossível?

Em épocas de SPOILERS alguns filmes penam para gerar sinopses atrativas para o seu público. Ano passado isso aconteceu com Ataque dos Cães e também com o brasileiro Deserto Particular. Para não estragar as surpresas existe tanto mistério em torno do que será visto que um jogo de palavras peculiar  já desperta o mesmo tipo de alarme na minha cabeça. "Sim, Wellington... é exatamente isto que você está pensando". Colocar Deserto Particular para encerrar o Ciclo DiversidadeSXL deste ano já é um SPOILER, mas acho que é justo com um filme que possui outras qualidades para além do seu "segredo". Estas qualidades lhe valeram a escolha o prêmio de Escolha do Público no Festival de Veneza do ano passado e o posto de representante brasileiro para uma vaga na disputa de filme estrangeiro no Oscar em tempos em que a Academia tenta ser mais inclusiva. Todos estavam confiantes com a escolha, mas o filme acabou ficando de fora não por conta de seus méritos, mas pelo tempo escasso destinado para a campanha na categoria (o que já gerou mudanças para o ano que vem). O filme conta a história de Daniel (Antonio Saboia), um policial militar que está afastado do trabalho por conta de um incidente desastroso que ganhou atenção da mídia. Agora ele passa os dias com o braço engessado cuidando do pai, que assim como ele tinha a mesma profissão e agora requer atenção pela sua situação de saúde. O alento para os dias de Daniel são as conversas com Sara por um aplicativo de celular. Ele mora em Curitiba, ela mora em Pernambuco e os dois mantem um relacionamento a distância faz algum tempo. No entanto, depois dele enviar uma foto bastante íntima, Sara deixa de responder as suas conversas. Aterrorizado pelo ghosting, sem dinheiro e sem maiores perspectivas de dias melhores, Daniel parte para a cidade da amada afim de encontrar sua cara metade e acaba descobrindo um pouco mais sobre si mesmo. Quando lida com histórias de ficção no cinema, Aly Muritiba é craque em construir tramas sobre mudanças de perspectivas, se isso já era visto em Para Minha Amada Morta (2016), aqui ele utiliza uma estrutura semelhante à Ferrugem (2018), dividindo o filme entre dois personagens. Se a primeira parte é dedicada à angústia de Daniel, a outra fica por conta de Robson (Pedro Fassanaro), rapaz que mora com a avó evangélica e trabalha cuidando de carregamento de alimentos. Robson é muit jovem e ainda procura seu verdadeiro lugar no mundo. Se Antonio Saboia realiza um ótimo trabalho com as camadas nem sempre expostas de Daniel, Pedro Fassanaro ganha nosso coração ao abordar toda a complexidade de um jovem assustado com a chegada de Daniel e todas as consequências disso em sua rotina. Fassanaro faz até parecer fácil o complexo trabalho que tem em mãos. O ator é verdadeiramente um achado! Deserto Particular resulta em uma história de amor contida, dolorosa, triste e que deixa um nó na garganta. A ideia de quem se é o que se quer está presente o tempo inteiro em choque com as convenções e as certezas que se diluem perante as emoções inesperadas que a história propõe aos personagens. É um filme corajoso e atual, mas que sabiamente não perde a sensibilidade na hora de contar sua história. E esta sensibilidade que nos faz relevar aquela longa parte de Daniel perguntando sobre Sara e o desfecho que poderia ser daquele jeito que a plateia desejava. E sim, o filme merecia uma vaga no Oscar (especialmente no lugar do sacal A Mão de Deus de Paolo Sorrentino). 

Deserto Particular (Brasil - 2021) de Aly Muritiba com Antonio Saboia, Pedro Fassanaro, Thomas Aquino, Laila Garin, Zezita Matos e Luthero de Almeida. 

CICLO DIVERSIDADESXL: Desobediência

 
Weisz, McAdams e Nivola: triângulo amoroso proibido. 

Rachel Weisz gostou tanto do livro de Naomi Alderman que resolveu transforma-lo em filme. Escalou um elenco talentoso para a empreitada e o chileno Sebastián Lelio (de Gloria/2013 e Uma Mulher Fantástica/2017) para dirigir. Gerado com grande expectativa, Desobediência chamou atenção não apenas pelos nomes envolvidos, mas principalmente pela história de um triângulo amoroso em meio à uma Comunidade Judaica Ortodoxa. Comunidade esta que Ronit (Rachel Weisz) deixou para trás ao ir para Nova York e investir na carreira de fotógrafa. Solteira e sem filhos, ela não parece muito feliz com os parceiros sexuais aleatórios que cruzam seu caminho. Quando ela recebe a notícia do falecimento de seu pai, o rabino líder da comunidade, ela volta às suas origens ao norte de Londres. Além do luto, existem outros fatores que motivam este retorno que só descobriremos depois. Ronit ficará abrigada na casa de um amigo, Dovid (Alessandro Nivola) discípulo e forte candidato a substituto de seu pai na liderança local, e tudo parece estar bem até ela descobrir que o amigo casou com Esti (Rachel McAdams). Os três sempre foram próximos, mas a tensão entre as duas deixa claro que entre elas existia mais do que apenas uma amizade. Assim, além de lidar com os olhares, comentários e sermões sobre a danação de quem conhece sua história de vida, Ronit precisa também lidar com a atração que ainda sente por Esti. Desobediência tem um ponto de partida interessante, mas resulta bastante engessado em sua execução, especialmente pela mão pesada de Lelio que na intenção de apresentar o efeito de sufocamento de suas personagens, exagera e acaba drenando boa parte da energia da história de amor que tem em mãos. Com isso, quem sai perdendo é Rachel Weisz que num trabalho introspectivo passa o filme inteiro com a mesma cara e os olhos mortos para dar conta do deslocamento de sua personagem naquele ambiente. O melhor ficou para os seus parceiros de cena, Rachel McAdams tem mais sorte ao lidar com os dilemas de quem precisou reconstruir a vida com o que tinha ao seu alcance, mas sabe que está tudo prestes a ruir, não por acaso é ao lado de Alessandro Nivola (um ótimo ator que nunca recebe o reconhecimento merecido) que o filme alcança seus momentos e mais comoventes. Tudo é cinzento nas ambientações. Os figurinos são escuros e o elenco de apoio mantem a postura de um organismo querendo expulsar um "corpo estranho", deixando a sensação de que o filme gira, gira e volta ao mesmo ponto a maior parte do tempo. Entre as tradições seculares e o confronto com a luta pela liberdade do que se deseja, Desobediência resulta frio e nem os beijos e a cena de sexo entre as atrizes é capaz de mudar quebrar a temperatura imposta pelo diretor. 

Desobediência (Disobedience / Irlanda - Reino Unido - EUA / 2017) de Sebastian Lélio com Rachel Weisz, Rachel McAdams, Alessandro Nivola, Anton Lesser e David Fleeshman. 

sábado, 11 de junho de 2022

CICLO DIVERSIDADESXL: Amor e Restos Humanos

Sempre que tento postar sobre um filme mais antigo no Ciclo DiversidadeSXL eu fico receoso imaginando como o mundo mudou desde então e, como uma obra que foi celebrada por seu caráter inovador pode ser vista agora como algo completamente antiquado. Faz um tempo que penso em postar sobre Amor e Restos Humanos aqui no blog, mas esperei a chance de rever o filme e ter certeza que ele ainda merecia toda a admiração que tenho por ele. Para começar foi um dos primeiros filmes que fugia do caráter heteronormativo que assisti, eu deveria ter uns quinze anos quando ele foi exibido na televisão e eu fiquei realmente impressionado com aqueles personagens que buscavam amor e sexo sem se importar muito com o gênero de quem os interessava. A produção dividiu opiniões quando chegou aos cinemas por aqui - o bonequinho do Globo dormia e dizia que "os personagens têm profundidade de um pires", quando vi o filme imaginei se o crítico tinha realmente entendido a proposta do filme de Denys Arcand. O diretor canadense estava em alta na época após o sucesso da indicação ao Oscar de filme estrangeiro com O Declínio do Império Americano (1986) e as provocações de Jesus de Montreal (1989). Arcand dirigia desde os anos 1960 e estava em sua fase mais pop quando resolveu levar para o cinema o texto da peça de Brad Fraser (que recebeu até uma montagem no Brasil após a repercussão do filme), o resultado foi uma obra que estava longe de ser uma unanimidade, mas trazia para a telona personagens diferentes das comédias românticas a que o grande público estava acostumado. Com situações provocativas, diálogos pontiagudos e um serial killer para complicar ainda mais a angústia dos personagens, Amor e Restos Humanos exibia a busca pelo amor de personagens com sexualidade diversificada. No centro da história está David (Thomas Gibson) e Candy (Ruth Marshall), um casal de  ex-namorados que divide um apartamento depois que ele saiu do armário. Enquanto isso, David é um ex-ator juvenil que agora ganha a vida como garçom, ele tenta driblar os interesses do jovem ajudante Kane (Matthew Ferguson)  que ainda não tem muita certeza dos caminhos que sua sexualidade seguirá (e se mete nas situações mais polêmicas da trama) e até do amigo de longa data Bernie (Cameron Bancroft). Enquanto David aproveita a noite encontrando parceiros diferentes nas festas que frequenta, Candy ainda acredita que em algum lugar está o seu par perfeito. Diante de tantos fracassos em relacionamentos ela resolve investir em uma relação homoafetiva com Jerri (Joanne Vannicola), mas começa a ter dúvidas perante as investidas de um barman chamado Robert (Rick Roberts). . É importante ressaltar que no meio destes personagens ainda existe uma garota de programa sensitiva (Mia Kirshner) que revela os segredos de alguns personagens ao longo da história e brinca com fantasias de seus clientes. O texto de Fraser mistura todos os personagens na busca por amor e parceiros em um tempo em que romance e sexo geravam discursos variados sobre seus encontros e desencontros, mas que o cinema dos anos 1990 ainda não estava acostumado a retratar de  forma mais inclusiva. Neste ponto, os confrontos entre David e Candy merecem destaque pelas alfinetadas de duas pessoas que se amam verdadeiramente, mesmo que não seja de forma carnal. Cenas como o encontro imprevisto de Candy com seus pretendentes ou o diálogo de David justificando a Kane o motivo de não poderem se envolver ainda ficam entre os melhores momentos da produção. Se existe um ponto que envelheceu mal no filme é a concepção do serial killer da história. Arcand não parece muito interessado em provocar suspense, deixa claro logo no início quem é o personagem mais estranho da história e disfarça com algumas pistas falsas manjadas, mas nada que prejudique o andamento da história até o desfecho em que David entra em confronto com o ser repugnante que a indiferença pode transformá-lo. Apesar deste deslize, Amor e Restos Humanos é um clássico que vive na minha memória sendo ainda atual em sua abordagem da jornada do ser humano na busca por parceiros (amorosos ou sexuais). Este é o momento mais descolado da carreira de Denys Arcand - que anda em baixa desde que levou para casa o Oscar de filme estrangeiro com o ótimo As Invasões Bárbaras (2003), o que deixou seu cinema mais sério, embora ainda seja provocador. 

Ruth, Thomas e Joanne: o amor com o que resta de nós. 

Amor e Restos Humanos (Love and Human Remains / Canadá - 1994) de Denys Arcand com Thomas Gibson, Ruth Marshall, Cameron Bancroft, Matthew Ferguson, Mia Kirshner, Joanne Vannicola, Rick Roberts e Aidan Devine. 

CICLO DIVERSIDADESXL: Brilho Para Eternidade

 
Udo Kier: ícone em ação.  

Nascido na Alemanha em 1944, Udo Kierspe ficou mais conhecido como Udo Kier, um  dos atores mais prestigiados da Europa. Kier começou a atuar nos anos 1960 chamando atenção pelos expressivos olhos azuis que surgem hipnóticos na tela e ficou conhecido pelos trabalhos em filmes de terror e papéis de vilão. O reconhecimento internacional lhe deu passe livre para trabalhar em diversos países, assim, fez vários filmes com Lars Von Trier (desde os anos 1980), trabalhou com Dario Argento, Andy Warhol, Gus Van Sant, Werner Herzog, Win Venders, Alexander Payne e ficou ainda mais conhecido no Brasil ao ganhar papel de destaque em Bacurau/2019 de Kleber Mendonça Filho. Sua popularidade também já lhe garantiu participações marcantes em clipes como em Depper and Deeper de Madonna (com quem também participou das polêmicas fotos do livro SEX em 1992). Prestes a completar 78 anos, o ator parece cada vez mais distante da aposentadoria e sempre disposto a enfrentar novas experiências. Homossexual assumido com quase trezentas produções no currículo, seu status cult sempre se nutriu da habilidade de trabalhar em todo tipo de filme. De blockbusters hollywoodianos a pequenas produções de diretores desconhecidos, ele pode aparecer assutador em produções sombrias (e tristíssimas como O Pássaro Pintado/2019) como também aceitar o convite de Todd Stephens, diretor que passou treze anos sem filmar para protagonizar o multicolorido Swan Song (que aqui ganhou o título genérico de  e está disponível no HBOMax). Stephens ganhou alguma projeção ao fazer os dois filmes da franquia Another Gay Movie (2006 e 2008) que paraodiava clichês gays de Hollywood, mas pelo que se vê em Swan Song, o diretor tem planos para ser levado a sério daqui para frente. O filme conta a história de Pat (Udo Kier), um senhor que vive atualmente em um abrigo de idosos, cuja a maior graça do dia é fumar escondido. Um dia, Pat recebe o convite de cuidar do visual de uma ex-cliente que acaba de falecer e ele não aceita. Porém, aquele convite faz o protagonista pensar que recordar os velhos tempos de cabelereiro renomado pode ser interessante. Assim, ele volta à sua antiga cidade e enquanto observa que o mundo que conhecia mudou bastante, aproveita para revisitar algumas passagens de sua vida que merecem ser passadas a limpo. O filme pode parecer uma colagem de situações envolvendo o personagem (e talvez seja mesmo), mas a grande sorte da produção é ter a cola feita pelo trabalho inspirado de Kier que está bem diferente da maioria dos papéis que colecionou em sua carreira. Embora nostálgico e melancólico, seu personagem retoma sua identidade ao longo da narrativa, até que faça as pazes com sua história e suas dores. Ao viver um homossexual maduro que sobreviveu a um AVC, à morte do parceiro, os preconceitos e o fantasma da AIDS, o que vemos é um paralelo com a história dos homossexuais ao longo das décadas, especialmente nos Estados Unidos. O melhor é que o roteiro também guarda momentos de alegria, como a noite de despedida em uma boate gay em que Pat costumava se apresentar e o catártico encontro com o neto de sua ex-cliente (vivido por Michael Urie, o Marc da série Ugly Betty). Com boa recepção em Festivais no ano passado, o filme concorreu ao Independent Spirit de melhor ator (Udo Kier) e melhor roteiro (assinado pelo diretor Todd Stephens), mas  pela afiada mistura de drama e comédia. Swan Song é um filme que consegue comover sem grandes esforços e se torna uma verdadeira carta de agradecimento às gerações que precederam as conquistas que a comunidade LGBTQIA+ conquistou nas últimas décadas (e não por acaso é Udo Kier que está no alto dos créditos). 

Brilho Para Eternidade (Swan Song/ EUA-2021) de Todd Stephens com Udo Kier, Jennifer Coolidge, Michael Urie, Linda Evans, Ira Hawkins e Thom Hilton. 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

CICLO DIVERSIDADESXL: Canário

 
Hans e Germandt: amor e Culture Club. 

É sempre interessante escolher os filmes para compor um Ciclo aqui no blog, mas sobretudo eu preciso de tempo. Tempo para pesquisar os filmes que possam compor as postagens da semana, tempo para assistir e filtrar aqueles que ajudam a compor um Ciclo mais interessante e, claro, tempo para escrever. Nesse ano, parti da premissa de que deveria escrever sobre filmes de países diferentes e que tivessem abordagens variadas sobre a diversidade. Sendo assim, comecei a assistir os filmes da minha lista e cheguei a ficar em dúvida se deveria escrever sobre dois filmes de uma mesma nacionalidade, no entanto, como são dois filmes bem diferentes e de um país que é raro termos filmes comentados por aqui, achei que seria uma boa ideia escrever sobre Canário, filme sul-africano de Christian Olwagen sobre um adolescente, Johan (Schalk Bezuidenhout), que é escolhido para servir à força militar de seu país por dois anos e fazer parte do coral da Força de Defesa Sul Africana. O grupo é conhecido como "Canários" e foi responsável por realizar apresentações aos pais de jovens convocados para o front no período conturbado do apartheid na África do Sul. O cruel regime separatista governamental, que visava separar brancos e negros, serve de pano de fundo para um filme que é ambientado no ano de 1985 e se banha em uma certa nostalgia da cultura pop do período para retratar os conflitos de seu protagonista com a própria sexualidade. As primeira cenas deixam claro que Johan está longe de ser hétero. Fã de Boy George, ele surge vestido de noiva cantando Smalltown Boy do Bronski Beat (um verdadeiro hino gay) junto com suas amigas e outros vizinhos. Se por um lado aquilo pode ser encarado apenas como uma brincadeira para algumas pessoas, podemos perceber que são neles que Johan vive a sua libertação. Ao ser convocado para viver dois anos num ambiente bastante conservador como o exército, ele fica um tanto preocupado. No entanto, ele considera que se for discreto não terá problemas em sua nova tarefa. Assim, ele evita conversas, contem seus gestos, evita falar de seu gosto musical e tenta ficar longo do falante Rudolf (Germandt Geldenhuys). A coisa complica quando ele se aproxima cada vez mais do simpático Wolfgang (o ótimo Hannes Otto), que assim como ele é fã de Boy George e cultura pop em geral e, não demora muito, para demonstrar a grande afeição que sente por Johan. Enquanto a atração entre os dois cresce, assim como o temor de chamar atenção para o relacionamento que se instaura, Johan começa a questionar os riscos que corre e mergulha num perigoso processo de negação. Ainda que lide com temas pesados, Canário consegue manter a leveza a maior parte do tempo, sem se esquivar quando precisa colocar o dedo em alguma feridas. Seja no discurso de uma mulher contra o contraditório trabalho de "conforto" feito pelos canários (ressaltando a conflituosa relação do grupo entre a Igreja e o Estado) ou pela sugestão de que apoiam um governo que discrimina pessoas pela cor da pele. Aqui existe uma observação perspicaz sobre a mania de considerar que determinados grupos são melhores (ou mais corretos) que outros, seja pela cor da pele ou sexualidade. O diretor Christian Olwagen consegue construir suas cenas de forma criativa, utilizando planos sequência elaborados que por vezes revelam uma alma teatral (mas sem o caráter engessado que algumas transposições possuem), misturada com os clipes pop dos anos 1980. O diretor tem bastante habilidade em lidar com as músicas e os ícones andróginos do pop do período (repare a cena em que os personagens aparecem caracterizados de nomes como o próprio Boy George, além de David Bowie, Grace Jones, Michael Jackson, Prince, Annie Lennox e outros artistas que marcaram o período, embora ficasse, na maioria das vezes no campo somente da imagem - Johan até conta de sua tristeza da demora de seu ídolo assumir que era gay numa clara alusão ao valor da representatividade, algo que tornou-se bastante difundido na cultura pop atual). Vale destacar que o longa é bastante natural na construção das cenas de intimidade entre Johan e Wolfgang, o que passa pelo mérito de seus atores. Apesar de ser um ator vindo da comédia,  Germandt Geldenhuys consegue dar a introspecção certa dos conflitos vividos por Johan, sendo um ótimo contraponto com a espontaneidade  longe dos estereótipos impressa por Hannes Otto na pele de Wolfgang (vale destacar que Otto se tornou o primeiro sul-africano aceito na prestigiada escola de arte dramática Juilliard. Otto é homossexual assumido e atualmente atua como produtor em Hollywood). Canário foi exibido e elogiado nos festivais de Berlim e Toronto  e é uma verdadeira pérola escondida no catálogo do Amazon Prime Video. 

Canário (Kanarie / África do Sul - 2018) de Christian Olwagen com Germandt Geldenhuys, Hannes Otto, Gérard Rudolf, Jacques Bessenger, Ludwig Binge, Germandt Geldenhuys, David Viviers e Francois Jacobs. ☻☻

quinta-feira, 9 de junho de 2022

CICLO DIVERSIDADESXL: Os Iniciados

 
Mantsai e Jay: relacionamento em segredo. 

Xolani (Bongiel Mantsai) é um rapaz que foi escolhido por um empresário para acompanhar o filho adolescente em um rito de passagem. Conforme a tradição ancestral da família, na África do Sul, o adolescente será circuncidado junto a outros rapazes de sua idade numa cerimônia que simboliza a passagem para a vida adulta. Acho que nem precisa mencionar os vários elementos que se misturam neste procedimento. Seja no caráter cultural da situação, assim como na dor e cuidados necessários para evitar infecções após este tipo de mutilação em uma área tão íntima... Neste ponto o filme já chama atenção por abordar um tema que não é muito falado, ouvimos muito sobre a mutilação genital feminina no continente africano, mas não lembro de ter visto um filme abordar esta situação vinculada aos meninos (e longe de mim querer especular qual é mais ou menos agressiva, não é esta a questão, mas a abordagem necessária destes ritos). O filme de John Trengove tem interesse em aprofundar outros temas deste ponto de partida. Xolani é homossexual em segredo e ciente do que pode lhe acontecer dentro de uma sociedade heteronormativa tão tradicional, assim, cria-se assim uma narrativa baseada no choque de um indivíduo com as tradições que o rodeia. Talvez seja por isso que o sexo no filme apareça de forma tão agressiva, basta ver a primeira cena em que Xolani aparece tendo relações com outro homem. A cena é apresentada de forma tão brutal que cria a atmosfera para a tensão sexual que perpassa toda a produção. Se o protagonista tem dificuldades para aceitar a atração que sente por outros homens, os outros personagens homossexuais que atravessam seu caminho seguem a mesma linha, tornando uma relação afetiva entre iguais bastante complicada. No entanto, existe também uma relação de poder e sedução entre Xolani e o rapaz do qual se torna responsável, assim como o ciúme, o preconceito, a rejeição e hierarquias sociais. Esta mistura torna o filme difícil de assistir na sensação crescente que tudo dará errado quando a verdade sobre Xolani vier à tona, o que motivará um ato desesperado no desfecho da história que é praticamente uma negação de si mesmo e do que se deseja. O fato de ambientar a história em uma localidade isolada, distante do aspecto urbano visto em filmes ambientados na África do Sul, deixa a sensação de estarmos diante de personagens presos em uma espécie de limbo, que dá o tom do rito de passagem daqueles adolescentes, mas também dos homens maduros lidando com seus desejos escondidos. Esta mistura faz de Os Iniciados um filme que deixa um nó na garganta. Doloroso e com atmosfera documental, o filme nos faz especular sobre motivações tanto para crimes de ódio e o ódio de si mesmo.  

Os Iniciados (Inxeba / África do Sul - 2017) de John Trengove com Nakhane Touré, Bongile Mantsai, Niza Jay, Thobani Mseleni e Gabriel Mini. ☻☻

quarta-feira, 8 de junho de 2022

CICLO DIVERSIDADESXL: O Advogado

 
Eimutis e Dogac: atração e autoironia. 

Marius (Eimutis Kvosciauskas) é um advogado corporativo na Lituânia. Homossexual assumido, ele sabe a realidade homofóbica de seu país e mantem um grupo de amigos próximos além de relacionamentos rápidos que nunca avançam muito. É em uma destas aventuras sexuais que ele conhece Ali (Dogac Yildiz), um stripper de site da internet.  A vida de Marius poderia seguir deste jeito até o fim de sua vida, não fosse o repentino falecimento de seu pai e algumas conversas que começam a fazê-lo repensar que o tempo está passando e que, talvez, estivesse na hora de repensar algumas diretrizes de sua vida - o que começa a envolver diretamente Ali e sua complicada realidade. Um amigo disse que O Advogado é quase "a versão queer de Uma Linda Mulher" e, vendo o filme, aos poucos comecei a entender o comentário. Para além do protagonista ser um advogado cínico que aos poucos começa a se desconstruir e revelar um bom coração, existe aquela sensação de ser a clássica história de Cinderela transposta para um contexto mais contemporâneo, em que uma espécie de príncipe encantado irá aparecer e resolver seus problemas. No entanto, O Advogado tem autoironia suficiente para brincar com todas estas referências. A forma como Ali rejeita o rótulo de vítima ou herói, a tensão que se estabelece entre os dois homens por conta das intenções que podem estar escondidas diante do desejo que só cresce entre os dois... também não faltam comentários sobre a simplificação de um indivíduo através dos rótulos não apenas sobre ser gay, bissexual, trans e, até mesmo, um refugiado (sem deixar de comentar que "os refugiados estão na moda"). No entanto, o filme precisa que o espectador compre a ideia de que o amor não apenas existe, mas é capaz de transformar pessoas, seja a revolta de Ali preso em Belgrado pelas burocracias governamentais, mas também o questionamento das regras na vida de Marius (que até então eram vistas como intransponíveis). O problema é que embora o filme encontre o caminho certo para desenvolver o romance que se estabelece entre os dois personagens (com ajuda da boa química entre os atores principais), no que tange ao contexto em que tudo acontece, existem muitas soluções simples para situações bastante complicadas. No fim das contas, fica a sensação da promessa de um final feliz sob a suspeita se ele seria realmente possível. Escrito e dirigido pelo lituano Romas Zabarauskas, o filme segue uma narrativa simples e sem firulas, mas que possui um uso inventivo no uso de cores. Não é por acaso que de vez em quando as cenas são cinzentas, avermelhadas ou até em preto e branco como se fosse um clássico filme sobre casais. Desde o início de sua carreira como cineasta, Romas deixou claro as suas intenções contra a homofobia, o que torna as intenções nobres de O Advogado um dos eixos de sua narrativa. 

O Advogado (Advokatas / Lituânia - 2020) de Robas Zabarauskas com Eimutis Kvosciauskas, Dogac Yildiz, Darya Ekamasova, Simonas Mozura e Heynce Saraf. ☻☻☻