terça-feira, 28 de maio de 2024

PL►Y: A Professora de Violino

Nina: em busca de encantamento. 
 
 Anna Bronsky (Nina Hoss) é uma professora de violino que atua em uma escola voltada para o ensino de música. Ela percebe no inseguro Alexander (Ilia Monti) o potencial para que se torne um músico digno de respeito e, apesar de seus colegas não perceberem nada demais no mocinho, a professora nota que dias de treino e aprendizado podem fazer muita diferença no talento do menino. Devidamente selecionado por ela, Alexander precisa se preparar para uma avaliação da escola e provar que é digno da vaga. Neste processo de preparação, vemos a dedicação de Anna junto a Alexander, mas também presenciamos como a vida da professora enfrenta problemas em sua partitura. A começar pelo relacionamento dela com o filho, Walter (Thomas Thieme), igualmente aluno da escola de música e violinista em formação, existe uma relação bastante tensa, provavelmente por conta da pressão que existe sobre a relação da família com a música e o reconhecimento que ela pode proporcionar. A simples existência de Alexander como um discípulo de sua mãe parece incomodar bastante o menino. O casamento de Anna também soa disperso, especialmente por conta de um relacionamento extraconjugal que ela possui com um colega, Christian (Jens Albinus) com quem tenta espantar o marasmo de seu regrado cotidiano. Existe também um fator que influencia muito a relação da protagonista com a música, e quem mais esteja próximo dela, mas não vou contar para não estragar as surpresas de um filme bastante introspectivo, mas que se torna envolvente por conta do trabalho dos atores, especialmente de Nina Hoss que foi considerada a melhor atriz do Festival de San Sebastian em 2019. Ainda que seja uma personagem aparentemente comum, paira sobre ela um mistério que a torna bastante instigante em seus conflitos entre a rigidez e a busca por um tanto de encantamento em seus dias marcados por dedicação, insegurança e as provocações de ambientes em que você é testado a todo instante. A diretora Ina Weiss constrói um drama elegante, sem apelações e o estrutura a partir dos encontros ásperos entre seus personagens. Basta sentir a tensão no ar nas aulas de Anna com Alexander (e o novato Ilja Monti é um verdadeiro achado na forma como parece prestes a explodir com o rosto cada vez mais corado a medida que seu esforço cresce para conseguir sua cobiçada aprovação). Por vezes o filme parece uma versão mais contida de Whiplash (2015), mas deixando o papel de algoz para o pequeno Walter e a estranha sensação de nunca ser bom o bastante à sombra de sua mãe. Minha maior ressalva quanto ao filme é o desfecho que deixa uma pergunta no ar enquanto espectador ainda lida com o nó na garganta.

A Professora de Violino (Das Vorspiel / Alemanha - França / 2019) de Ina Weisse de Nina Ross,  Ilja Monti, Simon Abkarian, Jens Albinus, Thomas Thieme, Sophie Rois e Alexander Hörbe.

domingo, 26 de maio de 2024

PL►Y: Esculturas da Vida

Michelle Williams: o cotidiano de uma artista indecifrável.

A diretora Kelly Reichardt lançou um dos melhores filmes de 2019: First Cow. O longa figurou em várias listas de melhores filmes do ano e esteve cotado para finalmente colocar a diretora no radar do Oscar... mas acabou ficando de fora. Tanta admiração pelo filme, deixou muita gente ansiosa para conhecer seu novo projeto. Foi assim que Showing Up chegou ao público cinéfilo, junto ao carimbo de ser um dos filmes selecionados para concorrer à Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2022. No entanto, quando assistiram ao filme se deram conta de que Kelly era a mesma cineasta de alma indie de sempre, com personagens simples, tramas sobre pequenos acontecimentos do cotidiano e a vontade de instigar o público a ver algo de interessante nisso tudo. De certa forma, First Cow também era assim, mas a ideia de contar uma anedota sobre a Primeira Vaca da América chama bem mais a atenção do que acompanhar o cotidiano de uma escultora rumo à sua aguardada exposição. No entanto, quem conhece a diretora sabe o quanto ela gosta de ir na contramão do que é esperado de seu cinema. Aqui nós conhecemos Lizzy (Michelle Williams, em sua quarta parceria com a diretora), uma artista que trabalha em uma escola de arte e prepara esculturas para sua exposição. Ela vive sozinha com seu gato em um apartamento alugado de uma colega, Jo (Hong Chau), que também é artista plástica e também está às voltas com sua mostra. Embora as duas sejam aparentemente próximas, existe uma tensão entre as duas, sobretudo por conta da relação entre inquilino e proprietário (e um chuveiro queimado no meio). Lizzy também visita o pai de vez em quando e se preocupa com o irmão (John Magaro), que é visivelmente instável e avesso ao uso de celular, além de ter contato com a mãe no local de trabalho todos os dias.  O que muda um pouco a rotina de Lizzy é um incidente envolvendo um pombo, o qual ela terá de tomar conta durante alguns dias ao lado de Jo. É sobre isso. Esculturas da Vida (o estranho título que resolveram dar ao filme por aqui) segue a rotina da personagem sem maiores sobressaltos, como se buscasse uma história para contar, mas que pode dar a impressão que não a encontra. Acontece uma coisa aqui, outra ali e resta criar associações entre a protagonistas e suas esculturas que anseiam por movimento, mas estão estáticas para apreciação (assim como ela) e, em determinado momento, existe a analogia do pombo, que precisa se recuperar para alçar novos voos. O filme está longe de ser exuberante ou envolvente, mas ao girar em torno de uma personagem que se revela de forma tão discreta ao espectador, torna-se bastante sensível ao nos fazer imaginar a história que existe por trás de sua construção. O mais interessante é ver que Kelly Reichardt não está nem aí para o que esperam de seus projetos. Filma o que quer, como quer, talvez por isso este filme gire em torno de artistas na construção de suas obras a serem colocadas para apreciação. O longa, disponível no TeleCine, concorreu ao Gotham Awards de melhor filme e melhor atriz (Williams) e foi recebeu o prêmio Robert Altman no Independent Spirit Awards.

Esculturas da Vida (Showing Up /EUA - 2022) de Kelly Reichardt com Michelle Williams, Hong Chau, John Magaro, Andre Benjamin, Maryann Plunket e Theo Taplitz.

#FDS Palma de Ouro: Paris,Texas

Natassja e Stanton: a erraticidade da vida. 
 
Para encerrar o #FinalDeSemana dedicado a filmes ganhadores da Palma de Ouro aqui no blog, escolhi um dos premiados mais queridos de suas setenta e sete edições. Paris, Texas é apontado em várias listas como um dos melhores filmes a levarem a Palma de Ouro para a casa, assinado pelo alemão Win Wenders, o filme se tornou uma de suas mais aclamadas experiências em Hollywood. Colabora muito para isso seu olhar estrangeiro em uma trama que transborda referências aos filmes de velho oeste em uma história mais contemporânea. Escrito por Sam Shepard, o filme traz elementos típicos da filmagem de um western (a trilha sonora, os planos abertos, a concepção dos personagens) para os anos 1980, época em que os dramas familiares estavam em alta no cinema dos Estados Unidos. Assim, a produção articula a abordagem de uma trama intimista com uma certa grandiloquência dos clássicos de John Ford. O título é referente à um pequeno vilarejo que o protagonista, Travis (Harry Dean Stanton) acredita ser o lugar ideal para viver com sua bela esposa, Jane (Natassja Kinski) e o bebê que tiveram juntos. No entanto, o relacionamento entre o casal enfrentou problemas e Travis ganhou o mundo em uma jornada que ninguém entendeu muito bem, inclusive ele. Anos depois, Travis vai em busca de seus irmão, Walt (Dean Stockwell) que passou a cuidar do pequeno Hunter (Hunter Carson), após a mãe do menino também buscar outros caminhos. Quando Travis retorna, a família sente-se insegura com os rumos que irá tomar, sobretudo quando o reaparecido demonstra a vontade de reencontrar a esposa. A maior parte do filme se concentra na forma como o dissonante Travis se aproxima novamente da família, se o irmão e a cunhada não entendem muito bem o que se passa na cabeça dele, aos poucos ele consegue se aproximar mais do filho, sobretudo quando os dois partem para encontrar o paradeiro da esposa desaparecida com base em uma pista. Paris, Texas se desenvolve como um road movie familiar com toques bastante emocionais, embalada com a magnífica trilha sonora de Ry Cooder com base em uma guitarra melancólica e o uso de cores vibrantes da fotografia de Robby Müller. No entanto, acho que nada prepara  o espectador para o reencontro do casal em um ambiente que só ressalta o distanciamento entre os dois personagens, assim como o jeito desajeitado como a ideia de um sonho americano de desmontou. O final deixa aquela sensação do cowboy que cumpriu sua missão, mas que segue sua jornada pessoal banhado na sensação de incerteza sobre os caminhos que deve seguir. Não por acaso o desfecho deixa aquela sensação de final em aberto que pode incomodar muita gente. Naquele ano outros filmes que concorriam ao prêmio foram O Elemento de um Crime de Lars Von Trier, Henry V de Marco Bellochio, Quilombo de Cacá Diegues e, ironicamente, À Sombra do Vulcão de John Huston. 

Paris, Texas (Alemanha Oriental - Reino Unido - França - EUA/1984) de Win Wenders com Harry Dean Stanton, Natassja Kinski, Hunter Carson, Dean Stockwell e Aurore Clément.

sábado, 25 de maio de 2024

PREMIADOS FESTIVAL DE CANNES 2024

"Anora" de Sean Baker: Favorito desde a primeira olhada.
 
Parece que as impressões deixadas por Anora de Sean Baker se mostraram mais do que certas após a exibição do filme. Desde que o filme sobre a história de amor entre uma stripper e um herdeiro russo chegou aos olhos do público, com aquela energia desconstrutora do cineasta, houve uma certa unanimidade em apontar que ele era o grande favorito ao maior prêmio do festival. Surpresa mesmo foi a o empate na categoria de melhor atriz para as protagonistas do novo filme de Jacques Audiard (em algum momento de sua vida você achou que Selena Gomez teria um prêmio de melhor atriz em Cannes? Pois é...). Outro filme que deve fazer barulho ao longo do ano é A Substância, que traz de volta Demi Moore aos holofotes digna das premiações de fim de ano. Fora dos premiados, resta ver o que será de Megalopolis de Francis Ford Coppola ao longo do ano. A seguir os premiados desta edição:
 
Palma de Ouro
“Anora”, de Sean Baker
 
Grande Prêmio
“Tudo Que Imaginamos Como Luz”, de Payal Kapadia

Prêmio do Júri
“Emília Pérez”, de Jacques Audiard
 
Melhor Diretor
Miguel Gómez, de “Grand Tour”

Melhor Ator
Jesse Plemons, de “Tipos de Bondade”

Melhor Atriz
Adriana Paz, Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón e Selena Gomez, de “Emilia Perez”
 
Melhor Roteiro
“A Substância”, de Coralie Fargeat
 
Curta-metragem
“O homem que não conseguia permanecer em silêncio” de Nebojsa Slijepcevic
 
Menção Especial Curta-Metragem
“Ruim por um momento” de  Daniel Soares
 
Melhor Diretor Estreante
“Armand” de Halfdan Ullmann Tøndel
 
Prêmio da Crítica
"The Seed of the Sacred Fig" de Mohammad Rasoulof
 
Prêmio Un Certain Regard 
"Black Dog" de Guan Hu
 
Palma de Ouro honorária
George Lucas

#FDS Palma de Ouro: Adeus, Minha Concubina

Cheung: romance em meio à conturbada história chinesa.

Em 1993 houve um empate na votação do filme que levaria a Palma de Ouro do Festival de Cannes para casa, o fato não chegava a ser uma novidade, já que ao todo foram nove vezes que o prêmio máximo do festival foi compartilhado entre duas produções. Imagino o júri diante do impasse ao assistirem O Piano de Jane Campion e Adeus, Minha Concubina de Chen Caige. Dois grandes filmes que são considerados verdadeiros clássicos dos anos 1990 com histórias de amor atravessadas por uma realidade dura e cheia de convenções.  Adeus, Minha Concubina é uma adaptação do livro de Lilian Lee, que conta a história de dois atores da ópera de Pequim que através da conturbada história da China no século XX. São quase três horas de filme sobre a história de Cheng Dieyi, um menino que é abandonado por sua mãe junto a outros garotos a serem formados para atuar nos palcos. Com o início de sua formação em 1924, Dieyi vai comer o pão que o diabo amassou na companhia, a começar pelo dedo extra que sua mãe acaba cortando para que seja aceito pela companhia. A origem do menino também não é bem vista pelos colegas, o que faz com que ele seja perseguido pelas outras crianças. Um pouco de alento chega pela companhia de Duan Xialou, que se tornará seu parceiro de palco através de décadas e, até que isso aconteça, compartilhará os terríveis castigos da companhia em nome da perfeição. Como os papéis nos palcos eram vividos somente por homens, Dieiyi, devido às suas características físicas mais delicadas,é escolhido para viver os papéis femininos, incluindo o da peça que dá título ao filme. O filme desenvolve nas entrelinhas uma ambiguidade sobre a sexualidade de Dieyi em sua vida adulta (agora vivido por Leslie Cheung), sempre com sugestões de que ele era apaixonado por Xialou (interpretado quando adulto por Zhang Fengyi), ao ponto de vivenciar fortes crises de ciúmes quando o colega se casa com Juxian (a diva Gong Li), instaurando um triângulo amoroso problemático. Acompanhamos então a relação entre os três mesclada com a ascensão dos atores perante as mudanças políticas na China, envolvendo conflitos como Japão e a chegada do partido comunista chinês ao poder. Tudo se torna cada vez mais tenso e por várias vezes coloca a vida dos dois atores em risco até o desfecho. Existe aqui uma história de amor com a História de um país como pano de fundo, o que quando costuma funcionar se torna extremamente envolvente. Para além destes dois elementos, Adeus, Minha Concubina tem uma direção de arte belíssima, valorizada ainda mais pela fotografia de encher os olhos, numa contraposição da estética de um sonho com a dureza da realidade que sempre paira sobre os dois atores. Existe ainda um caráter metalinguístico na trama, já que nas entrelinhas existe muita  semelhança entre a vida de Xialou e Dieyi e a peça que os tornam consagrados. Por último, vale ressaltar que existe uma sintonia perfeita entre Zhang e Cheung, que muitas vezes se comunicam somente pelo olhar. Falando em olhar, Leslie Cheung está perfeito ao reproduzir a alma melancólica de seu personagem ao longo de todo o filme com aqueles olhos entre a raiva e a tristeza, além de de um trabalho corporal notável quando surge como figura feminina no palco. O filme se tornou o primeiro filme chinês a receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes, mas foi banido dos cinemas chineses devido à censura local, retornando às salas meses depois em uma versão mais curta. O longa também concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Fotografia (mas merecia lembranças em várias outras categorias, como maquiagem, figurino, direção de arte). Entre os outros filmes que concorriam à Palma de Ouro em 1993 estavam Naked de Mike Leigh, Tão Longe Tão Perto de Win Wenders, Um dia De Fúria de Joel Schumacher, Muito Barulho por Nada de Kenneth Branagh e O Inventor de Ilusões de Steve Soderbergh.  Adeus, Minha Concubina se tornou um dos filmes orientais mais falados dos anos 1990 e ainda hoje permanece com seu impacto irretocável.

Adeus, Minha Concubina ( Ba wang bie ji / China - Hong Kong / 1993) de Kaige Chen com Leslie Cheung, Fengyi Zhang, Gong Li, You Ge, Zhi Yin, Dan Li e Wenli Jiang.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

#FDS Palma de Ouro: A Criança

 Jérémie e Déborah: hora de crescer.

A Palma de Ouro do Festival de Cannes é um dos prêmios mais cobiçados do cinema. Além de sinalizar quem foi escolhido como o melhor do festival, o filme recebe uma projeção que, na maioria das vezes, lhe rende atenção ao longo de todo o ano cinematográfico (basta lembrar o fôlego que o ganhador do ano passado, Anatomia de Uma Queda, apresentou até recentemente). A 77ª edição do Festival francês termina amanhã com o anúncio do favorito deste ano e, para entrar no clima, o blog relembra nesse #FimDeSemana três filmes que foram aclamados com a Palma. Para começar escolhi A Criança, longa-metragem dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. Os manos belgas são famosos por suas tramas com pessoas comuns enfrentando problemas sociais e geralmente aparecem em Cannes com suas produções (ao todo já concorreram nove vezes à Palma de Ouro), mas receberam o prêmio máximo do festival somente com este drama sufocante. O filme conta a história do casal Sonia (Déborah François) e Bruno (Jérémie Renier), ela acaba de sair do hospital com um bebê de oito dias, ele gasta o tempo aplicando golpes que lhe garantem algum sustento. Ao chegar no apartamento, Sonia já se depara com outra pessoa morando por ali e não entende muito bem o que está acontecendo. Quando ela encontra Bruno na rua, ele não parece muito animado com a ideia de ser pai. As cenas do casal junto parecem improvisadas e pretendem dizer o quanto os dois ainda são imaturos (pela idade ainda podem ser considerados adolescentes), no entanto, a coisa piora quando Bruno cogita vender a criança. No entanto, ele não comunica à Sônia os seus planos e você pode imaginar o que acontece. Se contar mais, estraga. A criança passa a conciliar o drama familiar com uma espécie de thriller, em que o rapaz tenta consertar o estrago que fez, mas precisa arcar com as consequências de suas atitudes numa espiral de acontecimentos envolvendo o submundo do tráfico de crianças. Os Dardenne apresentam a situação de forma bastante crua, sem pedir para que o público entenda ou perdoe as atitudes do rapaz, mas aos poucos deixam claro que a criança do título é o próprio Bruno. Temos a impressão que ele cresceu sem assumir responsabilidades e que agora precisa amadurecer. A mãe dele aparece rapidamente em cena e ele não parece ser bem vindo em casa. Seu comparsa de golpes é um adolescente de treze anos e Sonia não parece disposta a perdoar o namorado pelo que fez. A Criança soa até como um filme simples, filmado como se fosse um recorte do cotidiano daqueles personagens (que é o estilo dos diretores), mas difere na engenhosa construção de uma tensão crescente na vida perdida de Bruno. Esta capacidade de atribuir força à narrativas aparentemente simples é uma especialidade dos Dardenne, que levaram a Palma de Ouro daquele ano deixando para trás produções renomadas como Caché de Michael Haneke, Flores Partidas de Jim Jarmush, Manderlay e Lars Von Trier e Marcas da Violência de David Cronenberg. 

A Criança (L'Enfant / Bélgica - França / 2005) de Jean-Pierre e Luc Dardenne com Jérémie Renier, Déborah François, Jérémie Segard, Fabrizio Rongione e Olivier Gourmet.  

 

PL►Y: Berberian Sound Studio

Toby: trabalho assustador.

Nos anos 1960, o inglês engenheiro de som Gilderoy (Toby Jones) chega à Itália para trabalhar na sonoridade de um filme local. Ele é pego de surpresa quando descobre que se trata de um filme de terror, um dos chamados gialli (tramas policialescas sangrentas) que fizeram muito sucesso. Acostumado a trabalhar em documentários, o profissional fica em choque. O fato dele possuir uma personalidade introspectiva também complica o andamento do seu trabalho, especialmente com a tensão imposta pelo produtor (Antonio Mancino) que sempre adia o reembolso da passagem e o próprio pagamento pelo serviço. A coisa realmente não é como o moço esperava e piora ainda mais quando percebe as relações que pairam sobre o diretor e as atrizes responsáveis por dar vida (e gritos) às personagens do filme The Equestrian Vortex, sobre crimes, bruxarias e afins. O diretor britânico Peter Strickland constrói aqui uma verdadeira ode à importância do som na construção de uma narrativa, especialmente de horror, afinal, mesmo que não vejamos o filme em que Gilderoy trabalha, os barulhos envolvidos em sua feitura são arrepiantes. Tanto os gritos, quanto o som das melancias despedaçadas, repolhos esfaqueados e outros legumes torturados fazem a mente do espectador viajar perante as imagens que aquele personagem precisa conviver ao longo de várias semanas. O problema é que a própria história de vida de Gilderoy começa a aumentar ainda mais o seu incômodo perante tudo aquilo. Problemas com o pagamento, conflitos com a equipe, cartas da mãe, a solidão de estar em um território diferente e hostil, tudo colabora para que o cotidiano do profissional se torne um filme de terror (e não por acaso, por vezes, algumas situações vividas por ele se confundem com o que é visto no filme). Toby Jones prova mais uma vez que é um grande ator e carrega o filme nas costas ao expressar todo o incômodo do personagem até que se anestesie por completo na rotina estafante de seu serviço e embora o filme pareça perder o fio da meada lá pela metade, a forma hipnótica como apresenta o trabalho do engenheiro de som envolve o espectador com uma imersão sensorial incomum, esta qualidade faz com que o filme seja uma obra difícil de se abandonar pela metade. Estranho e fora da caixinha (como a maioria das obras de Strickland), se houver uma lista de filmes mais assustadores que não são de terror, Berberian Sound Studio merece um lugar de honra.
 
Berberian Sound Studio (Reino Unido / Alemanha - 2012) de Peter Strickland com Toby Jones, Antonio Mancino, Guido Ardoni, Susanna Cappellaro, Cosimo Fusco, Fatma Mohamed, Eugenia Caruso e Salvatore Li Causi.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

PL►Y: Duna - Parte 2

 Stellan e Austin: vilões do caminho do predestinado.
 
Já disponível para streaming no MAX, finalmente consegui assistir a segunda parte da adaptação de Dennis Vileneuve para o clássico de Frank Herbert. Para escrever esta postagem eu reli o que escrevi sobre o primeiro filme e mantenho tudo o que disse sobre a habilidade da produção em construir um mundo cinematográfico, sendo que aqui, por ser uma continuação, tudo está ampliado e em maior escala para expandir o que vimos no primeiro filme. A trama continua da parte que o anterior parou, quando o predestinado Paul Atreides (Thimothée Chalamet) e sua mãe (Rebecca Ferguson) passam a acompanhar os Fremen pelo deserto. Como era de se esperar, aqui Paul terá que encarar seu destino de encontro à uma profecia que sempre pairou sobre ele, tendo que provar que é mais do que um forasteiro perante aquele grupo. Com mais cenas de ação e batalhas grandiosas, a base dramática do filme é o amadurecimento de Paul rumo ao seu papel em meio às disputas daquele planeta. Para isso, ele passa por algumas provas, se envolve amorosamente com Chani (Zendaya) e se prepara para encarar o Imperador (Christopher Walken) responsável pelo massacre visto no primeiro filme - que custou a vida de seus amigos e seu pai (Oscar Isaac). Acontece que o imperador tem ao seu lado os brutais Rabban (Dave Bautista) e Freyd-Rautha (Austin Butler) que devem dar trabalho a Paul, além da filha, princesa Irulan (Florence Pugh), que pode ter papel importante nos jogos de poder que se avistam. Até que Paul encontre seu maior inimigo, são realizadas batalhes épicas pelo domínio das especiarias e discussões sobre o veracidade da profecia em meio a tudo a aquilo. Mais uma vez, tenho a impressão que Vileneuve capricha mais na forma do que no conteúdo da história que tem em mãos (ou será que o conteúdo está justamente na forma com que tudo se apresenta?). Embora as relações entre os personagens ganhe mais complexidade por aqui, a sensação de que existe sempre um preparo para algo maior que acontecerá no filme seguinte permanece. Aqui, o capricho com efeitos especiais e ambientações continua (embora algumas cenas pareçam cortadas pelo meio) e o elenco ganha reforços consideráveis com nomes de respeito. O tom épico do filme impressiona, mas não difere muito do que já foi visto no longa anterior, o que diferencia mesmo é o amadurecimento de Paul enquanto herói, algo que Chalamet entrega de forma convincente na concepção do personagem. O bom é que o filme fez mais sucesso nas bilheterias e a continuação já está mais do que garantida para dar andamento à saga. Confesso que o filme só me empolgou em sua última hora, dados todos os arranjos que precisava dar conta até ali. Se o filme manter esta tensão em seu próximo capítulo já está de bom tamanho.  Entre os acréscimos do elenco, Austin Butler merece destaque em um trabalho completamente diferente de sua consagração em Elvis (2022), só lamento que provavelmente ele não aparecerá no próximo filme.  

Duna - Parte 2 (Dune - Part two / EUA - Canadá - Nova Zelândia / 2024) de Denis Villeneuve com Thimothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Austin Butler, Dave Bautista, Christopher Walken, Javier Barden, Florence Pugh, Léa Seydoux, Stellan Skarsgard, Charlotte Rampling e Josh Brolin. 

segunda-feira, 20 de maio de 2024

PL►Y: À Procura

Reynolds: pai-herói sofrido.
 
Todo ator tem aquele momento em que quer ser levado a sério. Geralmente ele procura papeis mais dramáticos para demonstrar que pode inserir camadas diferentes nos personagens que defende e, se o filme for aclamado, sua carreira recebe novo fôlego com filmes de prestígio e até prêmios. Hoje Ryan Reynolds pode ser considerado um astro consagrado em Hollywood pelo seu apelo com Deadpool, personagem que podemos identificar que é repetido reinterpretado em vários outros filmes do moço desde então. No entanto, faz dez anos que o Sr. Blake Lively tentou ser reconhecido por seus músculos mais dramáticos no drama À Procura. A assinatura do cineasta Atom Egoyan garantiu até uma vaga na disputa pela Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2014, mas a crítica e o público encontraram dificuldades para ver grandes méritos no filme. A história gira em torno do desaparecimento de uma menina. O pai, Matthew (Reynolds), a deixou no carro enquanto foi em uma lanchonete para comprar uma torta, mas ao retornar, a pequena Cassandra não estava mais por lá. Começa então uma jornada para encontrá-la com a ajuda da investigadora Nicole Dunlop (Rosario Dawson) e o detetive Jeffrey Cornwall (Scott Speedman), este considerando que Matthew tramou para vender a própria filha para quitar suas dívidas. Com o desaparecimento, o casamento de Matthew com Tina (Mireille Einos) cai por terra, já que ela desconta toda sua raiva atribuindo culpa ao marido pelo desaparecimento da filha. Paralelo a esta família em ruínas, existe uma investigação para encontrar Cassandra que atravessa vários anos, sendo que a plateia sabe desde o início o que acontece com a menina. Sim, ela está viva e envolvida em situações sombrias na internet. Agora, pegue a sinopse apresentada acima e embaralhe os tempos na narrativa, indo e voltando no tempo de forma confusa, o que prejudica muito na construção de uma tensão gradativa ao longo do filme. A opção adotada pela montagem do filme prejudica ainda mais os problemas que o filme já possui, a começar pela forma pouco convincente como é apresentada a relação entre Cassandra (quando crescida vivida por Alexia Fast) com seu exagerado sequestrador (Kevin Durand). A tensão entre o pai com os outros personagens também é feita sem muito cuidado em sua construção, apresentando tudo de forma áspera e apressada, assim como a forma como caminhamos para a resolução da história que se conclui de forma simples e sem maiores surpresas. Ryan se esforça um bocado para dar dignidade ao seu personagem, mas o roteiro (assinado pelo diretor ao lado de David Fraser) e a montagem não ajudam muito a dar credibilidade à história que em busca de criar elementos originais para a história, acaba beirando o absurdo. O estrago feito pelo desaparecimento de filhos da vida dos pais é um tema recorrente na cinematografia de Egoyan, basta lembrar das semelhanças deste com Sem Evidências (2013) lançado um ano antes, baseado numa história real arrepiante dos Estados Unidos, além da obra-prima O Doce Amanhã (1997), que lhe rendeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e as indicações ao Oscar de roteiro adaptado e melhor direção. No entanto, À Procura rende menos que os seus semelhantes pela execução tão confusa quanto seu roteiro. 

À Procura (The Captive / Canadá - 2014) de Atom Egoyan com Ryan Reynolds, Cott Speedman, Rosario Dawson, Mireille Enos, Kevin Durand, Alexia Fast, Bruce Greenwood, William MacDonald.

PL►Y: Exame

Os candidatos: interesses, competitividade e barbárie.

Oito candidatos disputam a vaga em uma empresa. Enfileirados em carteiras de uma sala, com uma folha que os identifica apenas por números, eles recebem algumas instruções para os próximos oitenta minutos: não podem destruir a folha que tem em mãos, não podem tentar se comunicar com o segurança que os vigia ou com ninguém de fora da sala. No entanto, os candidatos ficam intrigados sobre o que precisam fazer no tal teste e uma série de acontecimentos inesperados começam a tomar conta da narrativa. No início a maior indagação é sobre a pergunta que precisam responder. Qual seria? Como descobrir qual é? Porém, no meio do processo, alguns segredos pessoais dos candidatos começam a deixar a disputa pela vaga ainda mais acirrada. O roteiro do diretor estreante Stuart Hazeldine ao lado de Simon Garrity começa de forma bastante trivial para depois desbravar um território cada vez mais sombrio com a postura de alguns personagens - e não faria feio nas temporadas mais recentes de Black Mirror (que a propósito foi lançada dois anos depois). A apresentação dos personagens é bastante eficiente nos minutos iniciais, ali conhecemos ao menos uma característica marcante de cada um deles para depois ver como o roteiro se  desenvolve a partir  de como reagem aos acontecimentos que se desenrolam. Eu achei interessante que no início eles são identificados por números, mas acabam aceitando ser classificados por suas características físicas, como se fossem rótulos que precisam funcionar num grupo fadado ao fracasso por seus interesses individuais. Se a primeira vista todos estão ali por um emprego, aos poucos sabemos que alguns possuem outros interesses vinculados à vaga. Em alguns casos, esse interesse está vinculado a um acontecimento que marcou todo o planeta (lembrando que o filme acontece em um tempo indefinido e antes da pandemia de Covid19), neste ponto, a estética minimalista futurista do cenário disponibiliza recursos para que as divagações dos personagens prossigam até que a maioria perca as estribeiras de vez. O filme tem momentos bastante tensos e algumas são difíceis de assistir, ao mesmo tempo lança um olhar interessante sobre como a competitividade pode despertar verdadeiros monstros. Embora o filme se enrole nas intenções em alguns momentos, consegue ser envolvente principalmente por conta do desenvolvimento dos personagens. Embora cada personagem tenha seu momento de destaque na narrativa, alguns recebem maior destaque no andamento da trama, sobretudo os masculinos, deixando as personagens femininas em segundo plano. É interessante ver como um chama atenção como líder para depois se tornar vilão da história e depois ter este posto embaçado por alguns concorrentes. Com um elenco desconhecido eficiente, Exame evolui como um suspense ao mesmo tempo em que a percepção da realidade de seus personagens se torna cada vez mais turva. É visível como cada um constrói sua bolha de verdades e se torna incapaz de enxergar qualquer coisa que o faça retornar à razão. Pelo empenho em prender a atenção do espectador ao longo da narrativa com os poucos recursos que dispõe, Exame foi lembrado no BAFTA em seu ano de lançamento na categoria de melhor estreia de um realizador britânico (que acabou premiando Duncan Jones por sua estreia reluzente com Lunar). 

Exame (Exam / Reino Unido - 2009) de Stuart Hazeldine com Luke Mably, Chukwudi Iwuji, Gemma Chan, Jimi Mistry, Adar Beck, Nathalie Cox, Pollyana McIntosh, John Lloyd Fillingham, Colin Salmon e Chris Carey.

domingo, 19 de maio de 2024

NªTV: X-Men'97

 
X-Men: popularidade intacta. 

Inicialmente publicados em 1963, os X-Men se tornaram ao longo do tempo um dos grupos de heróis mais populares das histórias em quadrinhos. Criados para a Marvel pela dupla Stan Lee e Jack Kirby, eles se diferenciavam por serem vistos como aberrações pelo resto da humanidade, afinal era um grupo formado por mutantes, humanos que devido a mudanças genéticas provocadas por um salto evolucionário desenvolveram super poderes durante as mudanças hormonais e tensões da puberdade. A ideia fez com que os roteiristas não precisassem mais pensar em causas mirabolantes para os personagens desenvolverem poderes (um alívio). Criados em um momento em que a luta pelos direitos civis estava latente nos Estados Unidos,  X-Men soube como utilizar a exclusão e luta por igualdade com aventuras em que o dilema de zelar pela humanidade ou rebelar-se contra o sistema era muito bem representado pelo embate de dois amigos, o professor Charles Xavier e o sobrevivente do holocausto Erik Lensher, mais conhecido como Magneto. Essa mistura de assuntos sérios deram aos X-Men uma base dramática bastante eficiente, que nunca perde a atualidade. Some isso ao fato de um grupo de excluídos formarem uma família dentro de uma escola e o apelo se torna ainda mais forte. Se nas HQs o grupo já tinha fã clube garantido, ele cresceu exponencialmente com o lançamento da animação produzida pela Fox em 1992 que durou cinco temporadas. A popularidade da animação pavimentou ainda mais o que parecia impossível, a produção de um longa-metragem sobre o grupo no ano 2000 pela FOX. Assim surgiu a bem sucedida franquia dos mutantes que se tornou uma das mais rentáveis do gênero, pelo menos até seu último filme já afetado pelas comparações com os parâmetros cinematográficos da Marvel. A ideia de que o universo cinematográfico da Marvel criaria sua versão dos personagens gerou grande expectativa entre os fãs, de forma que até agora ela só sugere esta incorporação em seus filmes. Diante de todos os tropeços que cometeu recentemente, tendo um dos seus grupos mais populares na gaveta (e o mesmo pode se dizer de Quarteto Fantástico que recentemente teve seu novo elenco divulgado), eu tinha a impressão que a Marvel estava com receio do que deveria fazer. Se retomar o mesmo elenco dos filmes é complicado, fazer uma animação continuando o sucesso animado dos anos 1990 parece bem mais fácil e foi exatamente o que realizaram ao conceberem X-Men'97. Lançando um episódio por semana no Disney+, a animação conta os eventos ocorridos após o último episódio que foi ao ar em 1997 e o faz de forma que serve de lição para os erros que a Marvel cometeu em sua última fase. A começar pela complexidade de seus personagens e a sensação de que todos estão em perigo já prende atenção por si só. Se usarmos como parâmetro um cachorro morto feito o último lançamento cinematográfico do estúdio, o roteiro de X-Men'97 se torna ainda mais  brilhante. Aqui os ideais de Erik e Charles se confrontam mais uma vez e deixa o espectador no mesmo dilema dos heróis mutantes ao perceber os argumentos de cada um. Embora seja assustador ouvir que Magneto tem razão, em alguns momentos fica difícil discordar. Além disso, outros personagens ganham suas próprias tramas de forma envolvente, como Tempestade, Vampira, Jean e Ciclope, o que ajuda muito a plateia perceber que há muito mais a ser explorado aqui do que o popular Wolverine. A trama traz até um brasileiro para a trama, o Roberto Campos, o Mancha Solar, que tem destaque como novato da vez. Há quem ainda queira polemizar ao implicar com Morfo como não-binário arrastando uma asa pelo Wolvie, mas a coisa é feita com tanta discrição que as reclamações soam como algo de fã xiita. A  partir da metade da temporada, X-Men'97 cresce em narrativa como se fosse um verdadeiro filme com F maiúsculo. É tenso, sofrido, angustiante e sabe como utilizar a polaridade de Xavier e Magneto para deixar o espectador apreensivo perante o inesperado.  Se a Marvel seguir no mesmo tom para a chegada dos heróis nas telonas, já podemos começar a aplaudir. Enquanto a nova saga cinematográfica não vem, resta aguardar a nova temporada da animação que já está em fase de edição, o problema é a saída do redator chefe Beau de Mayo da produção pouco antes do lançamento deste sucesso sem motivo aparente. Ou seja, a Marvel ainda continua perdida nos rumos que deve seguir.  

X-Men'97 (EUA-2024) de  Beau de Mayo com vozes de Ray Chase, Cathal J. Dodd, Lenore Zann, Jennifer Hale, Holly Chow, Matthew Waterson, Ross Marquand e George Buza.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

PL►Y: Até o Cair da Noite

Ziegler e Thea: investigação e lavagem de roupa suja.
 
Leni Malinowski (Thea Ehre) cumpre pena por tráfico de drogas em uma penitenciária, mas a polícia considera que seu conhecimento no submundo pode ajudar na investigação sobre um traficante que atua misteriosamente online. Se colaborar e a operação obter sucesso, Leni poderá ter sua pena reduzida ou até conquistar a liberdade. Para conseguir isso, ela deverá reencontrar seus antigos contatos e fingir que o investigador Robert (Timocin Ziegler) é seu companheiro. Acontece que Robert já teve um relacionamento com Leni antes de sua transição de gênero e o que a polícia imaginava que poderia ajudar no disfarce, acaba se tornando um grande problema. Como se percebe desde o início de Até o Cair da Noite, Leni é uma mulher trans e Robert é gay e bastante ressentido. O diretor Christoph Hochhäusler desconsidera que o espectador percebe desde o início que a ideia absurda da polícia daria errado ao colocar o casal para trabalhar junto e faz a trama caminhar quase que em círculos. Conforme o filme avança, a investigação em torno do traficante Victor (Michael Sideris) fica cada vez mais em segundo plano perante a constante discussão de relação que se instaura. Hochhäusler tenta vender seu filme como um thriller policial, mas está bem longe disso, já que está mais para um drama amoroso queer com uma trama policial de pano de fundo. O fato é que, por mais que possamos entender os motivos do temperamento de Robert, ele é um personagem bastante desagradável e a forma como ele trata Leni é por vezes difícil de assistir. Obviamente que aqui existem sentimentos bastante confusos sobre o que um personagem sente pelo outro e o roteiro de Florian Plumeyer se complica um pouco para conciliar estas emoções com outros elementos da narrativa. Curiosamente é o criminoso Victor que por vezes ajuda o investigador a entender seus próprios sentimentos. No entanto, a sorte mesmo é ter a austríaca Thea Ehre na pele de Leni, ela consegue construir uma personagem que dá conta de todas as ambiguidades que o roteiro lhe oferece com bastante eficiência. Leni transparece estar deslocada em todo aquele universo áspero que a cerca e deseja algo diferente para dali em diante, fica fácil torcer por Leni ao longo da sessão e até compreender suas atitudes na reta final do filme. Pelo papel Thea Ehre recebeu o prêmio de melhor coadjuvante no Festival de Berlim no ano passado. Até o Cair da Noite é interessante por inserir um relacionamento diferente no centro de uma narrativa policial, embora o resultado seja um tanto confuso, rende momentos interessantes como aquela cena de reconciliação com seu casal protagonista em lados opostos do vidro de um carro. Após uma temporada nos cinemas, o filme está disponível na Reserva Imovision. 

Até o Cair da Noite (Bis ans Ende der Nacht / Alemanha - 2023) de Christoph Hochhäusler com Thea Ehre, Michael Sideris, Ioana Iacob, Rosa Enskat e Aenne Schwarz.

CATÁLOGO: Claire Dolan

Vincent e Katrin: uma pequena dose de amor.
 
Lembro quando Claire Dolan passou nos cinemas brasileiros e muita gente elogiava o trabalho da atriz principal, a inglesa Katrin Cartlidge que ficou conhecida de alguns cinéfilos por seus trabalhos com o diretor Mike Leigh (Naked/1993, Simplesmente Amigas/1997 e Topsy Turvy/1999), como a cunhada de Ondas do Destino/1996 de Lars Von Trier ou suas participações em filmes do leste europeu que concorreram ao Oscar (Antes da Chuva/1994 e o oscarizado Terra de Ninguém/2001). Assistindo ao filme me dei conta de como ela estava sumida dos cinemas e descobri que ela faleceu em 2002 por conta de septicemia em decorrência de uma pneumonia. Vê-la em Claire Dolan ressalta muito seus méritos como atriz, especialmente sobre a sua capacidade de transparecer sentimentos complicados de forma bastante sutil. Durante todo o filme ela carrega o olhar triste da protagonista que pretende dar uma guinada em sua vida, mas sempre encontra dificuldades. Claire se prostitui para pagar uma dívida com Roland Cain (Colm Meaney) que parece ser infinita. Quando ela recebe a notícia de que sua mãe faleceu, ela resolve mudar definitivamente os rumos de sua vida. Ela muda de cidade, entra em contato com uma prima que não via faz tempo e arranja um novo emprego. Aos poucos percebemos que suas emoções relacionadas ao amor e ao sexo permanecem confusas, especialmente quando ela conhece Elton (Vincent D'Onofrio), um taxista de poucas palavras que parece disposto a ter um relacionamento sério com Claire. No entanto, o passado da protagonista volta a complicar seu destino e resta saber o que Elton lidará com isso tudo. O segundo filme do diretor e roteirista Lodge Kerrigan consegue ser bastante eficiente ao exalar  o desconforto da personagem, utilizando uma narrativa seca que pode ser considerada bastante fria (inclusive nas cenas de sexo). No entanto, existe uma química interessante entre Katrin e Vincent (o ator aparece aqui com mais sex appeal do que na maioria dos seus papeis no cinema), cada um ao seu modo consegue dar vida a um personagem perdido que precisa se agarrar em uma dose de amor para recomeçar. Quem também está bem em cena é Colm Meaney como um antagonista realmente nojento. O filme foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes e concorreu nas categorias de melhor filme, melhor direção e melhor atriz no Independent Spirit Awards e está disponível na Reserva Imovision. Kerrigan acabou embarcando no mesmo universo décadas depois ao idealizar a série The Girlfriend Esperience (2016).  
 
Claire Dolan (EUA-França/1998) de Lodge Kerrigan com Katrin Cartlidge, Vincent D'Onofrio, Colm Meaney, Patrick Hustead e Madison Arnold. 

domingo, 12 de maio de 2024

4EVER: Paulo César Pereio

 19 de outubro de 194012 de maio de 2024 
 
Paulo César de Campos Velho, nasceu em Alegrete no Rio Grande do Sul e se tornou um ícone de rebeldia com seus trabalhos marcante no teatro, no cinema e na televisão. Filho de um militar com uma funcionária da assembleia legislativa, Pereio se interessou por atura nos anos 1950. O ator estreou no cinema ocm Os Fuzis de Ruy Guerra e desde então trabalhou em mais de 60 filmes assinados por nomes como Glauber Rocha, Hector Babenco e Arnaldo Jabor. Estão em seu currículo clássicos da cinematografia brasileira como Terra em Transe (1967) e Toda Nudez Será Castigada (1973). Nos anos 1960 fez parte da montagem antológica do musical Roda Viva de Chico Buarque. Apesar de continuar ativo nos últimos anos em sua carreira de ator, Pereio ficou mais famoso nos últimos anos pelo uso de sua voz grave no mercado publicitário. Pereio vivia no Retiro dos Artistas desde o início da pandemia em 2020, uma vez que declarava precisava de atenção quanto à sua saúde. O ator faleceu em decorrência de uma doença hepática.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

PL►Y: Puan

Marcelo e Leonardo: batalhas acadêmicas. 
 
Marcelo Pena (Marcelo Subiotto) parece estar bem tranquilo ministrando aulas de Filosofia na Universidade de Buenos Aires, embora seu renomado mentor tenha recentemente falecido por conta de um infarto, as coisas  parecem que irão se organizar para que os alunos não fiquem sem aula até que um novo professor ocupe a responsabilidade sobre a disciplina de Filosofia Política. Entre movimentos estudantis e encontros com a comunidade acadêmica, tudo parecia seguir como antes até que Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia) reaparece após uma temporada dando aulas na conceituada Universidade de Frankfurt e cause certo burburinho entre professores e alunos, afinal, Sujarchuk ganhou atenção da mídia recentemente por namorar uma estrela de cinema. Pena e Sujarchuk foram alunos do falecido e não poderiam ser mais diferentes, se Pena é a discrição em pessoa, o outro adora os holofotes que vez por outra se voltam para ele. Obviamente que ao vermos o primeiro encontro de ambos em PUAN vemos se estabelecer ali a semente de uma certa rivalidade, uma sensação de que haverá uma disputa entre os dois, menos pela cadeira que acaba de ficar vaga na Universidade, mas sobre quem é mais digno de atenção. Enquanto Rafael é todo concebido para ser um galã, Pena é moldado como uma homem comum, que precisa lidar com os compromissos, as tarefas de uma esposa engajada e um filho que paira sobre os dois sempre atento ao que está acontecendo. O roteiro e a direção da dupla María Alché e Benjamín Naishtat acerta quando segue o cotidiano de Marcelo Pena no que ele tem de mais comum, do encontro com os amigos, na vida domiciliar, nos momentos com os alunos e faz com que o ótimo Marcelo Subiotto transpire aquela estranha sensação de que sem a sombra do seu mentor, irão descobrir que ele é um impostor, sobretudo com a chegada de um acadêmico tão renomado como Sujarchuk. No entanto ele está longe de ser isso, é sobre esta descoberta que o filme trata, o que interessa é a forma como Marcelo irá aos poucos tomar as rédeas de seu lugar naquele espaço por mérito próprio, sem jogadas de marketing ou truques emocionais. O próprio Marcelo precisa reconhecer o seu valor, como se Sócrates dissesse a todo instante "conhece-te a ti mesmo" em sua calejada consciência. É verdade que o filme utiliza um golpe baixo desnecessário com toda aquela bobagem sobre uma fralda suja, que recai sobre o personagem como a materialização grotesca de um desconforto de que a qualquer momento ele "será descoberto", mas sorte que é que depois o filme engata em um senso de humor diferente que cai como uma luva às questões internas que o personagem precisa lidar. Puan retrata um pouco da escaldada vida acadêmica no constante tempo de crise pela América Latina, mas consegue fazer isso com leveza e bom humor, o que não é tarefa fácil, embora ele até faça pensar o contrário. Com alfinetadas sutis aqui e ali, o filme é um acerto. O longa está em cartaz no Prime Video e merece ser descoberto. 
 
PUAN (Argentina, Alemanha, França, Itália, Brasil - 2023) de María Alché e Benjamín Naishtat com Marcelo Subiotto, Leonardo Sbaraglia, Andrea Frigerio, Cristina Banegas, Lali Espósito, Julieta Zylberberg e Zulema Galperín.

terça-feira, 7 de maio de 2024

NªTV: Lucky Hank

Mireille, Odenkirk e seus visitantes: adeus, Saul Goodman.
 
Foi num clima estranho no qual assisti a cada episódio da série Lucky Hank da AMC. Afinal, quando ela começou a ser exibida no Brasil, ela já estava cancelada pelo canal. Sendo assim, cada episódio era um passo rumo à despedida. O maior terror de quem acompanha uma série é que ela termine sem um final, com aquela ideia aberta que pode ir para qualquer lugar que sua mente direcione. A sorte é que Lucky Hank terminou neste domingo deixando ao menos um arco fechado sobre seus personagens - e que você pode imaginar o que acontecerá com  o protagonista a partir dali como um recomeço. Seria ótimo ter mais uma temporada, mas já que não tem, não me arrependo de ter acompanhado oito episódios sobre o professor William Henry Devereaux Jr. vivido por Bob Odenkirk se despedindo de vez do advogado Saul Goodman, que começou a dar vida em Breaking Bad (2008-2013) e terminou em Better Call Saul (2015-2022). Para um ator que viveu o personagem por tanto tempo, o protagonista de Lucky Hank foi um presente, já que é um sujeito bem diferente para defender. Henry Jr. escreveu um livro que encontrou algum sucesso, mas sempre viveu à sombra do pai, de quem carrega o mesmo nome e carreira. Já que a carreira de escritor não decolou, Henry trabalha como professor em uma universidade e é o controverso chefe do departamento de Literatura (que é composto por personagens bastante diferentes entre si e que tornam tudo mais divertido quando seus egos acadêmicos se chocam continuamente). Ele não é propriamente um tipo simpático, mas os episódios tendem a revelar que Henry é bem menos rabugento do que aparenta. O fato é que ele colecionou várias mágoas ao longo da vida e como não deve acreditar nos benefícios de psicoterapia, lida com suas amarguras na marra. Assim, o relacionamento com os colegas não é dos melhores, mas a situação o sustenta ao lado da esposa Lily (Mireille Enos), ou pelo menos até ela dar vazão às suas  próprias ambições (que colocará Henry em uma verdadeira encruzilhada cheia de gatilhos). Henry tem contas a acertar com seu passado, especialmente com o pai, que em determinado momento irá voltar para convivência da família, mas sem a possibilidade daquela conversa catártica que Henry tanto deseja. No meio do caminho também tem a filha de Henry, Julie (Olivia Scott Welch) que é casada com um rapaz que é desprezado pelo sogro, Russell (Daniel Doheny). Henry também tem um melhor amigo, Tony Conigula (Diedrich Bader), que por vezes faz o amigo olhar para o mundo à sua volta com uma nova perspectiva (embora o personagem esteja bem longe de ter o perfil de conselheiro). Embora os episódios de Lucky Hank fluam muito bem isoladamente com o tom de uma comédia dramática (que poderia ter rendido um belo filme indie a ser cultuado na temporada de premiações e a assinatura de Peter Farrelly do oscarizado Green Book/2018 realça isso), como minissérie, a ideia pode ser considerada um tanto esticada demais (e nisso o fato dos episódios semanais ajuda muito a prender a atenção). Particularmente eu gostei muito da série, especialmente por ser um programa que aborda temáticas de personagens maduros em suas crises sobre o que fizeram de suas vidas. É verdade que a coisa começa a ficar um tanto cansativa quando Henry precisa fazer uma lista de demissão de professores a mando de um novo investidor e a série deixa de lado o relacionamento tempestuoso do protagonista com os seus alunos (que rende momentos sempre interessantes). O elenco está ótimo em cena e adoraria vê-los por mais algumas temporadas, especialmente Bob Odenkirk desenvolvendo as nuances mais emocionais ao longo de uma nova temporada (como no episódio do jantar que me deu um nó na garganta). Bob está ótimo em cena, mas se a série não vingou, pelo menos serviu para desvencilhar sua imagem de Saul Goodman para aqueles que se aventuraram pela primeira e única temporada de Lucky Hank. Para quem curtir a série, resta procurar o livro Straight Man de Richard Russo, lançado em 1997 que serve de inspiração para a trama. 
 
Lucky Hank (EUA-2023) de Paul Lieberstein e Aaron Zelman com Bob Odenkirk, Mireille Enos, Sara Amini, Suzanne Cryer, Shannon DeVido, Jackson Kelly, Cedric Yarbrough, Oscar Nunez, Diedrich Bader, Nancy Robertson e Anne Gee Byrd.

PL►Y: Mil e Um

Teyana e Josiah: segredos de mãe e filho.

Em tempos que muita informação sobre produções do cinema é sempre uma grata surpresa se deparar com um filme que você não faz a mínima ideia para onde vai.  A primeira vez que ouvi falar de A Thousand and One foi por conta das indicações que recebeu para o Independent Spirit Awards (melhor filme e melhor atuação) e tive uma vaga noção de que o filme era sobre a relação de uma mãe com seu filho. Isso está de bom tamanho para não estragar as surpresas que o filme oferece ao espectador, mas existem outros detalhes que posso comentar por aqui, sem dar SPOILER e fazer você ficar ainda mais interessado pelo filme. Posso dizer que Inez (Teyana Taylor) passou um tempo no presídio e ao sair, deseja apenas reaver o filho, o pequeno Terry, agora com seis anos, que mal lembra dela, mas sabe que no tempo em que esteve presa viveu em um abrigo e foi  encaminhado para a adoção. Ela deseja tanto viver ao lado do menino que é capaz até de burlar o sistema para que possam viver como uma família. Começa então uma jornada clandestina de Inez e Terry para seguirem a vida juntos a partir de meados dos anos 1990. A narrativa avançará por anos, sempre demonstrando as dificuldades encontradas pela dupla nos subúrbios de Nova York, com dificuldades, a grana curta e a companhia de Lucky (William Catlett) que se juntará à família quando Terry ainda for menino. A diretora e roteirista A.V. Rockwell se desvia com maestria dos clichês, embora a vida árdua dos personagens seja visível, ela desvia de um cotidiano de crimes, violência e drogas que geralmente são associados aos filmes sobre a realidade das periferias e se concentra na busca dos personagens por uma vida melhor (mas sem perder de vista que uma ação do passado de Inez poderá ter um custo alto que pode colocar o sonho de todos a perder). O espectador assiste o filme torcendo por aquela família e o desfecho deixa um nó na garganta por tudo passaram ao longo de todo o filme. É notável que este seja o primeiro longa-metragem da diretora. É preciso também destacar o trabalho arrebatador de Teyana Taylor, que apesar de ter mais trabalhos como cantora do que como atriz, demonstra um grande controle das emoções da personagem, sempre intensa, ela transparece com maestria as emoções da personagem, mesmo contida em cena, parece prestes a explodir! Pelo trabalho, ela foi lembrada no Independent Spirit e no Gotham Awards e poderia até ter aparecido em outras premiações se o filme não optasse por, no terceiro ato, destacar o trabalho do promissor Josiah Cross, que vive Terry aos 17 anos, prestes a conquistar seu próprio espaço no mundo. Embora o filme utilize algumas analogias pouco sutis (como o apartamento se deteriorando enquanto a família enfrenta seus piores momentos), Mil e Um (que está disponível no TeleCine via GloboPlay) é um filme que consegue conquistar o espectador com uma história que é tão cheia de segredos quanto de esperança. 

Mil e Um (A Thousand and One / EUA - 2023) de A.V. Rockwell com Teyana Taylor, Josiah Cross, William Catlett, Aven Courtney, Aaron Kingsley Adetola, Terri Abney e Delissa Reynolds.

domingo, 5 de maio de 2024

PL►Y: Vidas Passadas

Teo, Greta e Magaro: entre duas vidas. 
 
Quando pequena, Nora (Greta Lee) mudou com sua família para o Canadá. A mudança implicou até no nome de todos de sua família que buscava um recomeço fora da Coreia do Sul. Em sua partida, ela deixou o seu melhor amigo, Hae Sung (Teo Yoo) sem uma despedida apropriada. O tempo passou e Nora se tornou escritora e reencontrou o amigo com ajuda das redes sociais. Porém, o reencontro não ocorre conforme o esperado e os dois perdem contato novamente até que se reencontram vários anos depois. Ela agora é casada com Arthur (John Magaro) e Hae Sung irá viajar para Nova York para se reencontrar com ela. Indicado ao dois Oscars (Melhor filme e melhor roteiro original) o longa de estreia da diretora Celine Song consegue ser elegante, sutil e bastante melancólico ao contar uma história de amor que nunca se concretiza, mas que consegue ser ampliada pelas atuações de Greta Lee e Teo Yoo. Ambos dão vida a personagens que estão amarrados aos rumos que suas vidas tomaram e, ao mesmo tempo, sempre se indagam sobre o que a vida poderia ter sido se a separação nunca tivesse acontecido. Esta sensação fica bastante evidente em Hae Sung, que sempre contido, muitas vezes não sabe reagir diante de sua amiga. São visíveis os sentimentos que o estão mastigando por dentro, por outro lado, Nora quando o vê lembra da menina que foi um dia, mas agora tem ciência de que é a mulher que se tornou quando está ao lado de seu esposo. É neste ponto que outro personagem merece destaque, o marido. O texto e a direção de Celine fazem questão de fazer Arthur tão adorável quando Hae Sung, embora ambos sejam bastante diferentes. É visível a mistura de insegurança e empatia que o personagem sente sobre aqueles dois amigos que se reencontram após tanto tempo. Não por acaso, escolhi a foto que ilustra esta postagem com base na cena que abre o filme em que surgem várias especulações sobre quem são aqueles três personagens, ao mesmo tempo que se trata da conversa mais honesta entre Nora e Sung quase no final da sessão. Falando em conversa, o filme tem alguns dos diálogos mais cirúrgicos dos últimos tempos, sobre isso, por mais que existam algumas conversas sobre as outras vidas que podemos ter vivido antes da atual, o filme tem sua força maior sobre a expectativa do casal protagonista sobre uma vida que nunca teve. E se tivessem ficado juntos? Teria sido melhor? O romance entre os dois teria funcionado? Estariam juntos ainda? Quando chega a última cena a sensação é que nunca saberemos e talvez, aquela mistura de sentimentos sobre quem já fomos alguns dia seja o mais seguro a experimentar. Quando o filme terminou eu confesso que não o achei nada demais, mas conforme eu voltava a pensar nele, suas emoções genuínas o deixavam mais interessantes em minha memória. Não tem como, visto pelo prisma sobre o que deixamos para trás para sermos o que somos hoje o filme se torna ainda mais marcante. O filme saiu do Oscar de mãos abanando, mas se tornou um dos indies mais celebrados do ano passado, foi eleito o melhor filme no Gotham Awards e no Independent Spirit, no qual ainda ganhou o de melhor direção.

Vidas Passadas (Past Lives / EUA - Coreia do Sul / 2023) de Celine Song com Greta Lee, Teo Yoo e John Magaro, Moon Seung-ah e Choon Won-Young. 

sábado, 4 de maio de 2024

PL►Y: Transmissões Sinistras

Shum: impressões traiçoeiras.
 
Um amigo ficou tão instigado com Transmissões Sinistras que recomendou que eu assistisse. O título não ajuda a despertar interesse e o longa está escondido no acervo do Prime Video sem muito destaque. De fato o ponto de partida do longa é muito interessante, já que é baseado em uma história real sobre transmissões piratas que invadiram o sinal de emissoras nos Estados Unidos nos anos de 1963 e 1987 com imagens estranhas e sons bizarros. Nunca foram identificados os responsáveis ou as intenções daquelas imagens, mas algumas pessoas tiveram arrepios com o que viram na tela. Divagando sobre o que aconteceu e inúmeras teorias envolvendo o ocorrido, os roteiristas Phil Drinkwater e Tim Woodall construíram a história de James (Harry Shum Jr), um rapaz que ao final dos anos 1990 trabalha como arquivista de vídeo em uma emissora e se depara com uma das transmissões. Ele não conhece aquela história e começa a desenvolver uma verdadeira obsessão sobre o que aquelas imagens queriam dizer. No entanto, enquanto busca desvendar os mistérios da transmissão, James tem sua objetividade comprometida com acontecimentos mal resolvidos de sua própria vida - o que faz com que associe aqueles vídeos a alguns crimes sem resolução. O diretor Jacob Gentry consegue fazer um bom trabalho durante a primeira metade da sessão, em que consegue explorar o tom de paranoia junto às imagens esquisitas que apresenta e as teorias que começam a surgir no caminho do protagonista. Ainda que seja notório o orçamento curto do filme, ele consegue construir uma tensão envolvente na busca pela verdade sobre aquele sinal pirata que foi até investigado pelo FBI. O problema é que conforme o filme insere outros personagens no caminho de James o filme se embola nas intenções, se torna repetitivo e pouco convincente com os rumos escolhidos. A intenção é até interessante, já que aponta para uma  determinada cegueira do protagonista, que está tão obstinado a encontrar as respostas que deseja que é incapaz de questionar qualquer indicação de que esteja errado. Lembra um pouco o caminho feito por figuras notórias que produzem suas próprias verdades inquestionáveis e ainda atraem seguidores. O desfecho bizarro aumenta ainda mais o tom pessimista do desfecho e reforça a atmosfera de terror que aparecia nas entrelinhas da história. Ao terminar o filme, tive a impressão que este ponto de partida ainda pode ser retomado em uma produção mais ambiciosa e interessante no futuro. 
 
Transmissões Sinistras (Broadcast Signal Intrusion - EUA / 2021) de Jacob Gentry com  Harry Shum Jr, Kelley Mack, Chris Sullivan, Michael B. Woods, Justin Welborn e Jennifer Jelsema.