sábado, 30 de novembro de 2024

HIGH FI✌E: Novembro

 Cinco filmes assistidos no mês que merecem destaque: 

 
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KLÁSSIQO: A Ternura dos Lobos

Kurt e sua presa: arrepiante história real.
 
É estranho você descobrir que o clássico O Vampiro de Dusseldorf (1931) de Fritz Lang é baseado em uma história real. Se na obra de Lang o infanticida não consegue ser capturado pela polícia e é capturado e julgado por um tribunal de criminosos, o horror provocado pela história real não fica muito atrás. A história em questão é a de Fritz Haarman, um sujeito que se passava facilmente por um homem comum, mas que escondia uma mente profundamente doentia. Ele vivia sozinho em um apartamento em um prédio decadente na Alemanha que ainda amargava os efeitos da primeira guerra mundial. Sua conhecida atração por outros homens (especialmente os mais jovens) renderam um acordo com a polícia local para que ficasse atento aos imigrantes ilegais que apareciam nas redondezas. Enquanto vigiava a região, permanecia livre. Só que a polícia não desconfiava que este sujeito tinha outros interesses, algo que despertava suspeitas entre os vizinhos com os sons que ouviam de seu apartamento. Vale lembrar que em tempos de crise, Haarman sempre conseguia pedaços de carne para comercializar na região e acredita-se que eram de suas vítimas, geralmente crianças e adolescentes que fugiam de casa e eram acolhidos por ele, sem suspeitarem que suas intenções eram aterrorizantes. A lista de atrocidades cometidas por Fritz Haarman entre 1918 e 1924 é vasta, mas o número exato de suas dezenas de vítimas permanece desconhecido. Produzido por Rainer Werner Fassbinder (que faz uma participação como ator no filme), a direção ficou por conta de Ulli Lommel que investe em uma narrativa lenta, tão solene quanto mórbida,  que só aumenta a tensão em torno dos crimes de um serial killer. A narrativa é meticulosa e desenvolve de forma convincente a forma como um homem aparentemente inofensivo conseguia conquistar a simpatia das pessoas, especialmente das vítimas em situação de vulnerabilidade e que, uma vez desaparecidas, não chamariam a atenção de ninguém. O ator Kurt Raab, que colaborou em mais de trinta projetos com Fassbinder, acerta o tom de um personagem complicado. Ele consegue oscilar com maestria entre as particularidades do personagem que dão título ao filme, consegue simular uma ternura que servia de disfarce para suas intenções criminosamente predatórias. A cenografia e a fotografia ajudam na construção de uma atmosfera certeira para provocar alguns arrepios na plateia até os dias atuais. Selecionado para o Festival de Berlim no ano de seu lançamento, o filme foi rodeado de polêmicas e dividiu opiniões, no entanto, chamou atenção pela atmosfera carregada de sua narrativa.  Não por acaso, o diretor Ulli Lommel migrou para Hollywood e fez alguns clássicos do terror como The Boogeyman (1980) e Devonsville Terror (1983).
 
A Ternura dos Lobos (Die Zärtlichkeit der Wölfe / Alemanha Ocidental - 1973) de Ulli Lommel com Kurt Raab, Jeff Roden, Margit Karstensen, Ingrid Caven, Wolfgang Schenck, Brigitte Mira e Rainer Werner Fassbinder. ☻☻☻☻

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

PL►Y: Vida de Família

Decker: tomando a vida do primo.
 
Bruno (Cristián Carvajal) vai viajar com a família por algumas semanas e convida Martin (Jorge Becker), um primo distante, para tomar conta da casa enquanto estão fora. Antes mesmo de conhecermos Martin, dá uma certa pena ouvir dizerem que ele é um perdedor. Sem emprego e um tanto desprezado pela família, o rapaz não tem muito com quem contar. Quando o conhecemos, parece um sujeito comum. Inofensivo... pelo menos até que uma atitude junto com Consuelo (Blanca Lewin), a esposa de Bruno, deixa claro que ele está disposto a provar porque o consideram um perdedor. Ao longo dos dias, em que a casa existirá só para ele (e uma senhora responsável por fazer faxina uma vez por semana), Martin demonstra que é um sujeito meio desinteressado, apático e sem muita graça. Suas atitudes (incluindo a conversa com o gato da família, o Mississipi) só refletem que ele não está muito preocupado com ninguém, talvez nem com ele mesmo. Eis que o gato some e o Martin cruza o caminho de Paz (Gabriela Aranciba), uma mulher que está a procura do cachorro desaparecido.  Não precisa de muito tempo para o espectador perceber que existe uma química entre os dois, pena que Martin irá mentir para ela sobre quem de fato quem ele é. Vida de Família é um filme chileno dirigido pelo casal Cristián Jiménez e Alicia Scherson e que aos poucos se torna um comédia romântica muito interessante, já que no relacionamento com Paz, Martin deixa sua casca cínica e desesperançada, ainda que investindo cada vez mais na mentira para que a namorada o considere interessante. As cenas e os diálogos entre o casal são o que o filme possui de melhor e costuram as cenas tórridas entre os dois com a mesma naturalidade com que Jorge Decker aparece sem roupa em cena. É interessante como o ator consegue alterar várias vezes a forma como nos relacionamos com o personagem, o tornando um ser patético ao ponto de gerar raiva e, parece difícil acreditar, mas você ainda torce por ele e deseja um final feliz, mas... lembra sobre o que eu disse de Martin querer nos provar que é de fato um perdedor? Curto em seus oitenta minutos e feito sem maiores pretensões, o filme consegue ser divertido em sua superfície e dramático em suas entrelinhas, alcançando um resultado interessante, mas deixa a sensação de querer um pouco mais sobre aqueles personagens, dando a sensação de ser o piloto de uma série promissora.

 Vida de Família (Chile / 2017) de Cristián Jiménez e Alicia Scherson com Jorge Decker, Gabriela Aranciba, Blanca Lewin e Cristián Carvajal. ☻☻☻

PL►Y: Charlotte quer se Divertir

Alex e Marguerite: guerra dos sexos na loja de brinquedos.

Charlotte (Marguerite Bouchard) é uma adolescente de 17 anos que planeja ter sua primeira noite de amor com o namorado. Ela se preparou bastante para este momento, só que não acontece nada como o esperado. Decepcionada, ela conta com suas melhores amigas Mégane (Romane Denis) e Aube (Rose Adam) para consolar e passar o tempo fumando, bebendo e usando substâncias ilícitas. Só que as três percebem que passar o tempo fazendo isso não as levará a lugar algum. Em busca de dinheiro extra, as três resolvem se inscrever para vagas de emprego em uma loja de brinquedos e ficam muito animadas quando as três são chamadas para trabalhar. Se ganhar um dinheiro extra pode ser interessante, Charlotte acha ainda mais interessante os rapazes que trabalham por lá. Disposta a provar para si mesma que é uma garota desejável, ela resolve não desperdiçar a chance de se envolver com quem lhe parecer interessado. Não chega a ser algo planejado, mas movida pelo estranho sentimento de rejeição, ela se aproveita do interesse que todos os rapazes nutrem por ela, ainda que ela tenha uma predileção por Antoine (Alex Godbout). O problema é quando todo os funcionários começam a comentar o jeito, digamos, "liberal" de Charlote levar sua vida sexual. Ela descobre então da pior forma que os parâmetros para lidar com a liberdade sexual é completamente diferente quando se trata de moças e rapazes. Além de ter que lidar com as piadinhas entre os meninos e a rejeição das colegas de trabalho, Charlote começa a elevar a guerra dos sexos no local de trabalho a outros patamares. Este filme canadense dirigido por Sophie Loráin com roteiro de Catherine Léger é uma delícia de assistir! Especialmente pela forma esperta como subverte as expectativas do espectador que imagina estar diante de mais uma história de adolescentes com hormônios doidos para iniciar a vida sexual, este é apenas um ponto de partida para um roteiro bem construído sobre modelos de comportamento que são utilizados para disfarçar sentimentos que são bem mais complicados de lidar - o que não deixa de ser uma forma de viver (ou adiar) o próprio amadurecimento (não por acaso a trama é ambientada em uma loja de brinquedos e os adultos são aparições raras ao longo da história). Existem momentos muito divertidos, como aqueles em que todos começam a aderir a alguma campanha para arrecadar fundos junto aos clientes da loja, o momento em que Mégane percebe que recebe apenas dez dólares por hora trabalhada ou quando se descobrem os joguinhos de sedução entre os colegas de trabalho. O elenco atua em uma sintonia perfeita, mas deixa o destaque para Marguerite Bouchard que está ótima na pele da protagonista. Fazendo pensar sobre a forma como o discurso de liberação sexual feminino continua sendo mais aceito no campo do discurso do que na prática e, ainda assim, provocando risadas na plateia, Charlotte Quer Se Divertir se torna uma verdadeira pérola escondida no catálogo da Filmicca. Além de toda a sua eficiência narrativa, o filme ainda conta com um dos créditos finais mais irresistíveis da história do cinema. Vale a pena procurar. 

Charlotte Quer se Divertir (Charlotte a du Fun/ Canadá - 2018) de Sophie Lorain com Marguerite Bouchard, Romane Denis, Rose Adam, Alex Godbout, Audrey Roger, Vassili Schneider, Claudia Bouvette, Nicolas Fontaine e Alexandre Cabana. ☻☻☻☻

domingo, 24 de novembro de 2024

PL►Y: Piano de Família

Deadwyler: atuação marcante em ótima estreia de Malcolm Washington.
 
Em 1936, durante a Grande Depressão econômica dos Estados Unidos, a família Charles vive em Pittsburgh na companhia de um piano carregado de histórias da família. O instrumento está na família por conta de ter sua madeira talhada por um ancestral que marcou ali uma homenagem aos parentes que foram separados durante o período da escravidão. No entanto, os dois irmãos que herdaram o piano vivem um conflito por conta dele. Boy Willie (John David Washington) está de passagem na cidade para vender melancias ao lado do sócio, Lymon (Ray Fisher) e resolve passar um tempo na casa do tio Doaker (Samuel L. Jackson), durante este tempo, ele também vai tentar convencer a irmã, Berniece (Danielle Deadwyler) a vender o piano. Se a irmã não gosta da presença do irmão na casa, a coisa só piora pelo fato dela não ter a mínima intenção de vender o instrumento. Não é difícil perceber que além de toda ancestralidade que emana do piano, a própria Berniece tem sua cota de memórias ao som daquelas teclas. Começa então um impasse entre os dois carregado ainda por um toque sobrenatural, já que a casa passou a ser assombrada pelo espírito do herdeiro da propriedade na qual os antepassados dos Charles foram escravizados. Há quem acredite que ele morreu em um acidente (caiu em um poço). Há quem acredite que ele sempre quis o piano de volta. Há quem acredite que ele está naquela casa por conta de quem o empurrou para dentro do poço. Como se percebe, Piano de Família é uma trama cheia de fios a serem trabalhados, especialmente pelo emaranhado de histórias daquela família. Cada um sabe um detalhe que torna a trama ainda mais rica e emocional. Portanto, Malcolm Washington (filho do Denzel e irmão de  John David) merece aplausos por iniciar sua carreira como cineasta com um desafio desses nas mãos, afinal, muitos consideram que esta é a obra-prima de August Wilson. A peça ganhou o Pulitzer em 1990 (assim como Fences recebeu em 1987) e várias montagens aclamadas, portanto havia uma pressão enorme sobre o rapaz. O melhor de tudo é que ele se sai muito bem! Obras recentes do autor que foram adaptadas para o cinema pecavam pelo tom teatral (tanto Fences que virou Um Limite Entre Nós quanto A Voz Suprema do Blues), Piano de Família tem lá os momentos em que a teatralidade está presente (poucos, mas tem), mas que não comprometem um filme de duas horas de duração. Malcolm é muito esperto ao saber aqueles momentos do texto original que geram cenas externas à casa dos Charles, da mesma forma consegue criar várias cenas em que muitos personagens na mesma cena tornam a narrativa mais dinâmica. Além disso, o rapaz filma com uma paixão visível pelo material que tem em mãos. Particularmente achei a história daquela família muito tocante, especialmente pelos dois irmãos se verem em momentos de suas vidas em que precisam seguir em frente ainda que paire sobre eles os fantasmas passados. Neste ponto, se John David Washington segue em sua saga de honrar o nome da lenda que se tornou seu pai, Danielle Deadwyller tem algumas cenas espetaculares (e em duas delas, ela me fez chorar, não vale dizer quais, mas uma delas é aquela em que ela finalmente toca piano...). A atriz deve ser indicada ao Oscar de coadjuvante (especialmente porque o Oscar a ignorou quando era uma das favoritas a serem indicadas por seu trabalho em Till/2022). Outro que também gostei muito em cena foi Ray Fisher (o Cyborg de Liga da Justiça/2017), que amplia um papel discreto com uma presença cênica marcante e gera até torcida na plateia. Misturando um drama familiar histórico emocionante com um verniz sobrenatural, Piano de Família me surpreendeu pela sensibilidade com que conta uma história que cairia facilmente no melodrama. Se existe uma reclamação sobre o filme é a fotografia que deixa quase tudo no mesmo tom (cenários, figurino, iluminação...), mas um deslize pequeno diante do acerto que é esta adaptação que acaba de estrear na Netflix. 

Piano de Família (The Piano Lesson / EUA -2024) de Malcolm Washington com John David Washington, Danielle Deadwyler, Samuel L. Jackson, Ray Fisher, Michael Potts, Corey Hawkins, Eryka Badu e Skylar Aleece Smith. ☻☻☻☻

 

PL►Y: Abraço de Mãe

Marjorie: outro terror para o currículo.

Acho que existe uma unanimidade de que Marjorie Estiano é uma das melhores atrizes do Brasil. A moça começou na novela juvenil Malhação em 2004 e desde então seu talento só amadureceu  ao longo do tempo (e apesar de toda sua afinação, foi um grande acerto dedicar mais tempo à atuação). Seus trabalhos na série Sob Pressão (2017-2022) e na minissérie Fim (2023) são as provas mais recentes de que, aos 42 anos, a atriz merece sempre atenção. Acho de depois de escrever isso não será surpresa revelar que ela é o principal motivo para que eu assistisse Abraço de Mãe em cartaz na Netflix. A produção chamou atenção do público na semana de sua estreia e, de fato, merece uma olhada, primeiro pela Marjorie e segundo por ser um filme de terror bastante eficiente com uma pegada psicológica que só amplia o efeito na plateia. Desde as primeiras cenas o diretor Cristián Ponce demonstra estar disposto a construir uma atmosfera tensa. A bombeira Ana (Estiano), que acaba de voltar de uma licença por conta de um período complicado em sua saúde mental, está visivelmente desapontada por ter sido indicada para o serviço burocrático. Ela deseja provar que está preparada para voltar aos resgates. Embora alguns membros de sua equipe ainda desconfiem de sua estabilidade, outros parecem dispostos a lhe dar a apoio durante este retorno. A trama é ambientada na histórica tempestade tropical ocorrida no Rio de Janeiro em 1996 e, quando ela está prestes a começar, a equipe é chamada para ajudar na evacuação de um antigo hospital com risco de desabamento. No entanto, as pessoas que estão por lá se recusam a ir embora. Ponce começa então a construir um clima sinistro naquele ambiente, com personagens que parecem guardar um segredo que se revela aos poucos. Afinal, o que mantém aquele grupo de pessoas ali? Se no início a equipe é hostilizada, aos poucos, começa a se deparar com situações que comprometem cada vez mais a tarefa e uma presença estranha que influencia as relações naquele lugar. Ponce capricha na tensão e não a deixa baixar o nível antes do desfecho e, para isso, contribui muito a sensação claustrofóbica orquestrada durante todo o filme é ainda mais ampliada pelo elenco de coadjuvantes misteriosos. Claro que a capacidade de Marjorie dar conta da complexidade emocional de sua personagem ajuda bastante a manter o coração do filme quando as situações assustadoras começam a tomar conta da trama e seus traumas começam a vir à tona. Abraço de Mãe é um terror eficiente, mas que poderia ser melhor se fosse um tantinho mais objetivo na revelação dos mistérios que movem à narrativa. Vale lembrar que recentemente Marjorie também participou de outro notável terror nacional recente (As Boas Maneiras/2018) o que não deixa de ser uma ousadia para um gênero que ainda luta para ganhar espaço entre as produções brasileiras. 

Abraço de Mãe (Brasil - Brasil / 2024) de Cristián Ponce com Marjorie Estiano, Javier Drolas, Thelmo Fernandes, Helena Varvaki, Rafael Canedo e Reynaldo Machado. ☻☻

sábado, 23 de novembro de 2024

KLÁSSIQO: Teorema

Stamp: o sedutor misterioso de Pasolini.

Um teorema é uma proposição que é demonstrada por raciocínios lógicos, partindo de dados ou de hipóteses. Quando Pasolini inicia seu Teorema ele apresenta uma entrevista em meio a um bando de pessoas sobre um operário que recebe a empresa de herança do patrão. A ideia gera discussões e teorias antes que sejamos apresentados à uma família burguesa e sua boa vida. O ano é 1968 e no meio do luxo em que o empresário (Massimo Girotti) vive com a bela esposa (Silvana Mangano) e o casal de filhos, (Andrés José Cruz Sooublette e Anne Wiazemsky) existe um bocado de tédio. Uma esterilidade que tentam disfarçar com roupas de luxo, festas e jantares com seus convidados igualmente ricos. Eis que em um deles conhecemos um visitante (Terence Stamp) sobre o qual ninguém sabe muita coisa. Ele se torna cada vez mais próximo da família e se torna amigo do filho para dias depois já estar dividindo o quarto com ele. Existe um interesse generalizado por aquele rapaz de origem diferente dos que vivem naquela casa, tanto que logo todos e todas, a começar pela criada (Laura Betti), serão seduzidos por ele. Colabora muito para o jogo de sedução o jeitão sempre misterioso do inglês Terence Stamp, então com trinta anos e com aqueles olhos que parecem desbravar os segredos da alma de qualquer um. Na primeira parte do filme, cada um dos personagens terá o prazer de momentos de intimidade com o moço, até que na segunda parte ele precisa ir embora sem maiores explicações e todos precisam lidar com sua ausência, buscando novos rumos e soluções para a rotina entediante de suas vidas que não conseguem mais voltar a ser o que era antes. Acho que falei demais sobre o filme, mas o que Pasolini constrói aqui é uma alegoria sobre a relação indissociável entre burguesia e proletariado, havendo um caráter deliciosamente subversivo na  criatividade inquieta do cineasta ao inserir o sexo como um ponto de inversão na relação de poder apresentada entre as classes do filme. Diante da ausência do visitante os caminhos seguem por rumos inesperados, seja pela arte ou pela morte, mas sem perder o caráter de surto após os personagens vivenciarem seus desejos mais recalcados. Existe um tanto de culpa, assim como um flerte com o divino e o profano no desfecho de tudo isso. É uma ideia tão interessante que influencia obras até hoje. Vendo o filme lembrei da música da Legião Urbana ("Não vá embora, fique um pouco mais, ninguém sabe fazer o que você me faz. É exagero e pode até não ser. O que você consegue, ninguém sabe fazer"...) e que enquanto muita gente apontava tudo o que Saltburn (2023) tinha de O Talentoso Ripley (1999), cinéfilos mais antenados ressaltavam o quanto o filme de Emerald Fennell tinha de Teorema. Embora ela inverta a ausência de sua trama, as referências ainda são muito evidentes, alcançando intenções e resultados diferentes.  Teorema é considerado por muitos a obra-prima do cineasta italiano que sempre adorou uma polêmica, aqui ele opta por uma linguagem mais concisa e econômica, com poucos diálogos e longos silêncios, as intenções ficam nas entrelinhas até o desfecho repleto de angústia. 

Teorema (Itália / 1968 ) de Pier Paolo Pasolini com Terence Stamp, Silvana Mangano, Massimo Girotti, Laura Betti, Andrés José Cruz Sooublette e Anne Wiazemsky. ☻☻

PL►Y: Guerra Civil

Kirsten e Wagner: guerra pelo motivo que você escolher.

O quarto filme do diretor Alex Garland se tornou o primeiro grande lançamento cinematográfico de 2024 e logo começaram especulações sobre sua presença na próxima edição do Oscar. Com a proximidade da temporada de ouro nos Estados Unidos ficou perceptível que o filme anda esquecido entre as especulações da premiação. No Brasil o filme teve um apelo ainda maior com a presença do Capitão Nascimento Wagner Moura em um papel de destaque. Recentemente chegado ao catálogo do Max, finalmente consegui assistir e... A produção conta a história de Lee (Kirsten Dunst), uma jornalista que, em meio à transmissão pela TV do discurso do presidente dos Estados Unidos (Nick Offerman), ela resolve ir para a capital do país encontrar-se com ele. O presidente está em seu terceiro mandato e existe uma guerra civil que atravessa toda a nação, nela as forças armadas e os cidadãos aparentemente comuns andam com armas e atiram para todo o canto. Quem topa ajudar na empreitada de Lee é Joel (Wagner Moura) que sonha realizar uma entrevista com o chefe de Estado (e que talvez seja a última). Quem embarca também nesta viagem é o veterano Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata Jessie (Cailee Spaeny), que deseja se tornar fotógrafa de guerra (e ainda assim se surpreende com o que vê). A ideia deles atravessaram mais de mil quilômetros ate Washington D.C. serve como pretexto para que Garland apresente um país marcado por conflitos, onde a barbárie contrasta com a postura de algumas pessoas que preferem continuar suas rotinas como se nada estivesse acontecendo. A viagem do quarteto confere a maior atmosfera de road movie, ressaltado ainda mais pelo contraste entre a endurecida Lee e a jovem Jessie. Kirsten Dunst está ótima em cena e confere a dureza necessária à uma personagem que já viu de tudo na carnificina que a humanidade é capaz de promover, não por acaso a presença de Jessie a incomoda tanto (Freud explica) no que pode ser visto como uma preocupação extra no trajeto, mas também numa certa obrigação de que a garota embarque em um caminho sem volta (e do qual ela sabe exatamente os efeitos ao longo do tempo). O arco de Lee é o melhor da trama, já que os outros personagens não recebem muito desenvolvimento ao longo da história, sendo mais reativos perante o que acontece diante dos seus olhos. Sendo assim, contam mais com as boas atuações do elenco do que com a profundidade com que aparecem no texto. Garland (que antes de ser diretor era um escritor consagrado na Inglaterra) sabe como fazer com que a coisa funcione sem precisar falar muito sobre aquelas pessoas, prova disso é a presença do personagem de Jesse Plemons que em poucos minutos já entrega a performance mais assustadora do filme (e que sintetiza todas as ideias que movem a trama). Falando em ideias, temos o ponto fraco do filme. Afinal, o que gerou o conflito que vemos ali? Que lados são esses que estão brigando? Garland não explica essas questões ao longo da sessão, alguns podem considerar que é por puro estilo, mas acho que ele preferiu ficar em cima do muro para não ter que lidar com polêmicas sobre o filme (conhecendo os EUA seria fácil imaginar que é um conflito entre republicanos e democratas mas isso nunca é mencionado). Acho que este ponto faz uma falta danada para o alicerce do filme. Entendo que o foco do cineasta é fazer uma ode aos jornalistas e os riscos que correm em busca de noticias e imparcialidade... mas que raios está por trás do que eles estão noticiando? Em determinado momento, Lee diz que eles não devem se envolver e tomar partido, devem apenas noticiar e deixar as pessoas tomarem suas decisões, do jeito que aparece no filme a decisão geral é tentar ficar vivo diante da loucura instaurada. Embora Garland demonstre aqui um pendor para cenas elaboradas de ação, que não vimos antes em sua cinebiografia, sinto que faltou um tantinho de coragem para elaborar melhor o núcleo do conflito presente no filme. Outro ponto que me incomodou no filme foi a trilha sonora insistente (e que parece estar ali para fazer cenas pesadas serem menos duras de assistir), sorte que vendo em casa pude baixar o volume e ver apenas as imagens criadas por ele. Guerra Civil tem uma cuidadosa construção de imagens (o que é bastante coerente já que suas protagonistas são fotógrafas) e isso quase me faz esquecer que falta algo no seu texto. Guerras não fazem sentido algum e a do filme representa bem isso.

Guerra Civil (Civil War/EUA - Reino Unido - Finlândia /2024) de Alex Garland com Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen Mckinley Henderson, Jesse Plemons, Nick Offerman, Nelson Lee e Justin James Boykin. ☻☻

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

PL►Y: Deadpool & Wolverine

Ryan e Hugh: uma zoeira completa.

 Deadpool e Wolverine tem uma longa pendenga nos quadrinhos da Marvel, a coisa é tão evidente que no primeiro filme solo do mutante com garras de adamantium (X-Men Origins: Wolverine/2009) inventaram de colocar os dois juntos. Ninguém se empolgou com o encontro naquele filme. Na verdade, ninguém curtiu aquele Deadpool e somente Ryan Reynolds percebeu que se apertasse os botões certos, o personagem poderia funcionar no cinema. O ator bancou a ideia de trazer um personagem mais fiel aos quadrinhos e radicalizou uma estética que contaminou vários filmes de heróis desde então (nem sempre alcançando o resultado desejado). Com a primeira aventura solo de Deadpool (2016) sendo abraçada pelo público com sua agressividade, palavrões e várias piadas infames por minuto, uma sequência veio logo a seguir e deixou a sensação que apesar de toda a energia... havia algo de desestruturado naquela aventura. Ainda assim, bancar um terceiro filme soava inevitável. Com toda a confusão de fusão com a Disney e a Marvel amargando fracassos recentes, a promessa de promover um reencontro digno entre Deadpool e Wolverine parecia digno de crédito e com isso, em tempos em que filmes de heróis já saem com o carimbo de gênero saturado, o longa se tornou uma das maiores bilheterias do ano. O principal motivo é juntar dois personagens icônicos na tela e, sobretudo, tendo um deles defendido por um ator que jurou jamais repetir o personagem. Hugh Jackman parecia ter aposentado seu uniforme de Wolverine no muito digno Logan (2017), muito por conta da idade, problemas de saúde e mais de suas décadas conciliando outras produções com o papel do herói. O que um contrato robusto não faz? Ele está de volta, com o mesmo temperamento rabugento de sempre, mas serve de inevitável escada para o galhofeiro personagem de Ryan Reynolds. No entanto, não esperem um roteiro lapidado, o longa é uma bagunça! Mas ninguém parece se importar muito, já que a trama se apropria da ideia de multiverso para fazer uma homenagem aos filmes de personagens da Marvel que apareceram em produções de outros estúdios, alguns com sucesso e outros nem tanto, além de trazer um outro cujo filme nunca saiu do papel (se é que um dia chegou nele). Assim temos de volta Blade (Wesley Snipes), Elektra (Jennifer Garner), Johnny Storm (Chris Evans) e até o Gambit (Channing Tatum) que nunca antes havia aparecido na telona. O difícil é criar uma história entre as piadinhas que surgem a cada cinco minutos. Tascaram várias cenas de ação que surgem sem motivo aparente e que não deixam a narrativa fluir como deveria. A ideia interessante de colocar os personagens num ambiente semelhante a Mad Max, um pós-apocalipse do que sobrou em ruínas do universo marvete da Fox (literalmente), funciona, mas não vai muito além disso. Pelo menos a trama arranjou lugar para colocar a AVT (a Autoridade de Variância Temporal) para sugerir sentido nisso tudo e desenvolveram uma boa vilã para dar algum sustento ao filme. A vilã da vez é Cassandra Nova, a irmã gêmea do Professor Xavier que é vivida pela ótima Emma Corrin (que parece estar se divertindo bastante com as malvadezas de uma personagem menos séria do que está acostumada). No entanto, a sensação é que pegaram um monte de ideias aleatórias, bateram no liquidificador e o filme ficou pronto é inevitável. O sucesso nas bilheterias só ressalta que o público queria se divertir na sala de cinema e, como Deadpool disse uma vez, a saga do Multiverso não funcionou (mas pelo menos serve para fazer piada, despertar nostalgia e criar uma grande baboseira para o estúdio ainda lucrar mais de um bilhão de dólares ao redor do mundo). Enquanto todo mundo reclama da zona que os filmes da Marvel virou, Ryan Reynolds percebeu isso, abraçou a zona completa e fez um sucesso. A lição disso tudo é: não se leve a sério.

Deadpool e Wolverine (EUA - 2024) de Shawn Levy com Ryan Reynolds, Hugh Jackman, Emma Corrin, Chris Evans, Wesley Snipes, Jennifer Garner, Channing Tatum, Dafne Keen, Morena Baccarin, Matthew MacFadyen e Aaron Stanford. ☻☻

PL►Y: Look Back

Fujino e Kyomoto: sensibilidade diferenciada.
 
Fujino é uma menina que faz mangás de 4 quadros (similar a uma tirinha) para o jornal da escola e se acha o máximo por conta disso. Quando Kyomoto, outra aluna da escola, mas que nunca sai de casa, começa a escrever tirinhas para o jornal, Fujino começa a comparar a obra das duas e busca melhorar cada vez mais. Existe uma certa rivalidade instaurada por conta disso, mas quando as duas se conhecem, começa a se construir uma amizade que logo se torna uma parceria na construção de mangás mais elaborados. As duas crescem e trabalham juntas, gerando histórias de sucesso, mas a vida fará com que algo mude no meio do caminho. Look Back é um anime baseado na obra mais pessoal de Tatsuki Fujimoto (e que se tornou a mais popular entre os fãs). O diretor Kiyotaka Oshiyama trabalhou ao lado do autor nesta adaptação cinematográfica que está em cartaz no Prime Video após uma breve passagem pelos cinemas brasileiros. Percebe-se que um dos maiores desafios da produção é manter a sensibilidade na hora de contar a história de amizade entre duas garotas de personalidades bastante diferentes e que ganha o coração do público desde o primeiro encontro das duas. A paixão das duas pela arte dos mangás por si só é um grande atrativo para os fãs do gênero, mas o filme tem mais a oferecer por abordar uma história de superação por um viés bastante intimista. Kyomoto visivelmente sofre de síndrome do pânico e percebe-se desde o início o grande esforço que faz para se aproximar de Fujino e seguir a vida pelo que está pela frente. O laço entre as duas é construído de forma bastante natural e quando surge o primeiro rompimento entre as duas, podemos sentir aquela emoção transbordar da tela. No entanto, a trama prepara outra guinada na vida de ambas (e esta mais radical e definitiva) seria um grande risco para o apelo do filme se não fosse realizado de forma tão cuidadosa. A produção confia tanto na história que tem para contar que  opta por uma duração enxuta, sem enrolações, em sua uma hora de duração, algo que se por um lado evita mais detalhes sobre as duas amigas, torna a história mais potente em sua base emotiva. É preciso ressaltar que esta é a primeira produção do Studio Durian, que apresenta uma estética própria que combina perfeitamente com a história que tem para contar. Os traços, as paletas de cores, o cuidado com as expressões dos personagens e os momentos em que os desenhos exploram "movimentos de câmera" constroem uma identidade interessante para o filme. Look Back deixa um nó na garganta em seu último ato, mas não deixa de revelar que a vida tem seus caminhos próprios, que embora possam ser decepcionantes em alguns momentos, podem servir de inspiração para que a criatividade produza outros desfechos em nossa imaginação e, talvez, funcione como algum alento. 

 Look Back (Rukku Bakku / Japão - 2024) de Kiyotaka Oshiyama com vozes de Yumi Kawai, Mizuki Yoshida e Suzie Yeung. ☻☻

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Pódio: Fernanda Torres

Bronze: a amada versátil.

 3º Eu Sei que Vou te Amar (1986) Nascida em 15 de setembro de 1965 na cidade do Rio de Janeiro. Fernanda Torres é filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Ela estreou adolescente em programas de TV, mas foi no cinema que recebeu mais destaque - tanto que em seu terceiro filme recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Na odisseia romântica imaginada por Arnaldo Jabor, ela já dava mostras de toda a versatilidade que corria em suas veias. Nunca viu o filme? Vale a pena procurar. Além dos prêmios, o filme rendeu um trauma para a atriz, já que ao ser aclamada no maior Festival de Cinema do mundo, ela não estava lá por conta das gravações da novela Selva de Pedra. Foi sua primeira e última novela.

Prata: a devota casamenteira.
2º A Marvada Carne (1985) Eu fiquei surpreso quando descobri que este longa de André Klotzel é apenas o segundo longa-metragem de Fernanda. Dá para acreditar? Sua performance sagaz como Carula já lhe valeu um lugar entre os personagens mais icônicos do cinema brasileiro. Quem viu o filme (não viu? bora procurar!) sabe que o sonho de Carula é se casar, nem que para isso precise torturar Santo Antônio todos os dias. Quando Nhô Quim aparece como pretendente, ele terá que passar por vários desafios (alguns até Deus duvidaria). Filmão divertido, clássico, brejeiro e muito esperto que vale um lugar no coração de todos os fãs que lembram dele até hoje. 
 

Ouro: a mãe coragem.
1º Ainda Estou Aqui (2024) Faz tempo que a atriz já provou que seu talento vai além dos papéis cômicos, se alguém ainda duvidava do quilate do talento de Fernandinha, sua performance como Eunice Paiva espanta qualquer desconfiança. Em um trabalho contido e inesquecível, ela encarna uma mulher, mãe e esposa que precisou seguir em frente quando os pesadelos da ditadura passou a rondar sua família. Em performance digna de Oscar, Fernandinha ganhou um país inteiro de torcida para vê-la cravar uma indicação à estatueta de Melhor Atriz - o que será um feito incrível levando em conta que sua mãe já disputou a estatueta  e não levou. Está na hora de Fernandona ser vingada!

FILMED+: Ainda Estou Aqui

Os Paiva: a calmaria antes da tempestade. 

Existem tantos fatores que fazem de Ainda Estou Aqui um marco cinematográfico que vou começar do início, quando o filme começou a ser pensado por Walter Salles. O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015, a obra foi dedicada à sua mãe, Eunice. A base da trama é o dia em que o pai de Marcelo foi levado para um depoimento e nunca mais voltou. Era o início dos anos 1970 e quem leu o livro mais famoso de Paiva (Feliz Ano Velho, que também virou filme pelas mãos de Roberto Gervitz e merece ser redescoberto) já conhecia pedacinho dessa história. O interesse de Salles não surgiu por acaso, já que foi amigo da família e percebeu ali a oportunidade de contar uma história importante de forma bastante pessoal (não por acaso, soa como uma máquina do tempo amparada pela ótima reconstituição de época). O filme marca o reencontro de Walter com Fernanda Torres, com quem trabalhou em Terra Estrangeira (1996) e O Primeiro Dia (1999) além de contar com uma participação mais do que especial de Fernanda Montenegro, a diva master brasileira que foi indicada ao Oscar de Melhor atriz por sua performance em Central do Brasil (1998), também de Walter e indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, mas... o resto da história todo mundo lembra (até a Glenn Close). Uma mistura dessas rendeu um longa que foi selecionado para o Festival de Veneza e, após ser aplaudido de pé por dez minutos, foi ganhou o prêmio de melhor roteiro. Ali, Ainda Estou Aqui nasceu para o mundo e desde então segue elogiado em festivais, além de ser o candidato brasileiro à uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional. Com campanha competente da Sony Classics (e quem é antenado sabe o quanto isso é importante para o apelo de um filme junto ao público e votantes) o filme deve quebrar o jejum de vinte e cinco anos em que o Brasil não entra na disputa. Ajuda muito a torcida de um público que fez o longa um campeão de bilheteria desde a sua estreia nas salas de cinema por aqui. Faz tempo que um filme brasileiro não é tão celebrado - e se levarmos em conta a polaridade política que se instaurou por aqui nos últimos anos o feito se torna ainda mais impressionante. Afinal, o período em que o filme se passa é da Ditadura Militar, aquele período sombrio que para um grupo específico de pessoas não foi ruim. Não foi para quem? Para Eunice Paiva foi um período terrível, já que o marido foi levado de casa e por décadas ela e os quatro filhos não tiveram mais notícias dele. Sua angústia era vivenciada enquanto precisava dar conta das despesas da casa, da criação dos filhos, da vida que seguia com os olhos à espreita de um carro estranho estacionado sempre à frente de sua casa. Fernanda Torres está magnífica na pele de Eunice, ela encarna a mãe, a esposa, a mulher que se viu num turbilhão de incertezas e que prosseguir. Todos estes sentimentos complicados são internalizados e expostos de forma verdadeiramente emocionante durante o filme. O premiado roteiro, pega a história de nosso país e a conta através da história de uma família que subitamente foi transformada para sempre sem que entendessem o motivo. A trama se desenvolve com base nas vivências de Eunice, do dia em que teve que conviver com desconhecidos debaixo de seu teto a vez em que foi levada para depor encapuzada junto com sua filha de dezesseis anos e só voltou dias depois para casa, aquele momento em que percebe que o marido não vai mais voltar e terá que lidar com a dor em silêncio para preservar os filhos do horror que pairava sobre eles. Não por acaso o filme começa solar, alegre, com trilha sonora perfeita e aos poucos a atmosfera pesa. Se torna sombria, opressora, claustrofóbica. Incerta. Walter Salles trabalha essas camadas e tonalidades com maestria e envolve o espectador na história de uma família liderada por uma mulher que se nega a cair no abismo. Chega então aquela cena final em que a memória de quem passou por tudo isso não deve ser apagada, mas preservada pelas gerações futuras para evitar que algo tão sombrio se repita. Não satisfeito, Salles ainda termina com aqueles créditos com a casa vazia, triste, tão fantasmagórica como belamente filmada. Muito se fala se o filme trará um Oscar para o Brasil, eu adoraria que isso acontecesse, mas acho que o filme ainda fala mais alto para nós que vimos o país se tornar um território estranho nos últimos tempos. Ao menos na sala de cinema, banhado no silêncio respeitoso, nos sons de choros aqui e ali, tive a impressão que as pessoas entenderam a importância do filme como o acontecimento cultural que a gente precisava. Não sei se Fernanda Torres será indicada ao Oscar de atriz, só sei que ela merece (e muito), assim como o filme merece ser visto e lembrado. 

Ainda Estou Aqui (Brasil-2024) de Walter Salles com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Valentina Herzage, Maeve Jinkins, Dan Stulbach, Humberto Carrão, Charles Fricks, Antonio Saboia, Olívia Torres e Marjorie Estiano. ☻☻

PALPITES PARA O OSCAR 2025 - PARTE FINAL

"Piano de Família" de Malcolm Washington
 
O astro Denzel Washington continua em sua missão de adaptar as peças de August Wilson para as telas. Desta vez ele produz o filme de estreia de seu filho na direção, que conta com a presença do outro filho, John David Washington no elenco. A peça é considerada uma obra-prima e conta a história de uma família dona de um piano herdado que é decorado por desenhos esculpidos por um ancestral escravizado. O elenco estelar ainda conta com Samuel L. Jackson, Ray Fisher, Erykah Badu e Danielle Deadwyler (que está cotadíssima para o Oscar de atriz coadjuvante). O longa é uma das apostas da Netflix para a temporada de prêmios. 

"A Complete Unknown" de James Mangold
 
Depois de fazer sucesso com uma cinebiografia de Johnny Cash (Johnny & June/2005), Mangold pretende retornar ao radar das premiações com uma história baseada na ascensão do ícone Bob Dylan ao estrelato nos anos 1960. O filme recebeu elogios pela forma como reconstrói a cena musical do período e tem uma performance inspirada de Thimothée Chalamet (um dos favoritos ao Oscar de melhora ator). O elenco ainda conta com Edward Norton, Elle Fanning, Boyd Holbrook,Will Harrison e uma elogiadíssima Monica Barbaro no papel de Joan Baez. O filme é aguardado com grandes expectativas para a temporada. 

"Queer" de Luca Guadagnino
 
Embora a recepção no Festival de Veneza não tenha sido das mais empolgantes, a adaptação da obra de William S. Burroughs não gera só polêmicas em torno de seu teor homoerótico, mas também gera expectativas para ver se Daniel Craig finalmente será indicado ao Oscar. Ele vive Lee, um militar aposentado da Marinha dos Estados Unidos que vive na cidade do México dos anos 1940 e que se apaixona por um homem muito mais jovem.  O filme ainda tem no elenco Jason Schwartzman, Lesley Manville e Omar Apollo. A produção também está cotado para o Oscar de melhor fotografia. 

"Um Homem Diferente" de Aaron Schimberg

Premiado no Festival de Berlim deste ano, Sebastian Stan ainda tem sua cota de admiradores em torno de seu trabalho neste drama com maior jeito de thriller psicológico. Ele vive Edward, um ator que resolve mudar drasticamente sua aparência e acarreta efeitos indesejados em sua carreira. O filme também pode aparecer entre os indicados a melhor roteiro original (assinado pelo próprio diretor) e até surpreender com seu elenco de coadjuvantes bem defendidos por Renate Reinsvie e Adam Pearson. 

"Maria" de Pablo Larraín

De vez em quando Angelina Jolie lembra que é atriz e resolve atuar novamente nos cinemas. Quando surge em um projeto mais sério começam logo as especulações em torno do tempo que faz de  sua última indicação (por A Troca/2008) ou de quando ganhou um Oscar de coadjuvante (por Garota Interrompida/1999). Na nova biopic do diretor chileno sobre personalidades femininas, Jolie vive a diva Maria Callas em um período de crise que comprometeu a sua belíssima voz. Centrado nos últimos anos de vida da cantora, o filme tem poucas chances de figurar em outras categorias além de melhor atriz. 

"The Last Showgirl" de Gia Coppola

Comprovando que a disputa por uma indicação ao Oscar de melhor atriz está acirradíssimo no próximo Oscar, até mesmo a estrela da série SOS Malibu (1989-2001) surge com chances de uma respeitosa indicação. Pamela Anderson já foi uma das figuras mais faladas de Hollywood, mas nunca foi levada a sério como atriz no cinema, pelo menos até encarnar Shelly, uma showgirl de Las Vegas que perde o emprego após seu espetáculo ser cancelado após trinta anos em cartaz. Por dar conta dos dramas da personagem, Pamela se tornou o ponto mais elogiado do filme que conta ainda com Dave Bautista, Jamie Lee Curtis e Kiernan Shipka. Façam suas apostas!

domingo, 10 de novembro de 2024

PL►Y: Twister | Twisters

 Daisy e Glen: atraídos pelo perigo.

Quando assisti ao trailer de Twister em 1996, ele se tornou o filme que eu mais queria ver naquele ano. Mais do que Independence Day. Eu não lembrava de nenhuma produção que houvesse feito tornados de forma tão convincente até então. Estrelado por Helen Hunt (já famosa pela série Mad About You e perto de ganhar o Oscar por Melhor É Impossível/1997) e Bill Paxton (que faleceu em 2017) encarnando um casal que acaba de se desfazer. Os dois eram caçadores de tornados e criaram um experimento (a Dorothy) que seria capaz de rastrear os movimentos desses fenômenos imprevisíveis da natureza. Só que ele já havia deixado essa vida de aventuras e só precisa que ela assine os documentos do divórcio. Enquanto a assinatura não sai, ele segue atrás dela em uma temporada de tornados. A química entre os dois se tornou fundamental para que o público embarcasse na história e se importasse com os dois toda hora que os efeitos especiais aparecem para destruir tudo e fazer vacas voarem pelos ares (cena que se tornou clássica).  Jan de Bont acabava de sair de outro sucesso que investia em uma ideia diferente nos filmes de ação (Velocidade Máxima/1994) e demonstrava mais uma vez ser capaz de fazer as engrenagens de uma narrativa funcionar a seu favor. Twister ficou entre os filmes mais vistos daquele ano e fez o maior sucesso nas locadoras (vixe...) e repetiu várias vezes na televisão. Gerou algumas cópias descaradas, mas sem o mesmo sucesso, afinal, embora o texto não fosse lá grande coisa, a produção funcionava como filme pipoca que era uma beleza (e funciona até hoje)! O interessante é que todo o sucesso não gerou uma sequência para o filme até que em 2024 resolveram reativar a ideia. Ainda que não seja um remake, o filme tem muita semelhança com o primeiro, aqui Helen Hunt não aparece para uma participação especial, mas mencionam a Dorothy e sua importância para o trabalho no estudo dos tornados (e personagens usam codinomes de outros personagens do Mágico de Oz). Mais uma vez a trama é sustentada por um casal. Kate Carter (Daisy Edgar Jones) é uma cientista que procura informações sobre tornados com uma pesquisa que ainda precisa de mais dados, mas uma tragédia envolvendo seu grupo de pesquisa irá comprometer sua trajetória. Ela vai então para a cidade trabalhar de forma mais segura, mas o convite de um amigo (Anthony Ramos) faz com que ela volte a campo. Ela descobre que os tempos são outros e precisa lidar com a popularidade de Tyler Owens (Glen Powell), que junto com a sua trupe barulhenta persegue tornados para postar vídeos na internet. Logo se estabelece uma rixa entre o grupo de cientistas (que ainda conta com o novo Superman, David Corenswet) e a trupe de Tyler, mas que não demora muito para o público adivinhar o que acontece quando se coloca os rostinhos bonitos de Daisy e Glen no mesmo filme. A sorte é que os dois também são talentosos e conseguem gerar torcida na plateia enquanto compartilham o mesmo fascínio pelos tornados. Os efeitos especiais continuam feitos no capricho e tenho a impressão que existem mais cenas de devastação por aqui, no entanto, o primeiro me parecia construir uma tensão mais estruturada e criava uma sensação de você estar no meio de toda aquela destruição. Talvez essa diferença aconteça por conta da direção de Lee Isaac Chung experimentar aqui o seu primeiro filme de ação. Chung ficou famoso por seu trabalho em Minari (2020), que lhe rendeu o Oscar de roteiro original e uma indicação ao Oscar de direção. Ele não poderia ter embarcado em um projeto mais diferente. No entanto, o fato de ser nascido em Denver, no Colorado, lhe proporciona uma certa intimidade com aquela realidade devastadora. O mais incrível de sua direção é a forma poética como filma Kate observando os sinais da natureza para a força destruidora que se aproxima. Seja soltando um dente de leão no ar ou vendo os campos de trigo, Chung torna convincente estes momentos, sei que parece bobagem, mas isso faz toda a diferença na essência do filme. Ainda que eu prefira o primeiro, este aqui consegue ser interessante, mas talvez se houvesse mudado o foco de bancar uma comédia romântica nas entrelinhas, o filme ficasse mais original (mas teria feito o mesmo sucesso?). Vale lembrar que os dois filmes estão disponíveis no Max (e alguns de seus genéricos também). 

Helen e Bill: o apelo continua intacto.

Twister (EUA - 1996) de Jan de Bont com Helen Hunt, Bill Paxton, Philip Seuymour Hoffman, Jamie Gertz, Cary Elwes, Alan Ruck, Lois Smith e Jeremy Davies. ☻☻

Twisters (EUA - 2024) de Lee Isaac Chung com Daisy Edgar-Jones, Glen Powell, Anthony Ramos, David Corensweat, Sasha Lane, Maura Tierney, Daryl McCormack, Kiernan Shipka, Austin Brooks e James Paxton.

sábado, 9 de novembro de 2024

§8^) Fac Simile: Ryan Gosling

Ryan Thomas Gosling

Nosso repórter imaginário andava preocupado já que nenhum grande artista queria conceder-lhe uma entrevista ao longo do ano. Ele estava um tanto deprimido em uma Starbucks lotada no Canadá e ficou surpreso quando Ryan Gosling sentou diante dele perguntando se poderia dividir a mesa. Fac implorou por uma entrevista, que se transformou num bate papo que nunca aconteceu:

§8^) Você tem algum conselho após o fracasso de O Dublê?

Ryan Siga em frente, nada como um filme após o outro, digo... nada como um dia após o outro, mas falando de filmes, invista em filmes de baixo orçamento!

§8^) Acha que o fracasso do filme rendeu aquele comentário de que o Glenn Powell gera mais bilheteria porque ele é atraente para mulheres e homens?

Ryan Acho que a pessoa que disse isso não faz a mínima ideia do que acontece comigo, mas é melhor não entrar em detalhes.

 §8^) Alguns amigos fizeram um abaixo assinado para a Academia declarar um empate entre você e Robert Downey Jr. após sua apresentação cantando I Am Ken no Oscar desse ano. A Academia  entrou em contato com você?

Ryan Não. Mas eu não me importo com isso não. Claro que o reconhecimento é legal, mas olha quanto tempo demorou para o Robert ganhar um Oscar! Acredite, vou ganhar o Oscar por um filme que ninguém vai me achar merecedor. Aquele show foi bom para mostrar mais uma vez que interpreto, canto, danço, sapateio... e foi um momento tão divertido! Quando começaram a gostar da música eu só pensava "Meu Deus, o que foi que eu fiz!", mas quando chegamos no Oscar eu relaxei e fluiu. Por muito tempo eu fiz muitos filmes sombrios, densos e eu estava me sentindo um tanto pra baixo. Eu imaginava que não daria conta de ser engraçado. Aquela apresentação foi um desses momentos em que eu tinha que lembrar em ser o mais ridículo possível sem cair na gargalhada.

§8^) Essa foi sua estratégia quando interpretou o Ken?

Ryan Exatamente e em todas as outras comédias que eu fiz. O segredo é fazer graça sem rir. As pessoas levam a sério o que você está fazendo por conta disso. 

§8^) Algumas pessoas disseram que você estava velho para o papel...

Ryan Avisa para elas que o Ken tem mais de sessenta anos e eu tenho bem menos que isso. São essas picuinhas bobas que fizeram a minha esposa (Eva Mendes) parar de fazer filmes, acho que você viu recentemente ela dizendo que nunca foi uma boa atriz. Olha isso! É incrível o efeito desses ataques na autoimagem de uma pessoa. Ela sempre foi maravilhosa.

§8^) Você não vai acreditar qual o filme que você fez que é o favorito da minha mãe...

Ryan La La Land?

§8^) Half Nelson!

Ryan Uau! Sua mãe deve ser incrível. Poucas pessoas comentam este filme comigo.

§8^) E eu tenho os DVDs de Tolerância Zero e O Mundo de Leeland...

Ryan Oh meu Deus, você é um fã!

§8^) Sim! E meu voto desempatou Blade Runner 2049 com Moonlight em melhor filme lançado no Brasil em 2017 na votação do blog para qual trabalho!

Ryan Que legal! Muito obrigado, cara! Obrigado mesmo. 

§8^) Mas falando em La La Land, você não conseguiu conter o riso naquela confusão no Oscar de melhor filme com Moonlight...

Ryan Eu não sou de ferro, né? Topa outro capuccino?

PL►Y: O Dublê

Ryan e Emily: juntos em um dos flops do ano.

Ryan Gosling e Emily Blunt estrelaram os dois maiores sucessos do ano passado, ele interpretou Ken em Barbie, ela foi a esposa de Oppenheimer. Ambos os filmes foram indicados ao Oscar de Melhor Filme e o casal foi indicado aos prêmios de coadjuvante muito próximos dos favoritos da categoria. Juntar dois artistas tão populares parecia promessa de um campeão de bilheteria, bastava temperar com humor, romance e ação, mas não foi isso que aconteceu com O Dublê. O longa que prometia ser um dos mais queridos da temporada, amargou uma bilheteria de 178 milhões de dólares, pouco perante o investimento de 125 milhões. O diretor David Leitch (que inaugurou a famosa saga John Wick/2014 um marco da ação do século XXI) pode ter uma mente arrojada para criar cenas de ação, mas a ideia de abraçar vários gêneros e públicos ao mesmo tempo deixou o filme um tanto confuso. Não que a história tenha algo de muito complicado, mas tentar disfarçar uma trama simplória com uma montagem embaralhada não foi uma boa ideia, antes houvesse se rendido ao apelo nostálgico da trama inspirada na série Duro na Queda (1981-1986) e a trilha sonora que apela para um hit do Kiss a cada quinze minutos, que ganha até uma versão repaginada com foco nos mais jovens, esse olhar focado em dois grupos tão diferentes me parece o maior problema do filme. Mirar em gerações tão diferentes é um risco gigante para uma produção de orçamento tão inchado. A trama conta a história de Colt Seavers (Ryan Gosling) que é dublê de um dos maiores astros de Hollywood, Tom Ryder (Aaron Taylor-Johnson). No início Colt é um dos mais respeitados do ramo e está em ótima fase na carreira e na vida amorosa, afinal, ele está apaixonado pela assistente de direção Jody Moreno (Emily Blunt). Tudo seria ótimo em sua vida se um acidente não colocasse tudo a perder. O tempo passa e ele deixa a carreira e o prestígio para viver longe das câmeras. Eis que recebe o convite de uma produtora (Hannah Waddingham) para voltar a trabalhar como dublê, no filme de estreia de Jody como cineasta.  Obviamente que ele fica todo animado, mas existe um bocado de ressentimentos a serem trabalhados durante as filmagens, com muita lavagem de roupa suja em público e você tem a impressão que aquela discussão irá se arrastar por todo o filme até que você descobre que a produtora precisa de Colt para encontrar Tom que está desaparecido - o que compromete a continuação das filmagens e... a situação se complica cada vez mais. O filme tem dois aspectos que me incomodaram muito durante as longas duas horas de duração. O primeiro deles é a montagem caótica, que interrompe momentos empolgantes para apresentar conversas triviais entre dois personagens, causando quebras de ritmo irreparáveis achando que isso deixa o filme mais esperto e "moderninho". Não é, deixa apenas a narrativa menos fluída e mais irritante. A outra é que por mais que eu gosto de Emily Blunt, achei sua personagem uma chata. É muito difícil simpatizar com alguém que gosta de torturar um sujeito que perdeu tudo após um acidente que o quebrou todo. Entendo toda a mágoa que ela carrega no coração, mas não era mais fácil sentar e conversar já que o filme repete o tempo inteiro que os dois se amam? Que amor é esse? Eu não sei, mas é ele que motiva o filme a andar no meio da conspiração que é armada em torno do protagonista. O Dublê é um daqueles filmes que exageram nas cenas de ação (muitas vezes sem sentido) para disfarçar um roteiro boboca, o triste é ver nomes tão talentosos envolvidos num flop dessa magnitude. 

O Dublês (The Fall Guy / EUA - 2024) de David Leitch com Ryan Gosling, Emily Blunt, Hannah Waddinghan, Aaron Taylor Johnson, Winston Duke, Teresa Palmer e Stephanie Hsu. ☻☻

FILMED+ : O Banquete de Casamento

Mitchel e Chao: preciosa pérola de Ang Lee.
 
Desde o horroroso Projeto Gemini (2019) o diretor taiwanês está sem dirigir um filme (reza a lenda que ele está desenvolvendo Thrilla em Mannila, mas até agora o que se sabe é somente o título da produção). Ao longo de sua carreira, Lee mostrou-se um dos diretores mais versáteis de sua geração, por conta disso tem dois Oscars de melhor direção na estante filmes completamente diferentes, Brokeback Mountain (2005) e As Aventuras de Pi (2012). Embora sejam merecidos, ambos parecem prêmios de consolação, já que foram laureados por longas indicados ao Oscar de Melhor Filme e perderam. No entanto, quem acompanha a carreira do diretor desde o início, sabe que ele caiu no radar na Academia enquanto ainda filmava no oriente, e não estou falando de O Tigre e Dragão/2000 (que lhe rendeu a primeira indicação ao prêmio de direção e levou a estatueta de filme estrangeiro). Lee caiu no radar da Academia com seu segundo longa-metragem, O Banquete de Casamento. Lançado em 1993 o filme fez sucesso em um tempo em que falar sobre casais gays em grandes produções de estúdio era uma raridade, se fosse abordar casamento entre pessoas do mesmo sexo... a coisa complicaria mais ainda (a prática foi legalizada nos EUA  somente em 2015). O filme conta a história de Wai-Tung (Winston Chao), um rapaz que foi estudar nos Estados Unidos e conheceu Simon (Mitchell Lichtenstein), os dois se apaixonaram e começaram a viver juntos em Manhattan. No entanto, os pais de Wai-Tung não sabem que ele é gay e insistem para que ele se case e lhe dê um neto. Obviamente que a ideia está fora de cogitação para o moço, mas quando Wei Wei (May Chin), uma amiga estudante de arte, corre o risco de ser deportada, Simon tem a ideia de que a moça se case com seu parceiro (que tem cidadania americana), resolvendo o problema dela e amenizando a ansiedade dos pais de Wai-Tung. No entanto, após se prepararem para todas as burocracias com o greencard o trio não imaginava que Sr. e Srª Gao (Ah Lei-Gua e Sihung Lung) querem uma festança de casamento com parentes a amigos, e não apenas no cartório. Além disso, os sogros resolvem ficar na casa deles por um longo período, tornando a farsa mais complicada de ser convincente, o que afeta diretamente o relacionamento de todos os envolvidos. Lee realiza aqui uma deliciosa comédia de costumes e consegue manter a leveza mesmo nos momentos mais complicados da história, deixando sempre que a afetividade entre seus personagens fale mais alto. Existem aqueles momentos de dar gargalhada (as brincadeiras tontas no casamento ou a discussão entre Simon e Wai-Tung no café da manhã sem que os pais entendam o motivo) e outros de marejar os olhos (como os segredos que o casal de visitantes resolvem esconder um do outro ou a cena de despedida) e o resultado é irresistível. O elenco está excelente, em uma sintonia perfeita ao longo de toda a trama, convincentes tanto nas partes mais cômicas quanto nas mais emotivas. Atento a cada detalhes entre seus personagens (olhares, gestos, tom de voz...), o filme serve de registro de um tempo em que a maioria dos  relacionamentos homossexuais precisavam ser escondidos, mas Lee acena com uma esperança de que mudanças estavam por vir. Outro detalhe importante é que a produção se tornou um dos raros filmes com personagens homossexuais que termina de forma otimista. Para muitos, o filme se tornou o mais lucrativo de seu ano de lançamento, já que custou cerca de um milhão de dólares e rendeu mais de vinte e três milhões mundialmente! Na época, Lee não esperava que uma das espectadoras do filme, a atriz Emma Thompson, lhe convidaria para fazer uma adaptação da obra de Jane Austen que se tornaria um marco referencial do gênero. Lee dirigiu Razão e Sensibilidade (1995), ajudou Thompson a levar o Oscar de roteiro adaptado e o viu ser indicado em outras seis categorias (incluindo melhor filme), mas o cineasta ficou inexplicavelmente de fora do páreo de melhor direção. O Banquete de Casamento se tornou um divisor de águas na carreira do diretor que apresentou aqui sua capacidade de abordar sentimentos bastante íntimos de forma deliciosamente sutil. 

O Banquete de Casamento (Xi Yan - Taiwan / EUA - 1993) de Ang Lee com Winston Chao, Mitchell Lichtenstein, Ah Lei Gua, Sihung Lung, Dion Birney e Neal Huff. ☻☻☻☻

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

PL►Y: Os Horrores de Caddo Lake

Dylan: Dark simplificado.

Lançada em 2017 a série alemã Dark se tornou uma das mais populares da Netflix e também uma das mais enigmáticas. Ao longo de suas temporadas, o programa embaralhou como podia (ou não) a vida de seus personagens, sem pudor para confundir a mente do espectador, ao ponto de na reta final até eles ficarem em dúvida sobre como terminar tudo aquilo. Os diretores e roteiristas Celine Held e Logan George devem ter assistido a série e pensado "como posso simplificar tudo isso em um filme com menos de duas horas?". Assim, escreveram Os Horrores de Caddo Lake, produção disponível no catálogo do Max que chamou atenção do público na última semana. A trama gira em torno de dois personagens que vivem nos arredores do Lago Caddo. Ellie (Eliza Scanlen) é uma adolescente que vive em conflito com a mãe (Lauren Ambrose) e possui dificuldades em se relacionar com a família que está ao seu redor, especialmente depois que a filha de seu padrasto desaparece misteriosamente. Enquanto a família se desespera em busca da menina, também conhecemos Paris (Dylan O'Brien), um rapaz que tenta seguir a vida e superar a morte da mãe em um acidente de carro. A trama de ambos os personagens segue paralelamente até que começamos a perceber o que está acontecendo pelas pistas espalhadas no roteiro. Existe realmente um mistério envolvendo todos os personagens do filme, mas que se revela aos poucos. Quem assistiu Dark vai dar risada quando perceber as semelhanças e quem não assistiu deve achar o filme bem mais envolvente do que os fãs da série alemã. Se a trama pode perder o sabor de novidade para quem já viu algo parecido, vale ressaltar que os diretores sabem explorar as locações encharcadas para criar uma sensação de mistério, sendo esta ampliada pelo trabalho de Eliza e Dylan, dois bons atores que deveriam ter mais ofertas de trabalho interessantes, já que provaram há tempos que são muito bons em cena. Produzido por M. Night Shyamalan o filme não tem os horrores prometidos pele título, mas possui um mistério que envolve o espectador mais pelo drama vivido pelos personagens as situações mirabolantes do roteiro. 

Os Horrores de Caddo Lake (EUA-2024) de Logan George e Celine Held com Dylan O'Bryen, Eliza Scanlen, Caroline Falk, Lauren Ambrose, Diana Hopper, Eric Lange e David Maldonado.