sábado, 30 de setembro de 2023

HIGH FI✌E: Setembro

 Cinco filmes assistidos no mês que merecem destaque:

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PL►Y: Sinfonia Inacabada

 
Benjamín: talento à beira da loucura. 

Existem algumas experiências em assistir filmes que são muito interessantes, como por exemplo, ver um diretor estreante fazendo milagres com um orçamento minúsculo, um intérprete tendo a interpretação que mais chama atenção em um filme, assistir vários filmes seguidos de uma mesma nacionalidade... também gosto de descobrir o filme de estreia de um diretor consagrado após ver seu último trabalho. Foi assim que resolvi ver Sinfonia Inacabada (2006) do chileno Pablo Larraín após assistir seu premiado último longa, O Conde (2023). Os dois estão em cartaz na Netflix e embora sejam bastante diferentes entre si, carregam a assinatura autoral de um dos diretores latino-americanos mais prestigiados da atualidade. Sinfonia Inacabada conta a história de Eliseo Montálban (Benjamín Vicuña), ambicioso jovem músico que deseja criar uma sinfonia grandiloquente, mas no meio do caminho as coisas não saem como esperado. É neste ponto que o filme mergulha em cortes que parecem constituídos de ilusões e flashbacks, delírios e memórias, construindo um verdadeiro labirinto mental para o protagonista  - e deixando que  o espectador seja levado por tudo aquilo. Há quem estranhe a concepção narrativa do filme, mas conforme ele avança se torna cada vez mais interessante. Embora o filme seja costurado pela pelas intenções de um outro músico (Gastón Pauls), que tenta descobrir o paradeiro de Montálban para que a tal sinfonia do título seja finalmente concluída, eu gosto muito mais das cenas em que o protagonista interage com Claudio (Alfredo Castro, um dos atores que sempre que vejo em cena me torno cada vez mais fã), um homossexual que parece estar sempre no limite (enquanto planeja sua fuga do manicômio). Montálban pode ser considerado um artista genial, mas possui tantos fantasmas em sua mente que beira o impossível imaginar a conclusão de sua obra. Embora Larraín deixe a impressão que se perde aqui e ali na complexidade de suas ideias, considero que o último ato o redime de qualquer deslize. É angustiante a ideia que após caminhar em um labirinto, seus personagens cheguem em um beco sem saída, ou melhor, uma ilha no meio do nada - enquanto o compositor perdido encontre finalmente alguma paz. Desde sua estreia, Larraín apresenta seu interesse por personagens complicados, mas embora o filme não tenha recebido muita atenção de público e crítica na época (algo que só foi conquistado mesmo com Tony Manero/2008), o cineasta recebeu o prêmio de melhor cineasta estreante no Festival de Cartagena por esta carta de apresentação. 

Sinfonia Inacabada (Fuga / Argentina - Chile / 2006) de Pablo Larraín com Benjamín Vicuña, Gastón Pauls, Francisca Imboden, Alfredo Castro, Alejandro Trejo, Marcial Tagle e Héctor Noguera. ☻☻☻

MOMENTO ROB GORDON: GIRLS - 6 ANOS DEPOIS

Em 2012 estreava na HBO a série GIRLS. O programa teve cinco temporadas bastante comentadas, alcançando logo o auge em seu lançamento - mas passou a sofrer com os percalços em suas temporadas finais. Hoje a série  é criticada pela falta de diversidade no elenco principal e pelas desventuras de sua criadora, Lena Dunhan. O fato é que olhando fora da caixinha, Lena criou um programa sobre o amadurecimento de suas personagens com bastante ousadia (o que inclui as cenas de nudez de sua protagonista fora dos padrões de magreza. BodyPositive total!). Este Momento Rob Gordon tenta colocar em perspectiva o sucesso de cinco intérpretes principais da série após o término do programa em 2017:

#05 Jemima Kirke (Jessa Johansson)

A única britânica do elenco já havia trabalhado com a amiga Lena Dunhan em sua estreia no cinema com Mobília Mínima (2010). Quando foi escalada para ser a descolada Jessa, a produção teve que lidar com a surpresa da atriz estar grávida antes de começar as filmagens. Jemima provou ser uma atriz de recursos dramáticos respeitáveis em algumas situações que poderiam ter custado a antipatia dos espectadores. Com o fim da série, ela ainda não encontrou a devida atenção dos produtores. Embora tenha participado de alguns filmes, nenhum deles chamou atenção do público e da crítica. Após aparecer em 53 episódios de Girls, seu trabalho mais conhecido desde então foi como a diretora ardilosa da terceira temporada da cultuada Sex Education (2021) da Netflix. A atriz também pode ser vista na série Maniac (2018) no serviço de streaming.  


#04 Zosia Mamet (Shoshanna Shapiro)

Rotulada como nepobaby por ser filha do prestigiado dramaturgo/cineasta David Mamet e da atriz Lindsay Crouse, Zosia já havia participado de programas premiados como Mad Men e United States of Tara. Seu trabalho como  a jovem que sonhava em ser estilista a tornou mais conhecida e abriu portas para que participasse de novas produções no cinema e na televisão. Presente em 48 episódios da série, a atriz ainda concentra sua carreira em produções indies. Seus trabalhos  com maior prestígio na telona foram em Wiener Dog (2016) de Todd Solondz e O Mistério de Silver Lake (2018) do então badalado Robert David Mitchell. Na telinha, em 2015 ela apareceu em dois episódios de  Unbreakable Kimmy Schmidt e em 2019 foi destaque na versão repaginada de Crônicas de São Francisco, ambas produções da Netflix. Ao que parece Zosia segue sua carreira no mesmo ritmo antes do seriado da HBO. 

#03 Lena Dunhan (Hannah Horvath)

Antes de Girls, Lena havia lançado um filme aclamado em Sundance: Mobília Mínima (2010). Com sensibilidade para lidar com as inseguranças da passagem para a idade adulta, ela bolou Girls em muitos dilemas que presenciava em seu grupo de amigas e a ideia foi comprada pela HBO e pelo produtor Judd Apatow. Logo na primeira temporada, a atriz, diretora, roteirista e escritora foi considerada a voz de sua geração. Ao longo das temporadas, ela foi indicada sete vezes ao EMMY, ganhou o Globo de Ouro de atriz em série de comédia em 2013 - mesmo ano em que a série foi considerada a melhor série de comédia. Depois, Lena se envolveu em tantas polêmicas que sua imagem ficou gasta rapidamente. Com o fim da série, ela fez várias participações pequenas em seriados e apareceu em alguns filmes, o mais conhecido deles foi o indicado ao Oscar Era Uma Vez em Hollywood (2019) de Tarantino. Trabalhando mais como produtora nos últimos anos, Lena voltou a dirigir com Sharp Sick (2022) que não chamou muita atenção nos festivais em que passou. 

#02 Allison Williams (Marnie Michals)

Atuando na televisão desde 2004, a atriz tinha apenas um desafio: sair da sombra do seu pai (o jornalista Brian Williams). Quando ela cresceu e apareceu em Girls em 2012, seu desafio se tornou outro: provar que além de bonita, também tinha talento. Ela se incomodava bastante quando a rotulavam como "a amiga bonita" da protagonista. Ela queria ser muito mais que isso. Acabou que Marnie foi recebendo cada vez mais destaque na trama ao longo dos 53 episódios que participou - ao ponto de ser a única personagem que "sobreviveu" no último episódio ao lado de Hannah em 2017. Quando o seriado se despedia da televisão, Allison apareceu em Corra! (2017), filme de terror que foi indicado a cinco Oscars (incluindo filme e direção, levando para a casa o de roteiro original). Depois ela fez o suspense macabro A Perfeição (2019) da Netflix e apareceu recentemente no sucesso de M3GAN (2023) sendo a criadora da boneca dançarina (desculpe, não resisti) que terá uma sequência em 2025. 

#01 Adam Driver (Adam Sackler)
Adam era o crush da protagonista, mas ao longo dos 49 episódios em que aparece, ele rouba a cena sem piedade. Fato que lhe garantiu mais destaque do que qualquer um dos Boys do elenco (Christopher Abbott, Ebon Moss-Bachrach, Andrew Rannels, Alex Karpovsky...). Havia algo de diferente naquele ator (e não era só a aparência). Desculpe, meninas, mas o rapaz engatou uma carreira invejável ainda durante o seriado. Em 2014 ele foi considerado o melhor ator do Festival de Veneza com Corações Famintos. Mas seu currículo já acumulada trabalhos com os irmãos Coen, Spielberg e Noah Baumbach. Depois, o ator se tornou um dos maiores atrativos  da nova trilogia Star Wars na pele de Kylo Ren apresentado em O Despertar da Força. Não satisfeito o ex-marinheiro trabalhou com Jim Jarmusch Scorsese para depois ser indicado como ator coadjuvante num filme de Spike Lee (o ótimo Infiltrado na Klan/2018). No ano seguinte foi indicado ao Oscar de melhor ator por História de Um Casamento, sua quarta parceira com Noah Baumbach. Depois vieram trabalhos com Terry Gillian, Leos Carax, Ridley Scott e seu novo trabalho é como Enzo Ferrari no novo filme de Michael Mann. Parece que o ator tem em sua porta da geladeira uma lista de bons diretores com que quer trabalhar (e ele não sossega até concluir a lista)!

PL►Y: M3GAN

 
M3GAN: Inteligência Artificial também surta. 

M3GAN já era sucesso antes mesmo de estrear nos cinemas. O teaser, o trailer e algumas cenas que chegaram às redes sociais (como o singelo GIF que ilustra essa postagem) fez muita gente começar a ter interesse pelo filme. A dancinha da personagem diz muito mais sobre o longa do que você pode supor, afinal, os movimentos humanos abaixo da cabeça de uma boneca gera uma ideia tão estranha quanto divertida, ou seja, a matéria prima básica para agradar os fãs dos filmes de terror. A trama gira em torno de uma pequena órfã, Cady (Violet McGraw) que acabou de sobreviver a um acidente que vitimou seus pais. A menina agora foi morar com a tia, Gema (Allison Williams) que está passando por dificuldades na empresa de brinquedos tecnológicos em que trabalha. Visando a qualidade inovadora dos produtos, Gema acabou deixando o valor de produção alto demais para que a empresa alcançasse o sucesso de venda esperado. Embora a empresa ordene que ela aprimore um bichinho falante horroroso, ela tem outros planos: criar uma boneca com Inteligência Artificial. A boneca é a M3GAN, que logo será aprimorada para se tornar a companhia perfeita para a tristonha Cady e uma legião de crianças que não tem a atenção de seus responsáveis. A inventora pode até ter boas intenções, mas como o inferno anda cheio delas, a sua criação irá se tornar mais do que a melhor amiga de sua sobrinha, se tornará uma espécie de psicopata de estimação. O diretor Gerard Johnstone (de Housebound/2014) cozinha a tensão lentamente, estreitando cada vez mais os laços entre a criança e o protótipo de M3GAN, deixando a relação da menina com a tia cada vez mais de escanteio, dando sinais de que o brinquedo pode se tornar uma ameaça cada vez que considera que a menina está em risco. Quando a boneca surta a coisa complica e a sanguinolência resulta bem mais contida do que eu esperava. Isso não é um defeito, pelo contrário, chega a ser uma qualidade que demonstra que o filme tem muito mais a proporcionar. Em tempos de paranoia com chat GPT e seus semelhantes, M3GAN cai como uma luva. Muitos apressados compararam o Chucky de Brinquedo Assassino (1988), mas a inspiração dos roteiristas Akela Cooper e James Wan (tinha que ser...) está mais vinculada à Ava (Alicia Vikander) de Ex-Machina (2014) e quem assistiu ao filme de estreia de Alex Garland na direção sabe exatamente o motivo. A ideia da invenção que se torna mais esperta que seus criadores recebe aqui um tratamento menos complexo, mas bastante vívido para um público mais amplo, com direito até à uma crise de abstinência quando a garotinha precisa se separar de sua amiga tecnológica. Parece exagero? Já tentou tirar o celular de alguém que o tem como sua maior companhia? Embora tenha o rosto conhecido de Allison Williams, o destaque do elenco fica por conta da menina Amie Donald, que empresta o corpo sob a máscara para a boneca doida de pedra. Por não se levar a sério, M3GAN funciona por fazer humor e terror num equilíbrio bastante envolvente. O público agradece  - doido para ver uma sequência em breve. 

M3GAN (EUAA-2023) de Gerard Johnstone com Allison Williams, Violet McGraw, Amie Donald, Jenna Davis, Ronny Chieng, Jen Van Epps, Brian Jordan Alvarez, Lori Dungey e Stephane Garneau-Monten. ☻☻☻

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

NªTV: The Bear - 2ªTemporada / Na Mira do Júri

 
Liza e Jeremy: ponto de evolução.  

A primeira temporada de The Bear é uma das coisas mais legais que a TV recente logrou fazer. Quando você pensa que já viu de tudo no mar de séries que estão disponíveis na atualidade, ver as angústias dos bastidores de um restaurante medíocre, que pretende alcançar voos mais altos, é mais envolvente do que a maioria dos espectadores poderia supor. A angústia toda se instaura com a chegada de Carmy (o ótimo Jeremy Allen White), um renomado chef de cozinha que ganhou fama nas cozinhas da Europa e voltou para os Estados Unidos ao herdar do irmão um restaurante que era administrado meio que de improviso. Carmy recebe no pacote um grupo de funcionários que estão acostumados a fazer o que sempre fizeram sem muito capricho ou exigências, além da convivência com um problemático amigo de longa data que costuma chamar de primo (Ebon Moss Bachrach) e outros velhos conhecidos, Carmy também recebe a companhia de uma jovem, Sidney (Eyo Edebiri) que pretende ser algo mais no mundo da culinária. Entre todas as desventuras da primeira temporada, a série mantinha um ritmo estafante que se enriquecia ainda mais quando especulávamos, junto com Carmy, um pouco mais sobre a personalidade do dono original do restaurante, que cometeu suicídio. Paira sobre o restaurante The Beef o fantasma de seu antigo dono - e ele pesa mais do que todos imaginavam. A segunda temporada engata a trama a partir do otimismo final da temporada anterior, colocando seus personagens diante de uma reforma íntima, algo que pode ser tão assustador quanto à reforma do restaurante com suas paredes quebradas, mofo, sistemas de segurança em perigo e pratos em reconstrução.  Desta jornada alguns personagens irão emergir totalmente diferentes (os casos mais notáveis serão do tal primo e de Tina, um momento ainda mais inspirado de Liza Cólon-Zayas). No meio do caminho tem um episódio que coloca a família de Carmy num microscópio e o resultado é tão desconfortável (ou seria insuportável?) como revelador, sobre o jovem chefe e seu clã. Prova do prestígio da série são as participações especiais (Jamie Lee Curtis, Olivia Colman e um surpreendente Will Poulter), mas... a segunda temporada de The Bear me pareceu um tanto esquemática que soou previsível a casa novo episódio. São dez episódios com estrutura bastante similar até a season finale tão esperada quanto catastrófica para as emoções de Carmy. Compreendo que a segunda temporada costuma ser a mais difícil de uma série, mas aqui me dei conta como ela sacrifica o sabor de frescor e novidade de uma produção. Talvez por isso eu tenha gostado muito mais da primeira temporada de Na Mira do Júri, um programa bem menos badalado que The Bear, mas que conseguiu preciosas indicações ao EMMY: série de comédia, roteiro de comédia, ator coadjuvante em série de comédia (James Marsden) e melhor elenco de comédia. Espécie de mistura entre sitcom, reality show e documentário, Na Mira do Júri é uma delícia de assistir.  A série conta em oito episódios as desventuras diante de um julgamento. Este será o último trabalho de um juiz prestes a se aposentar e para evitar que tenha problemas, ele opta por confinar todo o júri até o dia do veredicto. Obviamente que ninguém gosta muito da ideia, mas conforme os membros vão se conhecendo, algumas situações bastante particulares começam a acontecer. O julgamento e o júri são acompanhados por uma equipe de filmagem que está fazendo um documentário sobre o cotidiano de jurados nos Estados Unidos. Ah claro, tem um detalhe importante, são doze jurados e apenas um rapaz não faz ideia de que tudo aquilo é uma simulação. É isso mesmo. O réu, o juiz, os policiais, os demais jurados, todos são atores, menos um jovem chamado Ronald Gladden, que trabalha com painéis de energia solar e que acredita que realmente se trata de um julgamento de verdade. Ele apresenta um empenho notável quando é escolhido como presidente do júri. Para Ron o único ator é James Marsden, que está doido para sair do confinamento e voltar à fazer filmes. Obviamente que o Marsden que vemos aqui é a pior versão possível que o eterno Ciclope de X-Men poderia ser. Egocêntrico e esnobe, ele talvez seja a maior distração para que Ron não perceba que é tudo uma grande farsa. O mais legal é ver a forma como Ronald lida com a liderança do grupo, procurando aparar as arestas das relações entre os membros do júri e revelando ser um rapaz de coração de ouro. O apreço que temos por este sujeito comum só cresce e transborda a partir do momento que ele descobre que foi tudo uma encenação. É realmente um dos momentos mais emocionantes que já vi em um programa de TV recente, além disso o último episódio é todo dedicado a mostrar como foi difícil manter toda aquela situação e contornar qualquer suspeita de  Ron. Se The Bear foi a marca da inovação na temporada 2022, o posto desse ano fica com Na Mira do Júri. A série está em carta no Prime Video.  

O júri: a pegadinha do ano. 

Na Mira do Júri (Jury Duty/EUA-2023) de Jake Szymanski com Ronald Gladden, James Marsden, Alan Barinholtz, Cassandra Blair, Susan Berger, Ross Kimball, David Brown, Kirk Fox, Pramode Kumar, Rashida Olayiwola, Mekki Leeper, Ishmel Sahid e Ron Song. ☻☻☻☻☻

The Bear - 2ª Temporada (EUA-2023) de Christophe Storer com Jeremy Allen White, Ebon Moss-Bachrach, Ayo Edebiri, Lionel Boyce, Corey Hendrix, Liza Colón-Zayas, Oliver Platt e Jamie Lee Curtis. ☻☻☻

PL►Y: Elementos

 
Faísca e a família do namorado: amor impossível?

Pode se dizer que 2023 foi um ano estranho para filmes que eram muito aguardados. Houve mês em que todos os projetos que tinham grandes expectativas nas bilheterias amargaram verdadeiros fracassos. No meio disso tudo, surgiu um fenômeno estranho nos comentários sobre o cinema: a ideia de que um filme que tem uma estreia ruim rende um flop. A História já demonstrou que um fator não é garantia do outro. Obviamente que uma boa estreia garante a alegria de todos os envolvidos no projeto, além de projetar um filme como algo digno da atenção de quem ainda não o assistiu na estreia. No entanto, torna-se um erro chamar de fracasso um filme que tem estreia abaixo das expectativas (o primeiro Pânico/1996, por exemplo, foi muito mal na sua estreia e a franquia perdura até hoje). O novo filme da Pixar, Elementos demonstrou isso com louvor. A estreia não deixou ninguém muito empolgado. Foi criada então a ilusão de que as pessoas deixariam para ver o filme no Disney+, algo que se tornou um verdadeiro pesadelo para o estúdio que viu vários de seus projetos estrearem diretamente no streaming. O fato foi que depois de uma estreia mediana, o filme conseguiu chamar atenção nas semanas seguintes, conseguindo alavancar a bilheteria a longo prazo e se tornar um sucesso. O sucesso se repetiu quando o filme chegou nas plataformas digitais e se consagrou como o maior sucesso da Pixar em muito tempo. O estúdio, que foi absorvido pela Disney, precisava muito desse resultado positivo. Pode se dizer que desde o genial Divertida Mente (2015), o estúdio tem patinado em seus projetos que estão longe de ter o brilhantismo de outrora (o filme do solo do Buzz Lightyear lançado ano passado nem gerou vontade de escrever algo sobre). É como se acontecesse com a inovadora Pixar o mesmo que acontece atualmente com a Marvel ao ser engolida pela dona do Mickey e sua turma. Vendo elementos, percebo que mesmo tendo um tema diferente, ele se aproxima muito do que já vimos em Divertida Mente ou em Soul (2020): a ideia de representar algo muito abstrato para os pequenos num universo de fantasia bastante vívido. Antes era a mente de uma criança, depois foi o mundo dos espíritos, agora são os elementos. Ao menos a base de tudo aqui é diferente: a história de amor entre dois jovens que são totais opostos. Eu sei, não soa original, mas ajuda imaginar que são opostos em sua essência. Uma é uma descendente de pessoas do fogo, a Faísca (voz de Leah Lewis) que tem a cabeça um tanto quente, o que atrapalha o fato dela ser a futura herdeira da loja de seus pais. A mocinha tem bastante dificuldade em lidar com sua clientela e, vez por outra, tem um surto. Num desses episódios ela acaba conhecendo Gota (voz de Mamoudou Athie), descendente de outra linhagem elemental: o fogo. Gota é sensível e chorão, assim como toda sua família, mas não é bem visto pelas pessoas do fogo, afinal, todos sabemos o efeito que a água pode ter sobre o fogo e vice-versa. Eis que os dois vão tentar resolver os problemas nos negócios familiares de Faísca e seus pais e gostar cada vez mais um do outro. A história de amor entre os dois é muito bonitinha, explorando os efeitos que um personagem pode ter sobre o outro como uma analogia entre a relação de opostos que se atraem. O visual do filme também é deslumbrante na construção de uma cidade em que vários elementos se misturam e que pessoas do fogo são visto na maioria das vezes como ameaçadoras. No entanto, as habilidades de Faísca deixam bem claro que quando bem manuseado, o calor do fogo pode conceber maravilhas, não por acaso, mesmo as pessoas do fogo sendo vistas com preconceitos durante o filme, aos poucos descobre-se que a grande ameaça aos personagens do filme é a força da água, que também pode ser destruidora. Quando precisa dar conta da relação entre os protagonistas o filme funciona como uma comédia romântica em formato de animação, o problema é o que está em torno deles nunca ser devidamente aprofundado, como o dilema de Faísca com o negócio dos seus pais e o desenvolvimento ralo de todos os personagens que estão em tornos dos principais. Elementos não se compara ao brilhantismo dos grandes clássicos da Pixar, mas tem qualidades que justificam o sucesso do longa entre o público. 

Elementos (Elemental / EUA - 2023) de Peter Sohn com vozes de Leah Lewis, Mamoudou Athie, Ronnie Del Carmen, Shila Ommi, Catherine O'Hara e Joe Pera. 

domingo, 24 de setembro de 2023

PL►Y: O Conde

Castro: à sombra do vampiro Pinochet. 

Pablo Larraín adora contar histórias sobre personagens reais. Foi assim quando caiu no radar do Oscar pela primeira vez com No (2012), que rendeu ao Chile uma indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro.  Depois ele também contou os piores dias da vida de Jackeline Kennedy em Jackie (2016), rendendo uma indicação Oscar para Natalie Portman. Fez o mesmo com Lady Di em Spencer (2021) gerando o que muitos achavam impensável: indicar Kristen Stewart ao Oscar. Entre os dois, ele fez Neruda (2016) sobre a perseguição ao poeta de seu país. Agora chegou a vez de Larraín contar a história de Claude Pinochet (não é Augusto, é Claude mesmo), um vampiro de pais desconhecidos que fugiu da Europa para a América Latina. Seguiu carreira no exército e instaurou um golpe militar no Chile em 1973. Pinochet ficou no poder de 1973 até 1990, marcando a história de seu país com violenta repressão contra quem considerasse inimigo. Quando chegou ao poder ele já era casado com Lucía Hiriart Rodriguez, com quem teve cinco filhos. As perseguições e torturas renderam mais de três mil mortes no país, uma situação tão grave que o fez ser foi condenado pela Comissão dos Direitos Humanos da Organizção das Nações Unidas. Após o término de seu regime ditatorial, sofreu mais de trezentas ações criminais envolvendo corrupção e assassinato. Quando simulou sua morte em 2006 no Hospital Militar em Santiago no Chile, ele se ressentia das pessoas não gostarem dele. Enfim. Esta é só uma parte dos 50 anos de um vampiro que viveu disfarçado entre os meros mortais - se alimentando do coração de algumas pessoas que cruzaram o seu caminho (o que explica muito do seu instinto sanguinário). Pelo menos, essa é a ideia que Pablo Larraín apresenta em O Conde, uma comédia de humor sinistro sobre uma das figuras mais nefastas da história da humanidade. Aqui, Pinochet é vivido por Jaime Vadell (que protagoniza meu filme favorito de Larraín, O Clube/2015), que está estranhamente convincente como um vampiro cansado da vida eterna. A esposa (Gloria Münchmeyer) agora o trai com o homem que era de sua confiança, o também sanguinário Fyodor (Alfredo Castro outro ator favorito da filmografia do cineasta), que também foi transformado em vampiro em agradecimento. Nada mais justo. Os cinco filhos só desejam que o pai morra para que herdem a fortuna que ele acumulou ao longo do tempo e, de certa forma, esperam que isso aconteça com a chegada da freira Carmencita (Paula Luchsinger) que pretende eliminar todo o mal daquele corpo (mas será que restará alguma coisa? Os filhos acreditam que não). No entanto, existe um imprevisto na atração entre o Conde decrépito e sua curadora. Larraín tem um bocado de coragem para se aventurar a fazer troça de uma figura tão sombria da história de seu país. A faz usando referências clássicas do terror, especialmente as vinculadas aos vampiros, ao ponto de criar cenas escabrosas como se estivesse comendo jujubas. A fotografia em preto e branco ajuda a dar um tom clássico e pomposo ao que é uma sátira, além de tornar mais assistível as cabeças decepadas, as estacas em ação, as cenas de carnificina, os corações batidos em liquidificadores e bebidos como vitamina [sic] por boa parte do elenco. Fora o texto é genial, tanto que foi premiado como melhor roteiro no Festival de Veneza que terminou no dia último dia 09. No entanto, a não escolha do filme para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro revela que não é um filme para todos os gostos, mas pode ser um deleite para quem capturar as referências históricas que aparecem ao longo da trama - inclusive quando se revela a mãe de Claude Pinochet, a Margaret (Stela Gonet).  O Conde já está em cartaz na Netflix e acho que deve ter uma cota considerável de investimento para figurar na temporada de prêmios que se aproxima. Acho que a Netflix começou sua temporada de pérolas do streaming!

O Conde (El Conde / Chile - 2023) de Pablo Larraín com Jaime Vadell, Alfredo Castro, Gloria Münchmeyer, Paula Luchsinger, Catalina Guerra, Amparo Noguera, Antonia Zegers, Stella Gonet, Marcial Tagle, Jaime McManus, Marcelo Alonso, Clemente Rodríguez, Diego Muñoz e Rosario Zamora. ☻☻☻☻

PL►Y: Paradise: Hope

Lorenz e Melanie: corpos nada dóceis. 

Melanie (Melanie Lenz) é uma garota de treze anos que a mãe acabou de tirar férias e ir para o Quênia. Ela, no entanto, foi passar o tempo numa colônia de férias que é na realidade uma espécie de SPA para adolescentes que estão acima do peso. A rotina é composta de fazer exercícios, receber conselhos nutricionais e se deliciar com comidas que não são muito atraentes. Obviamente que, por pior que seja esse ambiente, o grupo de adolescentes irão encontrar momentos para se divertir, mesmo que isso renda algumas punições. Obviamente que falando de adolescentes, não podemos esquecer os hormônios em ebulição que deixa alguns mais interessados em outros, alguns relatam suas experiências sexuais e outros vivem seus complexos com os corpos fora dos padrões. Não é por acaso que a terceira e última parte da trilogia Paraíso de Ulrich Seidl parece ser ambientada no inferno para adolescentes que já possuem problemas demais com a sua autoimagem. Melanie é a filha da sugar mamma de Paraíso: Amor (2012) e sobrinha da missionária fervorosa de Paraíso: Fé (2012) e aqui, a mocinha é a protagonista que terá problemas com alguém do sexo masculino. Se a primeira pagava para ter prazer com jovens quenianos e a segunda fugia do marido como o diabo foge da cruz, aqui, Melanie sofre com as incertezas do primeiro amor. No entanto, ela não está interessada em um jovem de dieta, ela está apaixonada por um dos médicos que prestam atendimento no campo em que ela foi passar as férias. Isso mesmo. Melanie se apaixona por Dr. Arzt (Joseph Lorenz), um homem quarenta anos mais velho que ela. O que poderia dar ao filme um aspecto explosivo, na verdade revela que depois das provocações dos filmes anteriores, Siedl preferiu implodir a sua premissa. A estranha atração entre Melanie e Arzt é evidente desde o primeiro momento em que estão juntos e se torna cada vez mais intensa ao longo do filme, embora ambos saibam o quão inadequado é toda aquela situação. A tensão surge da impressão que a qualquer momento, Arzt irá cruzar a linha do bom senso e sucumbir ao que sente pela menina, ou melhor ao que ela o faz sentir. Parece até uma variável de Lolita de Vladmir Nabokov, mas feita com discrição e sutileza inimagináveis após o que vimos nos filmes anteriores. A plateia observa atônita o jogo de atitudes que se instaura entre os dois personagens, soando por vezes como algo tão cômico como a repetição de exercícios a que as crianças precisam fazer ao longo do dia. Melanie Lenz está bastante convincente como a menina perdida nos sentimentos que a atravessa, mas não deixa de revelar que sua atração por aquele homem grisalho se relaciona um bocado com sua carência e outro tanto na esperança de que a maturidade a fará superar todas as inseguranças que sente. Melanie parece ver em Arzt uma fetichização da maturidade, algo para além das inseguranças de sua recém iniciada adolescência. Existe a ilusão que aquele senhor é responsável e que ser aceita por ele é se diferenciar entre todos os demais de sua idade. Enquanto isso, para Arzt, as investidas de Melanie refletem a necessidade de que ainda é um homem desejável e atraente. Porém, se ambos sucumbirem à atração que sentem, haverá a negação de tudo que um projeta no outro. Um ato sexual negaria a inocência da menina e a maturidade do médico experiente. É a encruzilhada desse limite que faz de Paraíso: Esperança um filme bastante diferente dos anteriores. A ideia provocadora permanece na esperança de um de que o outro se renderá, o que só denota o  humor ácido da trilogia. No entanto, o paraíso de seus personagens, amparados pelo desejo possam inspirar (independente de estarem acima do peso ou gasto pelo tempo), revela a sutil esperança que toda aquela sensação vai passar. Resta esperar, ou melhor, resistir. 

Paradise: Hope (Paradies: Hoffnung / Áustria - França - Alemanha /2013) de Ulrich Seidl com Melanie Lenz, Joseph Lorenz, Verena Lehbauer, Michael Thomas, Arabel Aigner, Vanessa Ecker e Maria Hofstätter. 

PL►Y: Que Horas eu Te Pego?

 
Jennifer e Ander: os opostos se atraem? 

Aos 33 anos de idade, Jennifer Lawrence possui uma carreira notável. São 120 prêmios ao longo da carreira, incluindo um Oscar por O Lado Bom da Vida (2012), embora considere que outras indicações sejam por trabalhos que fossem mais dignas de vitória (melhor atriz por Inverno da Alma/2010 e  coadjuvante por Trapaça/2013, ela ainda tem uma indicação como protagonista por Joy/). Embora também tenha blockbusters no currículo, são em filmes que necessitam de sua vertente mais dramática que ela costuma ser lembrada. J.Law fez pouca comédia ao longo dos anos. Parece que já começou a carreira como atriz "séria a ser respeitada", afinal, sua primeira indicação a prêmios veio quando ela tinha vinte anos. Recentemente ela realizou uma pausa de dois anos na carreira. Casou. Teve um bebê. Voltou ao batente em 2021 com Não Olhe para Cima e lançou Passagem no ano passado. Portanto, fica ainda mais interessante que esse ano ela tenha produzido uma comédia do quilate de Que Horas Eu Te Pego? Trata-se de uma comédia sexual que faz tempo que Hollywood não se aventura a lançar no cinema e, ainda mais com toda onda do politicamente correto sedento para apontar qualquer deslize que seja feito. Bem, Que Horas eu Te Pego? Pode ser visto como um abraço gigantesco nos deslizes desse tipo de filme. No entanto, não está nem aí para isso. Ofensivo mesmo o filme não é. Tem algumas piadas que desafiam o bom gosto. Diálogos provocadores. Alfinetadas aqui e outras ali, mas o filme se sustenta de pé porque debaixo de toda pretensa subversão ele tem um coração. Na verdade, dois corações. Um deles está na personagem de Jennifer, Maddie, uma mulher de 32 anos que faz de tudo para manter a casa que a mãe recebeu do homem da qual era amante, em troca, ela não poderia nunca procurá-lo com procurasse com a filha bastarda (Maddie) debaixo do braço. A vida financeira da moça não é fácil, já que ela acaba de perder o carro com que faz serviço de motorista de aplicativo e as despesas não esperam para serem pagas. Ela observa os visitantes endinheirados que vão para as praias locais com um bocado de ressentimento por terem uma vida melhor do que ela jamais terá. O outro coração do filme é de Percy (Ander Barth Ferldman), um rapaz de dezoito anos que está prestes a ir para a conceituada universidade de Princeton, mas cujos pais estão desesperados com sua inexperiência. Percy é virgem. Não bebe e ainda mantem uma ingenuidade quase infantil perante o mundo. Verdade seja dita que seus pais colaboraram muito para deixa-lo eternamente dentro da "concha" ao longo da vida. Como os dois corações do filme se cruzam? Bem. Os pais do moço resolvem contratar uma mulher para deixa-lo, digamos, mais experiente. Em troca da empreitada, a responsável pelo... "crescimento" do menino irá ganhar um carro. Maddie não parece o tipo ideal para o serviço, mas seu empenho é notável! O problema é que o rapaz é um bocado resistente, gerando situações sempre constrangedoras para ambos.  A direção de Gene Stupnitsky, que assina o roteiro ao lado de John Phillips, capricha nas situações atrapalhadas entre os dois personagens, às vezes apelando para o inusitado da mistura de um rapaz comportado com uma mulher desvairada. O contraste entre os dois rende boas risadas, especialmente quando desafia os limites do bom senso, funcionando funciona justamente pelo tom de brincadeira exagerada. Destaque para o trabalho desavergonhado de Lawrence (que tem até cena de luta sem roupa na praia) e o carisma de Ander, que  pode não ser conhecido - embora seu rosto me parecesse conhecido o filme inteiro, só depois descobri que ele interpretou o Linguini numa versão musical de Ratatouille (sim, ele parece com o personagem cozinheiro), mas dá conta direitinho dos dilemas de seu personagem cheio de curiosidade e medo em proporções iguais. Para dar algum equilíbrio, o filme tem lá seus momentos dramáticos que não atrapalham, pelo contrário, nos faz importar ainda mais com os dois. O problema mesmo é o final sem graça para algo que desejava ser tão provocador. Serve para passar o tempo e está em cartaz no HBOMax.

Que Horas eu Te Pego? (No Hard Feelings/EUA -2023) de Gene Stupnitsky com Jennifer Lawrence, Ander Barth Feldman, Matthew Broderick, Laura Benanti, Natalie Morales, Scott MacArthur e Ebon Moss Bachrach. 

#FDS Novos Clássicos BR: Cinema, Aspirina e Urubus

 
Miguel e Ketnath: perdidos num sertão de luz. 

Para encerrar o #FimDeSemana dedicado a Novos Clássicos do Cinema Brasileiro, escolhi um filme de deveria ser lembrado mais vezes pelo público. Cinema, Aspirina e Urubus do pernambucano Marcelo Gomes é o tipo de filme que prova ser bom na marra. O orçamento era pequeno. O filme não contava com nomes muito conhecidos no elenco. A assinatura do Marcelo Gomes também não soava grande referência para o público, já que após dirigir curtas e um longa (Os Brasileiros/2000) o cineasta ainda era um ilustre desconhecido. A trama também parece bastante simples: em 1942, enquanto a Segunda Guerra Mundial assombrava o mundo, um alemão dirigia pelo sertão nordestino projetando propagandas de Aspirina para alavancar as vendas do medicamento em vilarejos completamente afastados dos grandes centros. Johann (o ótimo Peter Ketnath) pretendia mesmo fugir da guerra quando veio para os cafundós do Brasil e seu olhar estrangeiro faz com que tudo lhe soe interessante. Quem cruza seu percurso e fica ao seu lado é Ranulpho (o perfeito João Miguel),  nordestino que sonha em chegar ao Rio de Janeiro, a capital do Brasil na época. Se Johann observa a realidade dos vilarejos em que passa com um olhar bastante afetuoso (provavelmente por estar distante da realidade assustadora que presenciou em seu país), Ranulpho é o oposto. Sempre parece um tanto insatisfeito, mal humorado e rabugento com seus compatriotas (ainda que João Miguel o faça com uma leveza irresistível). Pode se dizer que a explicação para sua postura é uma espécie de negação do que se é, a ideia maldita de que desmerecendo o semelhante torna-se algo melhor do que ele. Mas Ranulpho não é um mal sujeito, pelo contrário,  leal ao seu companheiro de estrada e bem intencionado na maioria das vezes, sua postura às vezes irritadiça soa mais como um processo de desapego à realidade social que o cerca. Pelas estradas poeirentas que atravessam, os dois personagens percebem suas diferenças, o que não impede que se tornem amigos, mesmo quando a realidade mundial atravessa a vida de ambos de forma definitiva. A história é inspirada nos relatos do  tio-avô do cineasta, o Ranulpho Gomes, que conheceu um alemão que exibia filmes e vendia aspirinas pelo Brasil inteiro até que, com o advento da Segunda Guerra Mundia,l a fábrica da Bayer  no Brasil foi fechada e o vendedor de aspirinas precisou tomar outro rumo na vida. O carinho com que Marcelo Gomes conta sua história é visível em cada cena. Cada encontro e diálogo entre os personagens é perfeitamente lapidado (a cena de Hermila Guedes é um verdadeiro achado), além disso, a forma como a fotografia trata as paisagens áridas como um deserto de luz é fascinante. O trabalho do fotógrafo Mauro Pinheiro Jr. é um verdadeiro primor! Talvez por eu ser filho de nordestino (meu pai era cearense, com muito orgulho), as andanças e conversas entre os personagens me pareçam bastante próximas, semelhantes a relatos e descrições que cresci ouvindo nos almoços em família. Esta autenticidade regional transborda do filme e o torna um verdadeiro marco para o cinema brasileiro do século XXI. Existe aqui uma homenagem singela à emoção provocada pelo cinema com suas imagens projetadas em uma tela, mas também uma história sobre relações sociais, política e poder. Cinema, Aspirina e Urubus foi feito com pouco dinheiro, mas tem criatividade de sobra para lidar com as limitações no orçamento. O grande acerto do filme foi a escolha de sua dupla principal. Marcelo Gomes escolheu João Miguel após vê-lo na peça Bispo sobre Artur Bispo do Rosário, considerando que os olhos esperançosos do ator era o que seu Ranulpho precisava para provocar a empatia da plateia. Já Ketnath foi indicado por uma atriz brasileira que morava em Berlim. O alemão se apaixonou pelo projeto e trabalhou por uma quantia simbólica e seu desempenho é igualmente memorável. O filme recebeu 37 prêmios ao longo de sua carreira, entre eles três estatuetas no Grand Prêmio Cinema Brasil (Filme, direção e roteiro, mas João Miguel merecia de ator e Ketnath poderia ter sido indicado também, também não entendo como a fotografia não foi premiada).  Cinema, Aspirina e Urubus foi o escolhido para representar o Brasil em uma vaga no Oscar de Filme Estrangeiro de 2007 após receber elogios no Festival de Cannes e críticas positivas em publicações do porte de The New York Times, Variety e Hollywood Reporter. A indicação acabou não acontecendo, mas o filme é reconhecido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Eu o colocava numa lista dos vinte melhores sem pestanejar...

Cinema, Aspirina e Urubus (Brasil/2005) de Marcelo Gomes com Peter Ketnath, João Miguel, Hermila Guedes, Irandhir Santos e Fabiana Pirro. 

sábado, 23 de setembro de 2023

# FDS Novos Clássicos BR: Cidade de Deus

 
Buscapé na mira: o filme mais lucrativo do cinema brasileiro. 

Fiquei assustado quando me dei conta de que Cidade de Deus completou vinte anos em 2022. Se eu disser que assisti o filme no cinema, acho que entrego demais a minha idade atual... o mais engraçado é que naquela época eu estava na faculdade e olhei com muita desconfiança a adaptação de Fernando Meirelles e Kátia Lund para o livro de Paulo Lins. Durante muito tempo fui bastante crítico com a forma com que o filme apresentava a história, especialmente no tom cômico quando se tem a impressão que estamos diante de um bando de personagens calcados em uma população pobre pronta para ser exterminada. Seja pelas autoridades, seja pelos seus pares que se envolvem com a criminalidade, seja por facções rivais... neste mundo em que a vida está sempre em risco, somos guiados por Buscapé (Alexandre Rodrigues) que tenta manter a cabeça no lugar em sua trajetória rumo à sobrevivência. Diante de toda a miséria financeira e humana que está ao seu redor, ele possui sonhos e deseja seguir um caminho diferente de tantas outras pessoas com quem conviveu enquanto crescia na Cidade de Deus. O fato é que enquanto Buscapé é o fio condutor da história, narrando a ascensão e queda de vários personagens que fizeram história em sua comunidade, o roteiro conta a história de um país que adora manter a pobreza distante dos seus olhos, afinal, a Cidade de Deus, foi um programa social que pegou um bando de cidadãos em situação de vulnerabilidade social e mandou para bem longe do centro urbano (tal e qual a Nova Sepetiba que serviu de cenário para locações do filme). O nome da cidade parece uma alusão ao "Deus dará" (expressão que uma senhora uma vez disse para minha mãe enquanto atravessamos a Baía de Guanabara de Barca, para logo depois ela emendar: "moro naquele lugar que até Deus esqueceu, a Cidade de Deus"). Como aparece no filme, o Estado aparecia por lá somente fardado de polícia, enquanto as garantias sociais eram cada vez mais esquecidas. Não era difícil imaginar que a criminalidade se alastraria por lá. É banhada nesta tensão que acompanhamos a história de personagens que se tornaram marcos na cinematografia nacional. Pode se dizer que o filme divide a história local em duas partes, na primeira conhecemos a origem daquele lugar e alguns personagens do porte de Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Berenice (Roberta Rodrigues), que vivem uma das cenas mais comoventes do filme, mas que são parte de um passado que irá transformar Dadinho (Douglas Silva) no temido Zé Pequeno (Leandro Firmino) - dono de uma das frases mais antológicas do cinema nacional. Misture aí o galã Mané Galinha (Seu Jorge), o triângulo amoroso entre Buscapé, Angélica (Alice Braga) e Bené (Phellipe Haagansen), inúmeros digressões e um ritmo vertiginoso impresso pela montagem de Daniel Rezende para dar conta de tantas histórias que se misturam num painel bastante envolvente sobre personagens periféricos. Lembro que quando vi o filme no cinema era comum ouvir as gargalhadas da plateia nos momentos mais hediondos. Aquilo me assustou. Mas revendo o filme hoje não vejo como uma falha do filme, mas do olhar dos espectadores sobre aqueles personagens imersos em violência. Uma violência não apenas físicas e de mão armada, mas também simbólica e social que por vezes  impede que sejam vistas como pessoas feito nós, mas que são rotuladas por nossos preconceitos. Revi o filme umas duas vezes e cada vez mais minhas críticas foram enfraquecendo. Não sei se é por eu ter envelhecido ou por ter compreendido melhor todo o requinte da narrativa, que por muitos foi chamada de "cosmética da fome" por ter mais estilo do que verdade. Será? Não imagino que se a história fosse a mesma contada com câmera estática e fotografia sem foco o filme traria mais verdade. Talvez trouxesse mais sono na ambição de retratar uma realidade que nunca daria conta de ser desbravada em um filme com duas horas de duração. Ainda que Meirelles tenha vindo do mercado publicitário, trata-se de um verdadeiro equívoco rotular seu filme como algo menor. Admito hoje que Cidade de Deus é Cinema com C maiúsculo e A de Arte em letras garrafais. Este meu olhar revisitado sobre o filme é ainda mais interessante quando lembro que o filme, lançado em 2002, foi o escolhido brasileiro para ser indicado ao Oscar de filme estrangeiro no ano seguinte e acabou esnobado. Porém, conforme o filme ganhou fama mundial, em 2024 foi lembrado em quatro categorias: roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), montagem (Sérgio Rezende), fotografia (César Charlone) e Direção (Fernando Meirelles). Praticamente um pedido de desculpas pela cegueira da Academia em enxergar os méritos do cinema estrangeiro. Com 75  prêmios internacionais no currículo e outras 50 indicações, Cidade de Deus carimbou a carreira internacional de Meirelles que buscou desde então fazer filmes diferentes deste aqui (e ele caiu no radar do Oscar novamente com O Jardineiro Fiel/2005 que rendeu o Oscar de coadjuvante para Rachel Weisz). Lembrado em várias listas como um dos melhores filmes da história do cinema e sendo o filme brasileiro de maior bilheteria internacional, o tempo tornou Cidade de Deus em algo maior do que um clássico, mas em uma referência cinematográfica. 

Cidade de Deus (Brasil - 2002) de Fernando Meirelles e Kátia Lund com Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Douglas Silva, Alice Braga, Jonathan Haagansen, Roberta Rodrigues, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Phellipe Haagansen, Darlan Cunha, Thiago Martins e Graziella Moretto. ☻☻☻

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

#FDS Novos Clássicos BR: Central do Brasil

 
Josué e Dora: coração apertadinho. 

Acho que meu sobrinho tinha três anos quando ele acordou no meio da tarde e a TV estava ligada enquanto eu assistia Central do Brasil. Ele abriu os olhos. Sentou na cama e ficou observando a tela por alguns minutos até que minha irmã o chamou para alguma coisa e ele me perguntou o que ia acontecer com o menino. Se o filme de Walter Salles já era um dos meus filmes brasileiros favoritos de todos os tempos, depois de ver os olhinhos preocupados do meu sobrinho, eu tive a certeza do alcance inacreditável que o filme tem perante o público. Afinal, desde que conhecemos Josué (o então estreante Vinicius Oliveira) e mais ainda quando descobrimos o destino de sua mãe, a pergunta que se instaura em nossa mente é exatamente essa: o que vai acontecer com o menino? Pequeno. Indefeso. Sem pai. Desamparado na cidade na cidade purgatório da beleza e do caos, como diria Fernanda Abreu sobre o Rio de Janeiro. Mas no meio do caminho tem outra Fernanda, a Montenegro. Um verdadeiro patrimônio da cultura nacional interpretando Dora. Uma professora aposentada cuja aposentadoria mal dá para pagar as contas. Faz tempo que ela complementa a renda escrevendo cartas para quem não sabe escrever em meio à multidão da Central do Brasil. Uma dessas pessoas é a mãe de Josué, em busca de notícia de seu marido que ficou de vez no nordeste. Vale dizer que Dora está longe de ser uma heroína, pelo contrário, ela não sente culpa de decidir quais as cartas merecem ser postadas ou não, fazendo com que ela ganhe alguns trocados a mais economizando no envio e sepultando de vez a esperança de algumas pessoas. Eis que o destino irá colocar Josué sob seus cuidados - mas ela não acha uma má ideia vendê-lo para uma gente soturna que diz procurar crianças para serem adotadas por estrangeiros. Sorte de Josué que sua cuidadora acidental tem uma amiga do porte de Irene (a maravilhosa Marília Pêra) para fazer com que ela perceba que toda aquela história pode ser uma balela para tráfico de órgãos. Depois de tantas desventuras no Rio de Janeiro, Dora e Josué irão partir em busca do pai dele no nordeste e o filme ganha contornos de um road movie enquanto estreita os laços entre os dois personagens. Ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim, Central do Brasil é um daqueles filmes a que se assiste com o coração apertadinho e que o final deixa um nó na garganta. Atrevo dizer que esta é a maior atuação de Fernanda Montenegro. Ela está plena na pele de Dora em sua jornada pela redescoberta de uma humanidade que ela parecia ter perdido em nome da sobrevivência. A cena final da personagem é belíssima e maximizada ainda mais pela participação de Vinicius Oliveira em uma das despedidas mais emocionantes da história do cinema. Vinicius se tornou um desses nomes prodígios que aparecem de vez em quando no cinema. A intensidade que empresta à Josué é comovente, pena que depois deste filme ele atuou pouco e passou a se dedicar mais aos trabalhos atrás das câmeras. Central do Brasil é a soma de vários talentos superlativos, do roteiro perfeito, da direção precisa, da trilha sonora irretocável, da fotografia memorável, dos atores em plena sintonia, uma prova irrefutável contra aquele discurso xexelento de que o Brasil não faz filme de qualidade. Não por acaso o longa conquistou mais de quarenta prêmios ao redor do mundo, incluindo ainda o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro. Poderia ter sido ainda melhor se o Oscar tivesse sido justo e laureado a produção com o Oscar de Filme Estrangeiro. Sobre a transcedental indicação ao Oscar de melhor atriz para Fernanda eu imagino que a vitória era mais complicada, mas perder para Gwyneth Paltrow foi inexplicável (a Fernanda mesmo admitiu que aceitaria melhor ter perdido para Cate Blanchett que estava soberba em Elizabeth). Acho que o Oscar de 1999 foi um dos mais estranhos da História, sorte que Central do Brasil não precisa dele para ser celebrado ao longo do tempo como um verdadeiro clássico da sétima arte. 

Central do Brasil (Brasil/1998) de Walter Salles com Fernanda Montenegro, Vinicius Oliveira, Marília Pêra, Othon Bastos, Soia Lira, Socorro Nobre, Otávio Augusto, Stela Freitas, Matheus Nachtergaele e Caio Junqueira. 

.Doc: As 5 Obstruções

Jørgen: O humano perfeito versão Bombaim. 

O Homem Perfeito é um documentário de 13 minutos, lançado em 1968, que busca de forma criativa analisar o modo de vida na Dinamarca. Ao que tudo indica, o curta é uma das obras favoritas de Lars Von Trier, que por vezes já afirmou que trata-se do filme perfeito e, digamos que aqui ele deseja destruir o tal filme. Aqui ele convida o diretor veterano Jørgen Leth a recriar sua obra-prima mediante uma série de desafios criador por Trier. Acho que todo mundo que conhece o diretor do magnífico Dogville (2003) sabe que ele adora exercitar seu lado sádico e maltratar seus personagens. Neste documentário a situação não é diferente. A proposta é que Trier dificulte ao máximo a execução do curta com exigências cada vez mais estapafúrdias, no caso, são cinco versões do curta que são feitas uma após a outra respeitando (ou quase) as obstruções citadas no título. O ponto de partida é interessante, remetendo à ideia da dificuldade de fazer cinema, aos imprevistos que podem surgir no caminho, das limitações que podem ser impostas por um produtor ou impossibilidades que precisam ser superadas com criatividade, além da relação entre arte e poder. Assim, Jorgen Leth parte para refazer seu filme em um hotel cubano, ou no meio de uma rua na Índia, filma em colorido e em preto e branco, usa atores amadores ou profissionais,  filma a si mesmo e até faz uma versão em animação. O problema é que a forma como tudo é apresentado está longe de ser estimulante. Se Lars Von Trier veste de vez a sua persona mais manipuladora e maledicente, falta à Leth um tanto de carisma para contrabalançar seu carrasco ao longo da sessão. Além disso, os diálogos entre os dois são difíceis de parecerem convincentes, por vezes soarem como pura encenação combinada entre os dois. Fora isso, os exercícios propostos por vezes faz com que ambos desejem parecer um bocado limitados. Sei que é duro dizer isso, mas o comentário de ambos dizendo que odeiam "animação" me fez imaginar como ambos não fazem a mínima ideia das possibilidades que o gênero possui - tanto que o resultado é o melhor dos cinco curtas apresentados e não existe um relato sobre a grande descoberta que foi desbravar o estilo. Lá pelo segundo desafio tudo já parece um tanto cansativo e difícil de acompanhar.  No fim das contas, Jørgen faz uma cartinha ao seu parceiro especulando sobre o que o teria motivado a ter a ideia de mexer com seu filme. Mais uma vez, não me parece verossímil as expressões de Trier enquanto lê a carta. As 5 obstruções parece uma brincadeira entre dois amigos e feita com a intenção de agradar somente aos envolvidos. Poderia ser um exercício criativo interessante, mas parece um verdadeiro exercício de paciência para o espectador. Talvez se apresentasse o filme original no início por completo, o espectador pudesse comparar todas as mudanças realizadas e se divertisse mais com os desafios. 

As 5 Obstruções (The Five Obstructions/Dinamarca - Suíça - Bélgica - França / 2003) de Lars Von Trier e Jørgen Leth com Jørgen Leth, Lars Von Trier, Claus Nissen, Majken Algren Nielsen, Daniel Hernandez Rodriguez, Patrick Bauchau, Vivian Rosa e Alexandra Vandernoot.  

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

§8^) Fac Simile: Jordan Firstman

Jordan Firstman

Talvez seja exagero dizer que Jordan Firstman seja um artista em ascensão. Mas o fato dele aparecer cada vez mais em obras destinadas aos mais variados públicos faz com que ele pareça estar em toda parte com seu humor provocativo. Desde que escreveu e estrelou seu primeiro curta-metragem, o ator, escritor e produtor procura exercitar cada vez mais sua mente criativa. Seja nos seus curtas-metragens, nas postagens do Instagram, na TV, na Netflix ou no Universo Marvel, a impressão é que Jordan está em todo lugar. Essa entrevista, que nunca aconteceu, foi agendada na ocasião da estreia de Rotting in the Sun do diretor chileno Sebastián Silva no streaming brasileiro. Fistman fala um pouco ao nosso repórter imaginário sobre sua efervescente carreira:

§8^) Posso dizer que depois de ver Rotting in the Sun achei que Sebastián Silva é sua alma gêmea?

Firstman Não caia nessa lorota! É pura magia do cinema [risos] Pode se dizer que a ideia de juntar nós dois no mesmo filme foi brilhante. Só isso [risos]. Eu disse para o Seba que queria um filme diferente, um meta-gay-thriller, algo intelectual só que descarado... e ele bolou o filme. Foi quase na base da provocação, mas o preço a ser pago era tirar a roupa e minha maior preocupação era me depilar. Ainda bem que não precisou, sou realmente apegado aos meus pelinhos, eles me deixam a impressão que eu estava coberto com alguma coisa... tipo um casaco de pele, só que é da minha pele. Fabricação própria entende? Eu estou acostumado a me expor no meu Instagram, mas no filme era tudo muito mais explícito, mas o fato de estar a vontade com minha aparência ajudou muito na hora de ficar nu. O filme é uma brincadeira sobre como as pessoas nos enxergam e a ideia de se despir diante da câmera combina com isso. Criativamente Seba e eu nos complementamos na construção do filme, mas não sei se somos almas gêmeas... talvez apenas dois rapazes gays querendo ganhar o pão de cada dia. 

§8^) É verdade que o Michael Cera que seria o protagonista da história?

Firstman Sim. O Seba e o Michael gostaram muito de trabalhar juntos em Crystal Fairy e o Cactus Mágico. O Michael curte essa pegada mais alternativa, mas quando ele viu o texto levou um susto com todas as cenas de nudez e cenas de sexo. Adoramos ele, mas o Michael tem aquela síndrome de Peter Pan. Ele é três anos mais velho que eu, mas parece ser meu filho. Não fazia muito o estilo dele se expor daquele jeito e não quero parecer maldoso. Era preciso ter alguém mais sexy, másculo e selvagem para atuar ao meu lado [gargalhadas], no fim das contas foi bom ter o Seba atuando ali, mas você percebeu que o safado nunca tira o short, só mandava a gente se despir. Cara de pau, sem trocadilhos, por favor.

§8^) O filme tem um lado crítico sobre seu personagem ser uma celebridade da internet e você ficou muito conhecido com suas publicações na época da pandemia. Como você percebe essa relação das pessoas com as redes sociais hoje em dia?

Firstman Eu gosto da zoeira. Acho que por vezes o mundo é muito chato. Até mesmo o mundo das celebridades é um tanto tedioso com todas as poses de pessoas querendo ser aceitas e parecendo corretas o tempo inteiro. Pelo menos eu encontro espaço no universo queer para brincar um pouco e me divertir. Tem gente que curte. Tem gente que não curte. Tem gente que foi ver o filme só para me ver sem roupa, o que é bom também, já que ajuda na bilheteria e na repercussão para novos trabalhos. Sobre o que era a pergunta mesmo.... ah sim... a relação das pessoas com as redes sociais. Acho uma mídia feito outra qualquer. 

§8^) Você foi responsável por um dos momentos mais icônicos da história do Independent Spirit Awards com um coral cantando em homenagem à Laura Dern em 2020 . Como surgiu a ideia de fazer aquela apresentação?

Firstman Eu adoro a Laura Dern. Ela é um verdadeiro ícone do cinema indie americano e também para a comunidade gay desde que ela participou da série da Ellen DeGeneres em 1997 e foi a motivação para a personagem dela sair do armário. Laura não é gay, mas ela pagou o preço por apoiar nossa comunidade. Sofreu um boicote em Hollywood por um tempo, mas deu a volta por cima e até ganhou um Oscar depois da nossa calorosa homenagem. A ideia era uma celebração à Laura, mas para isso perpassei por vários signos sobre homossexualidade que aparecem nos filmes até chegar no trabalho dela. Foi uma brincadeira que ganhava contornos bastante emotivos e celebrativos sobre a visibilidade gay no cinema. Tenho muito orgulho daquela apresentação e mais ainda porque a Laura foi pega de surpresa e ficou lisonjeada com tudo aquilo. Ela merece o mundo. 

§8^) Você também está no MCU como o professor conselheiro da série Miss Marvel, o que não deixa de ser uma escolha inusitada para a TV...

Firstman Tenho a impressão que as pessoas não faziam a mínima ideia de quem eu era quando me colocaram naquele programa! Ainda penso que se descobrirem o que eu faço, a Disney vai retirar o programa da plataforma ou colocar uma cara do Michey em cima do meu rosto. Ainda penso que um adolescente pode assistir Rotting in the Sun e dizer "Ei! É o conselheiro da Miss Marvel" e toda uma sucessão e represálias acontecerá com o programa devido aos conservadores que se multiplicam por aí. Só espero que não peçam para eu devolver o dinheiro que recebi pelo papel, que foi muito bom aliás. Ser um ator gay e judeu não é fácil, ainda mais com essa greve interminável que atravessamos. Já estou cogitando abrir uma página no OnlyFans. Será que o pessoal curtiu o que viu no filme? Seria uma pesquisa de demanda interessante... Talvez eu tenha que malhar um pouco... mas não me depilo. 

PL►Y: Rotting in the Sun

 
Jordan e Sebastián: tensão sexual antagônica. 

Não sei vocês, mas eu tenho uma lista de filmes que não posso indicar para ninguém. Não se trata de filmes que são ruins e dos quais me arrependo de ter assistido, mas filmes que parecem destinados a um grupo restrito de pessoas que são capazes de se divertir com o que a maioria das pessoas não apreciaria, ou, pelo menos, ficariam um bocado chocadas ao assistir. Está em cartaz na MUBI um filme que acabou de entrar para essa lista particular bastante específica. Trata-se de Rotting in the Sun, filme dirigido pelo chileno Sebastián Silva, que ganhou atenção do mundo com seu segundo filme, A Criada (2009) e desde então tem feito filmes cada vez mais radicais no mercado independente. Este é sua última criação e se torna um filme caótico delicioso conforme avança em situações cada vez mais surpreendentes em torno de um personagem chamado Sebastián Silva. Isso mesmo. O diretor, ator e roteirista vive o personagem principal que recebe seu nome de batismo e o que parece uma trama com traços autobiográficos, logo se torna cada vez mais delirante, principalmente quando o personagem sai de cena. Calma, eu explico. Sebastián atravessa uma crise existencial e entre uma leitura depressiva e outra, usa drogas e cogita se suicidar. Eis que no meio de seu baixo astral, ele recebe a recomendação de ir se divertir em uma praia de nudismo no litoral mexicano que se tornou um paraíso para o turismo gay. Se Sebastián já parece deslocado até quando passeia com o cachorro, ele parece ainda menos a vontade no meio de um bando de homens nus que estão dispostos a ter encontros sexuais sem pensar no amanhã. O desconforto do protagonista é ilustrado com suas expressões nada animadas perante um bando de homens nus com suas genitálias em close várias vezes diante da câmera. É ali que ele conhece Jordan Firstman (vivido pelo próprio Jordan Firstman), um digital influencer que é fã dos filmes de Sebastián, mas cujo trabalho só recebe a indiferença de seu ídolo. É visível o interesse de Jordan pelo diretor, a tensão sexual entre os dois é instantânea, mas Silva o acha um chato (e da forma como ele é apresentado, parece mesmo). Os dois não poderiam ter personalidades mais antagônicas e embora Jordan queira escalar Sebastián para dirigir seu projeto para a televisão, a animação não é recíproca. Quando você acha que o filme irá se concentrar na relação dos dois naquele cenário praiano, o filme volta para a cidade de México e nos deparamos com o desaparecimento do próprio Sebastián. O público sabe exatamente o que aconteceu, inclusive que o protagonismo do filme passou a ser de Veronica (Catalina Saavedra) a empregada de Sebastián. Não vale estragar a surpresa de quem se aventurar a assistir o filme, mas Rotting in the Sun trata-se de uma comédia ácida que perde totalmente as estribeiras no decorrer de sua narrativa, brincando muito com nossas expectativas e percepções da realidade (sobretudo a realidade que percebemos através das redes sociais). A brincadeira com as personas públicas de Firstman e Sebastián deixa o filme ainda mais divertido e atiça a curiosidade do espectador em saber como toda aquela situação absurda irá se resolver. Na verdade o desfecho é uma confissão cheia de culpa e remorsos, mas que se torna um diálogo hilariante mal traduzido. Se toda essa sandice saiu da cabeça de Sebastián, o destaque nas interpretações fica por conta de Catalina Saavedra (a ótima protagonista de A Criada) e do próprio Jordan Firstman que em uma atuação despudorada demonstra ser muito mais versátil do que seus videozinhos para internet possam revelar. O jeito despojado de Sebastián Silva fazer cinema pode ser conferido em outros dois filmes citados nesta produção e que também estão em cartaz na MUBI, o primogênito A Vida me Mata (2007) e o delirante  A Fada de Cristal e o Cacto Mágico (2013) estrelado por Michael Cera que desistiu de protagonizar Rotting in The Sun pelas cenas de nudez e sexo. Enfim, não é para todos os gostos (mas gera boas risadas).  

Rotting in the Sun (EUA/2023) de Sebastián Silva com Jordan Firstman, Catalina Saavedra, Sebastián Silva e Mateo Riestra. ☻☻☻