domingo, 29 de setembro de 2024

4EVER: Kris Kristofferson

22 de junho de 1936  28 de setembro de 2024
 
Nascido no Texas, Kristoffer Kristofferson era filho de um general da força aérea dos Estados Unidos, o que fez a família viajar bastante durante a infância e adolescência de Kris. Depois de tantas mudanças, o rapaz escolheu se estabelecer na Califórnia, onde concluiu seus estudos antes de graduar-se em literatura inglesa pela Universidade de Oxford. Antes de se dedicar à música, Kris foi capa da revista Sports Illustrated pelo tempo em que era atleta universitário. Foi na faculdade que o artista escreveu suas primeiras canções, mas ainda assim, ele serviu na Alemanha e lecionou literatura na primeira metade dos anos 1960. Em 1966 ele fez sucesso com a música Viet Nam Blues, mas a fama só veio em 1970 quando recebeu o prêmio de canção do ano pela Academy of Country Musics. Em 1972, Kris estreou como ator no longa The Last Movie de Dennis Hooper, realizando vários filmes até 2011, entre eles merecem destaque Alice Não Mora Mais Aqui (1974) de Martin Scorsese, foi premiado com um Globo de Ouro pela refilmagem de Nasce Uma Estrela (1976) estrelada por Barbra Streisand, esteve no indicado ao Oscar Lone Star (1996) e na trilogia Blade com Wesley Snipes. Parceiro de grandes estrelas nas telas e na música, Kris foi indicado ao Oscar uma única vez, pela trilha sonora original do filme Songwriter (1984). Definido no juventude como um "atleta com alma de poeta", a causa da morte do cantor, ator e compositor não foi divulgada.

PL►Y: Imaculada

Sweeney: entre a fé e o corpo.

Lançado no primeiro semestre com algum destaque entre os filmes de terror do ano, Imaculada também foi envolto de polêmicas. Obviamente que qualquer longa metragem que tenha alguma menção religiosa que não seja edificante gera comentários raivosos, motivo pelo qual algumas pessoas criticaram bastante o filme. No entanto, em suas entrelinhas existem algumas questões importantes que merecem ser debatidas e estas estão além da sanguinolência, sustos e jump scares que a maioria dos fãs do gênero se acostumaram. Imaculada pretende ter mais do que isso. É verdade que em alguns momento o filme se acovarda de ser mais incisivo em suas questões, pelo menos essa é a impressão até chegar ao seu final bombástico. O filme conta a história da jovem Cecilia (Sydney Sweeney), que decide ser freira e parte para um convento na Itália. Vítima de um trauma na infância, a moça sempre considerou que permaneceu viva por algum propósito maior. Convidada para o convento distante, ela está certa de que seu destino é se dedicar à fé junto com as irmãs. Claro que aos poucos o filme irá se render à cartilha daquele ambiente em um filme de terror. Corredores escuros. Barulhos. Salas secretas e a suspeita de que existe algo macabro por debaixo de todo o discurso de fé pregado ali. Acho que não é um SPOILER dizer que do nada, Cecilia aparece grávida e jura que não manteve relações com um homem, antes ou depois de chegar lá. Alguns exames depois e não resta dúvida: estão diante de um milagre. Acontece que Cecilia tem fé, mas sabe que existe algo estranho naquela situação. Na segunda parte o enredo envereda por alguns absurdos, mas qual filme de terror que não o faz (o gênero parece ter uma licença para usar qualquer tipo de argumento para que o se vê na tela)?  O clima pesa conforme se pensa sobre a autoridade que Cecilia tem sobre seu próprio corpo e o que algumas pessoas são capazes de fazer em nome da fé. São dois pontos de discussão bastante atuais que convergem aqui com uma certa fúria, de um lado e de outro. Acontece que o filme precisa de um desfecho e o filme opta pela opção mais radical. Acho que vale dizer que o filme escorrega aqui e ali, mas tem uma boa ambientação e bons trabalhos do elenco, sobretudo de Sweeney e de Álvaro Morte (sempre estranho este sobrenome, mas cai feito uma luva para um filme assim), o ator, mais conhecido como o professor de La Casa de Papel, tem outro bom trabalho por aqui. Quando os dois estão em cena eu até esqueço como o filme fica muito perto de cair no ridículo. 

Imaculada (Immaculate / EUA - Itália / 2024) de Michael Mohan com Sydney Sweeney, Álvaro Morte, Benedetta Porcarolli, Simona Tabasco e Dora Romano.

PL►Y: As Três Filhas

Olsen, Carrie e Natasha: ressentimentos em luto.

A saúde de Vincent (Jay O. Sanders) sofreu um golpe severo e agora ele fica deitado em seu quarto ligado aos aparelhos, de lá, ele deve ficar um tanto decepcionado com as discussões  de suas três filhas perante o infortúnio. Se antes ele tinha apenas a companhia de Rachel (Natasha Lyonne), agora suas outras meninas, Katie (Carrie Coon) e Christina (Elizabeth Olsen) também vieram para ajudar. Ou pelo menos deveria ser assim, a convivência das três após tanto tempo tem o efeito incômodo de que somente os ressentimentos guardados pela vida é capaz de proporcionar. Eu sei, você já deve ter se deparado com dezenas de filmes que partem de uma premissa parecida (o recente Tia Virgínia/2023 com vera Holtz bebe na mesma fonte), mas a diferença está na forma como o cineasta Azazel Jacobs resolve contar os conflitos presentes neste reencontro. Como tanto, ele o faz bebendo diretamente nos estereótipos para apresentar aquelas três mulheres para depois desconstruí-las aos olhos do espectador. Isso é material de sobra para o trio de atrizes que abraçaram o projeto. Se pelos olhos das irmãs, Rachel nos é apresentada como a irresponsável do trio, aos poucos sua postura arredia ganha novas camadas, especialmente pelo trabalho de Natasha Lyonne (que ficou conhecida por seus trabalhos em outras produções da Netflix como Orange is The New Black e Boneca Russa), que aqui repete alguns de seus trejeitos habituais para depois revelar a profundidade de sua personagem (que tem rendido comentários de que está cotada para o Oscar de coadjuvante no próximo ano). Talvez ela seja a que tem a história mais destacada pelo roteiro, afinal a trama avança conforme conhecemos um pouco dos detalhes da inserção de Rachel naquela família. A rigidez apresentada por Katie desde a primeira cena, deixa o trabalho de Carrie Coon um tanto amarrado pela amargura da personagem, tendo seu conflito com a filha ao telefone sendo praticamente esquecido a partir de certo ponto. O mais curioso é que sua preocupação como o pai se mistura com um certo desejo de que ele parta de uma vez para que ela tenha que ir embora dali - mesmo que seja para viver uma vida que, talvez ela mesmo não se dê conta, não a agrada. Já Elizabeth Olsen consegue oferecer até um certo ar cômico para sua personagem, que é fã de Grateful Dead, tem um passado hippie e procura ser zen entre o casamento, a criação da filha pequena e as rixas entre as duas irmãs. Sua serenidade parece cada vez mais uma máscara, assim como a rigidez de Katie é uma ilusão de controle. Misturar as três sob o mesmo teto durante o processo de luto é uma experiência para percebermos como as nossas emoções no luto podem facilmente transbordar para a vida do outro, sem que seja notado como tudo isso torna o processo ainda mais doloroso e difícil. Digo isso por experiência própria, já que após dois meses acompanhando meu pai no hospital antes de sua morte, presenciei e vivenciei situações inimagináveis que o filme me fez recordar (e imaginei onde eu estava com a cabeça quando resolvi assistir este filme). Quando as lágrimas já eram inevitáveis e a cena de despedida se instaura, tive aquela sensação de que a catarse diante de uma tela é necessária para que possamos seguir em frente. As Três Filhas tem lá seus tropeços (principalmente pela estranha sensação que estamos diante do material para uma peça de teatro), mas funciona principalmente pelo trabalho de suas atrizes em uma ambientação claustrofóbica que só aumenta o peso da morte que se aproxima. Acho que passará em branco nas premiações, mas merece atenção entre o catálogo da Netflix. 

As Três Filhas (His Three Daughters / EUA - 2024) de Azazel Jacobs com Carrie Coon, Natasha Lyonne, Elizabeth Olsen, Rudy Galvan, Jose Febus, Jovan Adepo e Jay O. Sanders. 

sábado, 28 de setembro de 2024

PL►Y: A Garota de Miller

Freeman e Jenna: talentos desperdiçados.

Cairo Sweet (Jenna Ortega) é uma adolescente que planeja ser escritora, por conta disso, se matricula nas aulas de escrita criativa do professor Albert Miller (Martin Freeman), não demora muito para você perceber que existe algo mais do que interesse literário na proximidade que se estabelece entre os dois. A situação fica ainda mais preocupante quando a mocinha diz que seu texto para finalização do curso será inspirado no escritor inglês Henry Miller (sendo que as fantasias de Albert já foram longe quando percebeu um livro do escritor de Sexus entre os pertences da estudante). Nessas poucas linhas já é perceptível o material polêmico que a diretora e roteirista Jade Halley Bartlett tem em mãos. Jade viu seu filme ser beneficiado, desde antes da estreia, por todo o marketing que a relação intergeracional de seus personagens, afinal, Freeman tem 53 anos e Ortega tem 22! Quando o filme estreou, o que poderia ter de mais "atraente" se transformou num grande problema, já que não tinha muito mais a oferecer. Além de padecer de toda afetação dos diálogos artificiais, cheios de literatices, o filme explora minimamente as razões da atração que nasce entre os dois, ficando apenas na superfície do homem maduro em crise de meia idade que volta se ver interessante pelos olhos da jovem que se perde entre a admiração e a atração por seu mentor. Para piorar, as conversas de Cairo com sua melhor amiga são puro fetichismo e o roteiro ainda se perde mais ainda quando tenta inserir novas nuances na amizade entre as duas garotas. Mais decepcionante é ver que no momento em que o filme deveria crescer (quando o professor lê a obra de sua pupila e se vê diante do que o bom senso o faz recusar), a narrativa murcha de vez em argumentos que parecem até contraditórios, já que antes, todo mundo achava graça da mocinha que lia Henry Miller. Resta dizer que é bom ver Jenna Ortega fora dos seus papéis que flertam com o terror, ela está convincente como uma jovem que é um perigo por se levar a sério, assim como Freeman está mais charmoso que o habitual, só que o filme não sabe muito bem o que fazer com a premissa que criou para si. A resolução é apressada, desinteressante e não muito criativa. Quando o filme termina, abruptamente evidenciando não saber para onde ir, eu só ficava imaginando o que Justine Triet faria com um ponto de partida desse nas mãos.

A Garota de Miller (The Miller's Girl / EUA - 2024) de Jade Halley Bartlett com Jenna Ortega, Martin Freeman, Gideon Adlon, Dagmara Dominczyk, Bashir Salahuddin, Elyssa Samsel, Christine Adams e Augustine Hargraves.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

4EVER: Maggie Smith

28 de dezembro de 1934 27 de setembro de 2024
 
Margarteh Natalie Smith nasceu em Londres, filha de uma secretária e um patologista da Universidade de Oxford, faculdade na qual fez sua estreia como atriz aos dezoito anos. Nos palcos começou a receber seus primeiros prêmios, antes mesmo de se juntar ao prestigiado National Theatre em 1962. Maggie ficou famosa mundialmente com o clássico Primavera de uma Solteirona (1969), que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz. Ela foi indicada novamente ao prêmio por Viagens com Minha Tia (1972), foi oscarizada como coadjuvante em Califórnia Suíte (1979), categoria em que concorreu novamente por Uma Janela para o Amor (1987) e Gosford Park (2001). A atriz também fez sucesso como a madre superiora do sucesso Mudança de Hábito (1992) e se tornou querida de toda uma nova geração de fãs como a professora Minerva dos filmes de Harry Potter. Outro grande sucesso da atriz foi por sua icônica participação como a condessa Violet Crawley da série Downton Abbey (2010-2015). Com mais de cem trabalhos entre teatro, cinema e televisão, mais de cinquenta prêmios e o reconhecimento de sua importância cultural com a concessão do título de Dame pelo Império Britânico, Maggie Smith fez história. A atriz faleceu em decorrência da Doença de Graves, uma doença autoimune relacionada à tireoide. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

NªTV: Feud - Capote vs The Swans

Naomi e Hollander: entre a amizade e a fofoca.

Finalmente terminei de assistir a segunda temporada de Feud dedicada à pendenga  Capote Vs The Swans. A demora para conferir os oito episódios se deve ao gostinho de decepção após uma longa espera desde que a série criada por Ryan Murphy se debruçou sobre a treta entre Joan Crawford e Betty Davis nos tempos de O Que Terá Acontecido à Baby Jane (1962). Particularmente eu amo a primeira temporada de Feud (2017) não apenas por retratar os bastidores de um dos meus filmes favoritos, mas também por inserir várias camadas ao explorar os conflitos entre as duas divas do cinema. No entanto, quando o texto se volta para as desventuras do cultuado escritor Truman Capote com suas amigas da alta sociedade de Nova York, a impressão é que falta assunto para dar conta de oito capítulos  (talvez quatro seria o máximo que renderia). Baseado no best seller Capote's Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era de Laurence Leamer, a série vale principalmente pela curiosidade de ver um outro lado do escritor que ficou de fora de longas como Confidencial (2006) e Capote (2005), nos quais era vivido respectivamente por Toby Jones e, o oscarizado pelo papel, Phillip Seymour Hoffman. Como estes, Tom Hollander encarna o brilhantismo de Capote com trejeitos e voz afetada, mas revela uma queda indisfarçável pela fofoca e a maledicência. Ele tenta disfarçar tudo isso com uma postura de crítica à alta sociedade, mas sua postura é facilmente questionável a partir do momento em que colhe segredos perante as socialites de quem se aproxima e as revela sem seu texto sem pudores. Tudo gira em torno do processo criativo de Truman sobre seu livro nunca concluído (e publicado mesmo assim), o famigerado Súplicas Atendidas, que gerou escândalo quando teve uma amostra publicada em forma de artigo na revista La Côute Basque em 1965. Mesmo alterando os nomes, quem conhecia as festas da alta roda de NY e era atraído por colunas sociais sabia identificar quem eram as pessoas que o escritor retratava (e vendo quem estava perto dele, ficava mais fácil ainda). Estas mulheres influentes eram as chamadas Cisnes, com destaque para Babe Palley (vivida por Naomi Watts), a mais próxima de Capote e sua grande musa na criação do polêmico texto. Foi ela que o inseriu no grupo de amigas formado por CZ Guest (Chloe Sevigny), Slim Keith (Diane Lane) e Lee Radziwill (Calista Flockhart), a irmã de Jaqueline Kennedy. Para além do quarteto, a série ainda oferece destaque à amizade de Capote com Joanne Carson (Molly Ringwald) e as mágoas guardadas pela ex-amiga Anne Woodard (Demi Moore), que é alvo de fofocas sobre o assassinato do próprio marido. Embora tenha muitos personagens interessantes para dar conta e um elenco impressionante para ajudar (destaque ainda para Jessica Lange como a fantasmagórica mãe de Truman), o programa se perde nas várias voltas em torno de um mesmo ponto (o ressentimento das cisne e o ostracismo de Capote). Lá pela metade você já percebe que os episódios não sabem muito para onde ir com o casamento de Babe, com os amantes de Capote e um livro que nunca fica pronto. A sensação é tão estranha que o sétimo episódio parece ter a estrutura de uma season finale, para o oitavo episódio retroceder e repetir o que já vimos por quase uma hora. No fim das contas, Feud: Capote Vs The Swans vale pelas atuações, especialmente de Hollander e Naomi. Sobre a atriz é sempre bom ressaltar que ela merecia estar em mais projetos interessantes, mas faz um tempo que ela assumiu as marcas do tempo em seu rosto e hoje, aos 55 anos, Hollywood a deixou de lado. De certa forma é a naturalidade de suas feições que torna sua personificação de Babe tão interessante, atravessando décadas na vida da personagem, ela segue belíssima, elegante e interessante. 

Feud - Capote Vs The Swans (EUA-2024) de Ryan Murphy com Tom Hollander, Naomi Watts, Diane Lane, Chloë Sevigny, Calista Flockhart, Treat Williams, Demi Moore, , Molly Ringwald, Russell Tovey e Joe Mantello.


domingo, 22 de setembro de 2024

PL►Y: Eu vi o Brilho da TV

Justice e Brigette: a vida é (ou não?) uma série de TV.

Owen (Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Payne) são amigos desde 1996, ano em que eram adolescentes e compartilhavam o interesse por uma série de TV, a Pink Opaque. Na verdade foi Maddy que deixou o menino interessado pelo programa, já que ele nunca havia assistido por conta do horário em que o pai estabeleceu como limite para ir para cama. Pink Opaque passava no canal Jovens Adultos e começava dez horas da noite no domingo, terminando dez e meia, horário em que o canal começava a passar as reprises em preto e branco. Foi Maddy que o fez perceber as nuances e camadas que a maioria das pessoas não percebiam no estranho programa de duas garotas que se conheceram em um acampamento e tinham aventuras em um mundo psíquico em que enfrentavam o monstro de cada dia e os interesses do Sr. Melancolia. Além do seriado, os dois amigos também tinham outras coisas em comum, a começar pela sensação de estarem sempre deslocados. Maddy já havia se dado conta de que gosta de meninas e da influência disso em sua vida e personalidade, mas Owen estava mais preocupado com a doença de sua mãe, a postura ausente de seu pai e como veria o novo episódio de Pink Opaque na próxima semana. Afinal, diante de tudo isso, em que ponto ele poderia ser ele mesmo? A amizade entre os dois irá passar por alguns percalços envoltos em mistérios e coincidências com o tal programa, o que irá deixar Owen sempre desconfiado de que algo estranho está acontecendo em sua vida. Em seu segundo trabalho na direção Jane Schoenbrun foge mais uma vez do óbvio para abordar as mudanças da vida de seus personagens adolescentes, se em We're All Going to the World's Fair (2021) ela usava um jogo de RPG online para abordar estas mudanças, aqui ela utiliza um programa de televisão para expor a identificação de seus protagonistas e suas escolhas. Pode se dizer que existe muitas referências aqui, tem um clima de Videodrome (1983) de David Cronenberg, uma vibe meio David Lynch em alguns momentos e até do clássico Poltergeist (1982), resultando num parente noventista underground de Stranger Things/2016 (e a nova temporada sai quando hein?). Schoenbrun costura tudo com uma certa nostalgia dos tempos em que esperávamos o episódio semanal de nossa série de televisão favorita e nossa frustração quando ela era cancelada após o clímax de uma temporada. Era como perder um amigo muito próximo. Esta parte da adolescência de Owen e Maddy está muito bem amparada em sua lentidão no filme, até mesmo quando pontua alguns mistérios para que a trama avance por outros caminhos a partir de determinado momento. No entanto, o filme se torna cada vez mais hermético e delirante a partir de certo ponto, deixando as ideias um tanto confusas, especialmente quando propõe uma mistura entre a realidade e o programa. Resta então ver Owen (um ótimo trabalho de Justice Smith, ator que conheci com meu sobrinho assistindo Detetive Pikachu/2019) envelhecendo ao longo de uma vida que ele não sabe muito bem como viver (e neste ponto, a metáfora com o sombrio último episódio de Pink Opaque ganha força com o destino da personagem Isabel). Eu Vi o Brilho da TV não tem medo de ser divisivo e demonstra isso com bastante criatividade, visual inclusive, se apropriando de elementos dos filmes de terror para provocar estranhamento e reflexões com suas metáforas e simbolismos. Talvez eu devesse assistir de novo para compreender melhor a experiência que ele me ofereceu, mas talvez eu tenha a mesma impressão de Owen ao revisitar seu programa favorito e ver que ele não era tão ameaçador quanto ele imaginava. Ame ou odeie, o filme é uma das obras mais instigantes (e estranhas) do ano. 

Eu Vi o Brilho da TV (I Saw the TV Glow /  EUA - Reino Unido / 2024) de Jane Schoenbrun com Justice Smith, Brigitte Lundy-Payne, Helena Howard, Ian Foreman, Lindsey Jordan, Danielle Deadwyler, Fred Durst, Conner O'Malley, Emma Porter e Albert Birney. ☻☻☻☻

PL►Y: Assassino por Acaso

 
Adria e  Glen: brincando com os signos do film noir.

Parece que Glenn Powell está realmente aplicado em se tornar o maior astro de Hollywood da atualidade, após décadas tentando um lugar ao sol no mundo do cinema, parece que ele finalmente encontrou seu rumo - ou seria o público que finalmente o encontrou. Ele se tornou o protagonista de um dos primeiros sucessos do ano com Assassino Por Acaso, longa dirigido por Richard Linklater (com quem já havia trabalhado em Jovens, Loucos e Mais Rebeldes/2026), produzido pela Netflix e que deixou os produtores tão animados que ganhou uma carreira bastante rentável nas salas de cinema. O filme conta a história de Gary (Powell) um professor de faculdade que leciona filosofia e sociologia e que começou a trabalhar com escutas policiais para ganhar um dinheiro extra. Um dia ele é escalado para substituir um agente que se passa por assassino profissional para prender possíveis mandantes de crimes. Gary descobre que é muito bom nesse tipo de trabalho e além de ser bastante convincente em sua primeira missão, ele busca se aperfeiçoar cada vez mais encarnando o tipo de persona que acredita que seria o matador sob medida para quem deseja contratar um. Logo ele se consagra como o melhor do ramo (e a brincadeira de viver vários tipos diferentes deixa claro o quanto Glen  está se divertindo com o papel). Eis que um dia ele recebe o pedido de uma mulher (Adria Arjona) que sofre com um marido abusivo, mas ao invés de "aceitar o serviço" e prender a contratante, ele resolve convencê-la a desistir da ideia e procurar seguir outro rumo em sua vida. A esta altura eu me perguntava porque o filme recebeu tantos elogios por sua trama simpática, mas bastante simples. Bem... é neste ponto que a moça poderia só aceitar a dica e ele poderia continuar som seus serviços, mas os dois resolvem se encontrar, manter contato e a coisa começa a complicar. Não vale contar muito mais do que isso para não estragar algumas das reviravoltas mais bacanas que assisti em uma comédia recente, ao ponto de você até perdoar que o filme patina um bocado para se esquivar do tom sombrio das mortes que começam a aparecer no caminho. Richard Linklater oferece aqui uma direção esperta e sem firulas que mantêm o ritmo sempre de maneira eficiente, além disso sabe como conduzir o elenco de forma mais do que eficiente para fazer graça e tornar a história inacreditável em algo crível. Se Glen Powell tem aqui uma performance memorável, ele é seguido de perto por Adria Arjona que brinca com a figura de uma femme fatale clássica que é capaz de levar o mocinho por caminhos inesperados. Assassino Por Acaso parece uma brincadeira com os signos de um film noir e torna-se uma grata surpresa em tempos de tantas ideias recicladas e, o mais interessante, é baseado em uma história real - que não envolve romance ou mortes de verdade - mas que faz a cabeça de qualquer um ferver de ideias para um filme interessante.

Assassino por Acaso (Hitman - EUA / 2023) de Richard Linklater com Glen Powell, Adria Arjona, Austin Amelio, Retta, Evan Holtzman, Mike Markoff e Sanjay Rao. 

PL►Y: Instinto

Marwan e Carice: estranha atração.

Nicoline (Carice Van Houten) é uma experiente psicóloga que começa a trabalhar em um presídio, entre seus pacientes está Idris (Marwan Kenzadri), que está prestes a receber a permissão para poder sair sem supervisão e, provavelmente, em breve, poder estar em liberdade condicional. Ele foi preso por ter cometido crimes sexuais e  pelas consultas com Nicoline, ela percebe que não é uma boa ideia deixar o moço solto por aí. Este é um dos principais pontos do filme, o outro é a estranha atração mútua que começa a existir entre os dois. Em seu primeiro trabalho como diretora a atriz Halina Reijn faz um trabalho na medida para gerar polêmica e provocar discussões, isso acontece porque, propositalmente, ela deixa muitas pontas soltas, várias intenções subentendidas e carrega as entrelinhas com intenções que muitos realizadores evitariam. Há quem diga que o filme é bastante inconsequente na forma como aborda a relação da protagonista com seu paciente, há quem considere que tudo passa pelo território da fantasia que se torna perigosa quando se torna real e há quem ressalte que desde o início tudo é um plano arriscado para que Nicoline chegue aos seus objetivos. Seja como for, Instinto pode gerar várias interpretações e tanto seus méritos quanto suas fragilidades nascem das mesmas provocações. No entanto, se Idris pode sempre ser visto como um maníaco a procura de sua próxima vítima (e o jogo de poder com uma figura de autoridade não o deixa intimidado, pelo contrário, o deixa ainda mais excitado), Nicoline se torna a figura mais complexa da narrativa. Não apenas pela sua dificuldade de estabelecer relacionamentos, mas a forma complicada como vivencia o sexo e a suspeita constante de que já vivenciou situações de abuso em sua trajetória - esta  perspectiva paira principalmente pelo seu estranho relacionamento com a mãe (que poderia render um filme somente para abordar isso). Se Idris é um enigma para Nicoline, para o espectador, é a psicóloga que levanta mais indagações, afinal, para Idris resta sempre a pergunta se ele está regenerado ou não, mas a resposta não demora muito a aparecer, já o que se passa na mente da protagonista é bem mais complicado de supor. Até o nome do filme gera dúvidas na mente do espectador, afinal, a que a palavra Instinto se refere? Seria à sexualidade de seus personagens?  Ao instinto de sobrevivência? Ou seria ao instinto de defesa? Halina Reijn não gasta tempo exibindo explicações, mas enfileira possibilidades que permanecem na mente do espectador até o final da sessão. A  proposta parece ter funcionado muito bem, já que o filme fez sucesso nas bilheterias de seu país e ganhou o prestigiado posto de disputar uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro em 2020 representando a Holanda. A indicação não veio, mas Halina engatou uma carreira interessante em Hollywood, realizou o irônico Morte! Morte! Morte! (2022) e recentemente rendeu o prêmio de melhor atriz em Veneza para Nicole Kidman pelo seu novo filme, Babygirl (2024), em que mais uma vez explora os meandros da sexualidade de sua protagonista. 

Instinto (Instinct/) de Halina Reijn com Carice Van Houten, Marwan Kenzari, Pieter Embrechts, Robert De Hoog, Betty Schuurman e Kuno Bakker. ☻☻

PL►Y: Garra de Ferro

Harris, Zac, Stanley e Jeremy: a maldição dos Von Erich.
 
Conforme dito ao final do filme, a família Von Erich se tornou uma das famílias mais importantes da luta livre dos Estados Unidos, mas após mais de duas horas de projeção a pergunta que vem à mente do espectador é: a que preço? Fosse uma história de ficção, provavelmente o público e a crítica chegariam a um consenso de que o novo filme de Sean Durkin (dos elogiados O Refúgio/2020 e Martha Marcy May Marlene/2011) é um exagerado amontoado de tragédias. Como é uma história real, resta ficar impressionado com todos os acontecimentos que atravessam a família Von Erich. O clã é chefiado pelo patriarca Fritz Von Erich (Holt McCallany), que ficou famoso nos ringues com sua figura de vilão e seu golpe que dá nome ao filme (que consiste em apertar com uma mão o topo da cabeça do adversário até que a dor se torne insuportável), como a carreira de Fritz nunca avançou muito, ele passou a investir nos filhos, que ao longo dos anos 1980 se tornaram lutadores famosos. Kevin (Zach Efron) é o responsável por conduzir a narrativa, contando como foi se tornar o mais famoso dos manos, sendo seguido por David (Harris Dickinson) e Kerry (Jeremy Allen White), este aderindo às lutas depois que a carreira de arremessador de discos não deu certo. Existe ainda o caçula, Mike (Stanley Simons), que preferia seguir a carreira de músico em uma banda de rock, mas para acatar as vontades do pai se tornou lutador também. Paira sobre os quatro não apenas a figura paterna sufocante de Fritz, mas também  a suspeita de que o nome Von Erich trouxe para eles uma verdadeira maldição. Se esta ideia começa com a morte do primogênito (que não recebe muito destaque na trama para amenizar um pouquinho o tom de tragédia), ela fica cada vez mais forte conforme uma série de acontecimentos sombrios recaem sobre os manos. São acidentes, doenças e mortes que fazem com que o espectador comece a acreditar que existe realmente uma maldição ali. Esta é a impressão que passa a tomar cada vez mais a mente de Kevin, que apesar de ter um casamento feliz com Pam (Lily James), começa a temer sob o seu futuro e dos seus filhos. No entanto, aos poucos, ele começa a ter a mesma sensação do espectador, de que muitas daquelas situações poderiam ser evitadas se não houvesse sobre eles a presença de uma figura paterna tão tóxica. Se Holt McCallany  consegue injetar algumas nuances ternas no início do filme, a coisa ganha contornos cada vez mais assustadores quando recai sobre os ombros cansados de Kevin a missão de carregar o nome da família e os conflitos com o patriarca se tornam inevitáveis. A história é forte, o elenco é afiadíssimo, a reconstituição de época impressiona, mas o resultado se torna um tanto cansativo devido à duração extensa, no entanto, Garra de Ferro surpreende pela história verídica inacreditável que resolveu contar.
 
Garra de Ferro (The Iron Claw / EUA - 2023) de Sean Durkin com Zac Efron, Holt McCallany, Jeremy Allen White, Harris Dickinson, Lily James, Maura Tierney e Stanley Simons. ☻☻☻

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

PL►Y: Uma Mulher Terrível

Amanda e Anders: como ser refém de uma relação.

O dinamarquês Cristian Tafdrup ganhou fama mundial com os pesadelos de Speak no Evil (2022) que recebeu recentemente um remake que já está em cartaz nos cinemas brasileiros (curiosamente o original permanece sem distribuição por aqui). No filme, uma família sofre na mão dos anfitriões que os recebem para passar um final de semana prolongado. A certa altura, o pai da família visitante pergunta o motivo de fazerem tudo aquilo e o anfitrião responde: "Porque vocês permitiram". Esta ideia da permissão em nome dos modos polidos e boas maneiras também está presente neste filme anterior do diretor: Uma Mulher Terrível (também conhecido como Uma Mulher Horrível em algumas plataformas). A grande diferença é que ao invés do filme se render ao horror, ele conta a história de amor (?) entre Rasmus (Anders Juul) e Maria (Amanda Collin) com um minucioso senso de crueldade que flerta o tempo inteiro com um humor desconcertante. Rasmus é um rapaz que está sempre cercado pelo seu grupo de amigos e em uma das festas promovidas por eles, ele conhece a amiga da namorada de um deles, Maria. O encantamento entre os dois é quase imediato e os dois começam a namorar pouco depois. Não demora muito para que Maria vá morar com Rasmus e o rapaz percebe a necessidade de deixa-la a vontade no apartamento dele, que passa a ser dos dois. No intuito de construir uma vida em comum e minimizar conflitos, ele está sempre disposto a entender e acatar os pedidos da namorada, ele até aceita vender a sua preciosa coleção de CDs para que os livros tomem conta da estante e que o pôster de seu filme favorito saia da parede para dar espaço à uma obra abstrata. Não há nada demais em você ceder espaço para o outro, o problema é quando o outro quer o espaço todo para ele e não sobra nada para você. Sempre na tentativa de agradar Maria, Rasmus se torna uma espécie de refém que considera bastante natural ter que sempre ceder em nome do amor. Mas isso seria amor mesmo? Uma Mulher Terrível pergunta isso ao espectador o tempo inteiro enquanto aguardamos o momento em que Rasmus irá traçar algum limite naquela relação. Se depois de tantos acontecimentos você ainda achar que a postura de Maria não é nada grave, existe aquele momento no museu em que ela destrói qualquer fagulha de simpatia que sua personagem possa despertar no espectador. Lembro de poucas vezes ter visto uma personagem dizer coisas tão cruéis ao seu parceiro com tanta desenvoltura, como se fosse uma metralhadora de ofensas. O pior é o que vem depois. A plateia se pergunta: como alguém pode se sujeitar a um relacionamento assim? Ontem estava indo para o trabalho e tocou Como Eu Quero do Kid Abelha no carro, lembrei automaticamente do filme e como as pessoas escutaram esta música por décadas sem se dar conta que o refrão "eu quero você como eu quero" não usava uma repetição para dar ênfase ao bem querer, mas para dizer que "eu quero você não do jeito que você é, mas do jeito que eu quero que você seja". Ao longo do filme Rasmus deixa de ser ele e nitidamente desaparece em nome do que ele imagina que seja amor. Talvez alguém diga que Maria é uma narcisista, pode ser, mas eu digo que ele tem, no mínimo, Síndrome de Estocolmo. Tafdrup faz aqui um filme interessante que permanece em nossa mente por vários dias e já demonstra sua preocupação com a passividade de seus personagens diante do que não deveriam aceitar.

Uma Mulher Terrível (En frygtelig kvinde / Dinamarca - 2017) de Christian Tafdrup com Anders Juul, Amanda Collin, Rasmus Hammerich, Nicolai Jandorf, Vibeke Hastrup e Christian Tafdrup. 

CATÁLOGO: O Livro da Vida

PJ e Donovan: de volta ao mundo.

Na virada do ano de 1999 para o ano 2000 o canal francês Art convidou dez diretores de nacionalidades diferentes para criar uma série de filmes chamada "2000 seen by" em que cineastas deveriam retratar a atmosfera do fim do milênio e início. Entre os longas produzidos está o ótimo O Primeiro Dia do brasileiro Walter Salles, O Muro do belga Alain Berliner, A Última Noite do canadense Don McKellar e este O Livro da Vida do novaiorquino Hal Hartley. Pode se dizer que Hartley era o nome mais cult do cinema independente americano no início dos anos 1990, embora muita gente torcesse o nariz para a pretensão filosófica de tramas como Amateur (1994) e Flerte (1995), o rapaz estava entre o mais badalado de sua geração. Em O Livro da Vida ele manteve a pretensão intacta ao trazer Jesus Cristo (Martin Donovan, ator favorito do cineasta) para a Nova York do ano de 1999 ao lado de sua assistente, Madalena  (a cantora PJ Harvey) para anunciar o apocalipse. No entanto, ele se depara novamente com seus sentimentos de esperança perante a humanidade. Quem também circula pela cidade e está sempre por perto é Lúcifer (Thomas Jay Ryan), que aguarda ansiosamente o fim dos tempos para recolher os pecadores que considera estar na sua cota de direito. Enquanto os esses personagens famosos circulam entre os mortais, os noticiários assumem o tom alarmista de que o fim está cada vez mais próximo na virada do ano. Como os demais filmes da coleção, O Livro da Vida é curto (tem uma hora de duração), mas mesmo assim, deixa a impressão que não possui história para tanto. Mesmo que o diretor invista num tom de reflexão que era bem comum no período, ele parece não saber muito bem o que fazer com a premissa interessante que tem em mãos. Existe até boas ideias, como tratar todos como homens de negócios (em que o negócio em questão é o futuro da humanidade), mas entre cenas desfocadas e interpretações contidas, tudo parece um tanto emperrado. Confesso que minha maior curiosidade era ver PJ Harvey em sua primeira (e unica até o momento) experiência como atriz. Pode se dizer  que ela confere charme ao papel que lhe coube e isso traz até um diferencial para a produção que soa um tanto fria  diante das possibilidades fantásticas que tinha em mãos. Confesso que fiquei um tanto decepcionado com o filme (principalmente se comparado a outros lançados na mesma cinessérie), mas vale pela curiosidade de revisitar os pensamentos que habitavam o mundo com a proximidade do século XXI. No entanto, vale ressaltar, que se você se deparar com algum do filmes da coleção, vale a pena conferir, já que se tornaram artigos raros nos streamings por aqui. 

O Livro da Vida (The Book of Life/ EUA - 1999) de Hal Hartley com Martin Donovan, PJ Harvey, Thomas Jay Ryan, Miho Nikaido, Dave Simonds, DJ Mendel e James Urbaniak.  

KLÁSSIQO: Uma Mulher Sob Influência

Gena: tentando não surtar.

Mês passado nos despedimos de Gena Rowlands, uma das grandes atrizes do cinema, ao longo da carreira, Gena se consolidou como a grande musa dos filmes indies na segunda metade do século XX, principalmente por conta de sua parceria de longa data com o esposo, John Cassavetes. Os dois tinham uma química incrível dentro e fora das telas e fizeram história com uma parceria que rendeu vários filmes e prêmios para ambos. Um dos frutos mais celebrados dessa parceria é o clássico Uma Mulher Sob Influência que rendeu à ela sua primeira indicação ao Oscar de melhor atriz (a segunda veio com Gloria/1984, também dirigido por Cassavetes). A trama gira em torno de Mabel Longhetti (Gena Rowlands) que vive com o marido, Nick (Peter Falk) e os três filhos pequenos em uma casa confortável numa vida aparentemente tranquila em uma casa no subúrbio. Se à primeira vista aquela vida parece perfeita, Cassavetes resolve virar tudo do avesso ao revelar os bastidores daquela família. Aos poucos percebemos que Mabel não é uma mulher convencional. Dona de uma energia irrepreensível, ela é muito amorosa com os filhos, recebe às visitas com plena simpatia, mas por vezes ela ultrapassa o limite do que se considera convencional com posturas e comentários que nem sempre são bem vistos. Tudo indica que Mabel esteja com a saúde mental comprometida, mas nada que pareça incontornável. No entanto, a coisa se agrava sempre que o esposo está por perto e a tensa dinâmica entre os dois deixa a crise no casamento cada vez mais evidente. Já li várias resenhas sobre o filme, mas o mais interessante é que nenhuma delas me advertiu que o maior problema de Mabel parece ser o esposo. É visível que Mabel precisa de acompanhamento e de cuidados, mas a postura de seu marido é totalmente inadequada. Agressivo, grosseiro e ameaçador, a interpretação de Peter Falk me deixava preocupado sempre que ele aparecia em cena, ao ponto de questionarmos quem está mais à beira da loucura nessa história. Existe um contraste impressionante nos trabalhos de Falk e Rowlands, longe dele, as atitudes de Mabel possuem até uma leveza e desperta até a compreensão pelo desafio daquela mulher se manter na rotina de dona de casa, mas sempre que Nick está em cena, a tensão se eleva até às raias da explosão completa. É visível que ele só queria sossego quando chega do trabalho, mas a pressão exercida para que Mabel sufoque tudo o que está sentindo é bastante violenta. O trabalho de Gena Rowlands se torna o grande destaque por conta do misto de força, estranheza e vulnerabilidade que imprime à personagem, o que torna fácil para o espectador compreender as dores daquela mulher, especialmente naquele último ato em que ela retorna para a casa e toda a expectativa e cobrança que existe sobre ela se torna palpável em uma cena de partir o coração. Então vem aquele confronto final com as crianças tentando evitar o pior perante as ameaças do pai. A impressão é que vemos uma família se desintegrar diante da câmera - e o desespero impresso por Cassavetes (indicado ao Oscar de melhor direção pelo trabalho) só intensifica isso. Realista em seu tom cada vez mais áspero, Uma Mulher Sob Influência se tornou um clássico do cinema independente e colocou a performance de Gena entre uma das maiores da história do cinema. É de sufocante aquela última cena em que a câmera se afasta entre as cortinas como se anunciasse a perpetuação de um ciclo disfarçado na  resolução de um final aparentemente feliz.

Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence/EUA -1974) de John Cassavetes com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, George Dunn e Matthew Labyorteaux. ☻☻☻

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Ciclo Verde e Amarelo: Terra Estrangeira

Fernandinha e Fernando: perdidos em uma terra em branco e preto. 

Durante este Ciclo Verde e Amarelo ouvi tanta gente falando sobre Ainda Estou Aqui (2024), a nova parceria de Fernanda Torres e Walter Salles que foi inevitável lembrar dos outros longas que fizeram juntos. Antes do longa que estreou no Festival de Veneza e saiu de lá com o roteiro premiado, os dois já se encontraram para realizar O Primeiro Dia (1999) e este Terra Estrangeira (1996), o filme que se tornou uma guinada na carreira de Walter Salles. Salles começou a carreira como diretor de projetos para a televisão e estreou em longa-metragem com o criticado A Grande Arte (1991), adaptação da obra de Rubem Fonseca que foi acusada de se render à uma estética hollywoodiana com seu elenco internacional (tinha o novaiorquino Peter Coyote numa adaptação gringa do detetive Mandrake e o turco Tchéky Karyo como o misterioso Hermes). Ainda que muitos observassem ali um adeus para a estética do cinema novo e um aceno para um maior cuidado visual, o filme foi um fracasso. É interessante perceber que tempos depois, a câmera do diretor se volta para brasileiros à deriva em uma terra que não os pertence. A trama é ambientada durante o governo Collor, mais precisamente naquele momento fatídico em que o primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos no Brasil resolveu confiscar a poupança da população que vivia com uma inflação de 84% ao mês. Havia um certo tom de desespero naquela medida e o filme deixa isso perceptível com os fatos que acontecem na vida do jovem Paco (Fernando Alves Pinto), que por anos ouviu a mãe (Laura Cardoso) sonhando rever a terra de sua família na Espanha. Paralelo a isso, conhecemos Alex (Fernanda Torres), brasileira que trabalha como garçonete em Portugal e vive com Miguel (Alexandre Borges), um músico envolvido com contrabando. Eis que um dia, o desamparado Paco conhece o misterioso Igor (Luís Mello), que banca a viagem do rapaz à Europa, mas, para isso, ele precisa entregar um pacote para Miguel em Portugal e... nada sai como o esperado. Há novamente aqui muito de inspiração no film noir, assim como no longa anterior de Walter, mas desta vez, ele utiliza este deslocamento geográfico que recai sobre os personagens para falar um tanto sobre um deslocamento da própria identidade. Existem diálogos ótimos como aquele em que Paco escuta que Portugal não é Terra de se achar ninguém, mas uma terra para perder alguém, até a si mesmo. É sobre isso. Embora eu considere o romance de Alex e Paco um tanto forçado (podem dizer que ocorre pela identificação de ter alguém da mesma origem por perto, mas não acho convincente a forma apressada como tudo acontece), Terra Estrangeira sempre fala de algo mais do que contrabando e perseguições. É sobre a venda de um passaporte que te impossibilita de voltar para casa porque você não tem mais dinheiro para viver em uma terra que lhe parecia promissora. É sobre procurar as origens de sua família em uma terra distante porque a sua já parece não ter importância. É sobre procurar algo que dê sentido ao que se é. Tudo isso se torna pretexto para Walter demonstrar todo seu talento na condução dos atores e construção de imagens como aquela do barco encalhado deteriorando no litoral (que serviu de inspiração para toda história do filme) ou daquela estrada sem fim ao som de Vapor Barato que nunca cortou tanto o coração, seja na voz de Gal Costa ou de Fernandinha. Considerando um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, o filme fincou uma produtiva parceria entre Walter e a codiretora Daniela Tomas, que já era reconhecida pelo seu trabalho no teatro. O filme também marca a parceria de Salles com o roteirista Marco Bernstein, que anos depois escreveu Central do Brasil (1998) ao lado do (hoje novelista) João Emanuel Carneiro. Central do Brasil de Walter Salles foi o último filme brasileiro a concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro e Walter Salles pode levar o Brasil mais uma vez para a disputa. Oremos. 

Terra Estrangeira (Brasil - Portugal / 1996) de Walter Salles e Daniela Tomas com Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Laura Cardoso, Alexandre Borges, Luís Melo, Tchéky Karyo e João Lagarto. ☻☻☻ 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

CICLO VERDE E AMAELO: Morto Não Fala

Daniel e seus fantasmas: falando com gente morta.
 
Stênio (Daniel de Oliveira) é o plantonista noturno de um necrotério. Nas primeiras cenas vemos que ele conversa com os sujeitos que chegam mortos para que possa executar seu trabalho, de início achamos até engraçado ao cogitar que tudo não passa de algo que ele faz para passar o tempo e aliviar a atmosfera pesada do lugar, mas depois que ele liga para a esposa de um falecido após receber o número de telefone pelo próprio, percebemos que aquilo não é fruto da imaginação do rapaz. Chega a dar um arrepio esta primeira guinada que o filme, mas ela é só uma amostra tranquila de tudo que acontecerá na vida de Stênio. Morto Não Fala é o tipo de filme que quanto menos você souber, melhor. Eu mesmo me esquivei de toda informação que pudesse ter sobre ele, o que foi muito difícil já que todo mundo que o assistiu o aprecia demais, até mesmo pessoas que não curtem histórias de terror. O terror ainda é um gênero pouco respeitado no cinema brasileiro, mas o que o cineasta Dennison Ramalho faz aqui é de se aplaudir. A começar pela forma com que ele vira a vida de Stênio de cabeça para baixo pelo uso indevido de seu dom. A motivação para este deslize é alavancar uma trama de vingança, que gera um efeito colateral irremediável em sua realidade. Stênio não esperava que aquela vingança cairia sobre ele e sua família feito uma maldição, colocando em risco quem quer que esteja perto dele. É um verdadeiro festival de surpresas em uma espiral de problemas que não fazemos ideia de onde irá parar. Há de se elogiar também mais uma atuação memorável de Daniel de Oliveira, que sabe desenvolver cada degrau que seu personagem rumo à desgraça, assim como o trabalho de Fabíula Nascimento para tornar sua personagem em uma megera assustadora. Com narrativa dinâmica, ambientações sujas e um uso curioso de efeitos visuais e sonoros, Morto Não Fala se torna uma verdadeira descida ao inferno que se tornou a mente de seu protagonista. O longa segue firme rumo à uma das últimas cenas mais assustadoras do cinema brasileiro. Aquele momento em que Stênio anda pela rua, com os mortos caminhando calmamente atrás dele é de arrepiar. Num delírio interpretativo, é como se o menininho de O Sexto Sentido (1999) crescesse, fosse trabalhar em um necrotério e fizesse tudo errado com sua vida. Morto não Fala é uma grata surpresa do nosso cinema e uma pérola do gênero que tem tudo para se tornar um verdadeiro cult. 
     
Morto Não Fala (Brasil - 2018) de  Dennison Ramalho com Daniel de Oliveira, Fabíula Nascimento, Marco Ricca, Bianca Comparato e Annalara Prates. ☻☻☻

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ciclo Verde e Amarelo: Tia Virgínia

 
Holtz: a ovelha solteira da família.

Virgínia (Vera Holtz) é a irmã do meio de uma família de três irmãs. Foi a única que não casou e não teve filhos, seguindo a vida da forma que considerasse melhor. No entanto, nos últimos tempos, devido ao quadro de saúde da mãe (Vera Valdez), ela se tornou responsável por cuidar da matriarca e da casa, afinal, as irmãs já pareciam estar muito ocupadas cuidando de seus maridos, filhos e netos. Embora a vida de Virgínia tenha uma rotina sob controle, a chegada das festas de fim de ano com as manas chegando para visitar, já cria-se uma tensão por si só. Depois piora. Valquíria (Louise Cardoso) é a primeira que chega acompanhada pelo filho (Iuri Saraiva), que está cada vez mais parecido com o avô. Depois chega a irmã mais velha, Vanda (Arlete Salles), ao lado do esposo (Antonio Pitanga) e da filha (Daniela Fontan). Obviamente que a rotina de Virgínia muda completamente naqueles dias, mas o maior desconforto da personagem fica por conta dos comentários das irmãs sempre em tom de alfinetadas. Existe sempre um subtexto em Tia Virgínia, um que fermenta conforme uma conversa avança, uma crítica é realizada resultando num processo de combustão pela química entre as três personagens. Se Valquíria tem uma certa arrogância que lhe permite a capacidade de considerar que está sempre com razão, à Vanda cabe o posto de se desculpar pela ausência constante. Para ambas, o papel que coube à Virgínia foi o de cuidadora da mãe e da casa, nada mais do que isso. É possível que já tenhamos visto várias reuniões familiares (na tela ou fora dela) semelhantes a que temos aqui, mas a proposta do diretor e roteirista Fábio Meira é avançar a tensão até que sua personagem principal chegue ao limite. Colabora muito para que a coisa funcione o tom impresso ao filme, que sabiamente foge da histeria e opta por um humor sutil e uma dramaticidade contida que oferece ainda mais complexidade às personagens (o que não impede que o filme reserve momentos bastante duros em cena). Premiada no Festival de Gramado e com o Troféu Grande Otelo de melhor atriz, Vera Holtz está espetacular em cena, deixando transparecer o tempo inteiro a insatisfação perante a forma como as irmãs a enxergam - de forma que quando Virgínia verbaliza o que sente, já sabíamos exatamente o motivo de todo seu desconforto. Arlete Salles e Louise Cardoso também estão ótimas em cena e defendem suas personagens com um senso de ironia que torna tudo ainda mais interessante. Antonio Pitanga tem um papel pequeno, mas algumas cenas marcantes, como aquela do jantar em que praticamente pedimos para ele apresentar aquela reação perante a postura  de Virgínia. Ou seja, que coisa boa ver um elenco tão experiente reunido em uma mesma cena! O desfecho, embora libertador, também carrega um tanto de melancolia e um certo questionamento que poderia ser respondido se no ano seguinte fôssemos convidados novamente a participar da ceia ao lado daquela família. A ocasião serviria para que a trama amarrasse algumas situações que ficam um tanto soltas (como a postura instável do sobrinho), um deslize que já está perdoado, já que a vida teima em seguir pelo mesmo caminho. 

Tia Virgínia (Brasil - 2023) de Fábio Meira com Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso, Antônio Pitanga,  Vera Valdez, Amanda Lyra, Iuri Saraiva e Daniela Fontan. ☻☻

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Ciclo Verde e Amarelo: Bem-Vinda Violeta

Débora: terapia ao contrário.

Ana (Débora Falabella) é uma escritora que resolve participar de um famoso laboratório literário na Cordilheira dos Andes. Chegando por lá, a ambientação rústica é frequentada por um grupo de escritores que pretendem escrever com mais vigor e complexidade, para isso, buscam as orientações de Holden (Darío Grandinetti), um autor que se tornou cult por conta de seu livro A Cordilheira, mas que se tornou recluso e agora ganha fama compartilhando de seu método com seus aprendizes. Conforme avança no processo, Ana fica confusa sobre o que está acontecendo, especialmente quando percebe que para desenvolver seu livro plenamente, ela precisa se render cada vez mais à personalidade de sua personagem, a agressiva Violeta - que considera ser o seu total oposto. Mas será que é mesmo? Parte da proposta de Holden é fazer com que a insegura Ana perceba o quando criador e criatura são semelhantes. Assim como o processo é vivido pela escritora, ele também é vivenciado pelos demais presentes e os efeitos desta jornada (uma espécie de fusão entre vida e arte) podem ser tão libertadores quanto perigosos. Em determinado momento de Bem-Vinda, Violeta! tive a estranha sensação de que eu nunca havia assistido um filme como ele. É verdade que existe ao longo da narrativa uma série de elementos que já vimos utilizados em outras produções, mas a forma como são encaixados e apresentados em cena, criam a sensação de que estamos diante de uma obra bastante original, o que não significa que seja um filme fácil de digerir. A atmosfera de suspense psicológico calcado no árduo processo criativo da escrita oferece ao filme uma complexidade que é muito bem representada pela ambientação claustrofóbica. Enquanto lá fora as belas naturais sejam arrebatadoras (o longa foi filmado em Ushuaia na Patagônia argentina), dentro daquela casa tudo parece sombrio e pesaroso. Estes fatores me deixaram surpreso ao lembrar que o diretor Fernando Fraiha é o mesmo do divertido La Vingança (2016), que curiosamente, também restabelece os laços do nosso cinemas com o país vizinho, embora os dois filmes não pudessem ser mais diferentes. Há de se destacar que Fraiha filma muito bem, preocupado com os closes em seus personagens, os planos e movimentos de câmera amparados por uma edição precisa, o que confere ao filme uma identidade visual marcante ao lado da fotografia gélida. Com relação ao elenco, Débora Falabella está excelente na pele da protagonista, optando por um trabalho contido que tem as mudanças da personagem transmitidas pelo olhar intenso em cena, ela contrasta muito bem com o argentino Darío Grandinetti que constrói um mestre tão imponente quanto assustador, dando a impressão que todo o processo vivenciado por seus alunos trata-se de uma seita literária que funciona feito uma terapia ao contrário (em que ao invés de melhorarem a forma como lidam com suas emoções, o efeito é o oposto). Meu único problema com Bem-Vinda, Violeta! (que é inspirado no romance Cordilheira do paulista Daniel Galera) foi o final que se revela exatamente como eu imaginei. Diante do método criativo imprevisível que vimos até ali, um final que já era esperado deixou um sabor de insatisfação ao final da sessão. No entanto, até o desfecho o filme consegue ser bastante interessante pela dinâmica entre os personagens, seja com os outros ou com eles mesmos. 

Bem-Vinda, Violeta (Brasil/Argentina - 2022) de Fernando Fraiha com Débora Falabella, Darío Grandinetti, Germán de Silva, María Ucedo, Pablo Sigal, Germano Melo e Jenny Moule. ☻☻☻

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

4EVER: James Earl Jones

 
17 de janeiro de 193109 de setembro de 2024

Nascido em Arkabutla, no Mississipi, James Earl Jones é filho de um boxeador, ator e motorista e uma professora. Com a situação familiar um tanto atribulada, o menino precisou morar com os avós por algum tempo e desenvolveu uma gagueira que se resolveu somente no Ensino Médio. Na juventude chegou a cursar a faculdade de Medicina, mas percebeu que seus interesses eram outros, foi estudar na Escola de Música Teatro e Dança da Universidade de Michigan, mas antes de seguir a carreira artística, serviu na Guerra da Coreia e foi promovido à primeiro tenente. Somente nos anos 1960 começou a carreira de ator, obtendo um prestígio crescente nos palcos. Seu primeiro papel no cinema veio em 1967 com Dr. Fantástico (1964) de Stanley Kubrick. James foi indicado ao Oscar de melhor ator pelo boxeador de A Grande Esperança Branca (1970) e fez papéis marcantes em sucessos como Conan (1982), Um Príncipe em Nova York (1988) e Jogos de Guerra (1992), mas a interpretação que o deixou famoso foi a icônica voz do vilão Darth Vader em Star Wars  a partir de 1977. Jones também emprestou sua voz marcante para Mufasa na animação O Rei Leão (1994). Pelo conjunto da obra, o ator recebeu um Oscar honorário em 2012, que junto aos dois prêmios Tonny, um Grammy e um Emmy, o colocou na seleta lista de ganhadores dos principais prêmios do entretenimento dos Estados Unidos, o EGOT. A causa da morte não foi divulgada. 

Ciclo Verde e Amarelo: Levante

Ayomi: filme com causa.

Sofia (Ayomi Domenica) é uma jovem jogadora de volley que se dedica ao esporte por conta de um projeto social de sucesso que começa a chamar atenção da mídia. Ela está prestes a ser contratada por um grande time quando descobre que está grávida. Diante da situação não planejada, ela começa a pensar em resolver a situação em um país onde a interrupção da gravidez é ilegal. Quando ouvi falar de Levante pela primeira vez ele havia sido escolhido para ser exibido em uma mostra paralela do Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio Fripesci dado pela Federação Internacional de Críticos que participam do Festival. Some o prêmio ao filme ter como pano de fundo um esporte que não aparece muito nas telonas  e a ideia de um tema polêmico no Brasil (o aborto)... minhas expectativas foram nas alturas. Por conta da decisão da protagonista, o filme segue seus caminhos para alcançar seu objetivo. Ela tenta realizar o procedimento em outro país, as amigas se organizam para conseguir o dinheiro que ela precisa, ela pondera os riscos de uma clínica clandestina e, por fora de tudo isso, começa a se formar uma polêmica em torno do desejo da personagem de realizar um aborto. Assim, o filme agrega toda a insatisfação com o discurso conservador que emergiu no Brasil nos últimos anos, chegando até um desfecho irônico e esperto que compensa aqueles momentos em que o filme demonstra dificuldade em aprofundar seus personagens. Levante é um filme que gira em torno de uma ideia e espera que todo o resto faça sentido por conta disso, não é bem assim. Entendo que a diretora Lilla Hallah se esquive de qualquer traço de melodrama em sua narrativa, que foge dos lugares comuns (o roteiro não se preocupa com quem é o pai da criança) e que pretende construir em torno da protagonista um universo em que todo mundo compreende plenamente suas intenções, deixando que a oposição fique por conta de "pessoas de fora" do seu ciclo social, estes assumindo o  posto de vilão da história. O efeito disso é um tanto maniqueísta na tela. O pai (Rômulo Braga), as amigas, a treinadora (a ótima Grace Passô em um papel miudinho), todos estão dispostos a apoiar a personagem como se ela pertencesse a um universo paralelo em que todas as pessoas mais próximas fossem super esclarecidas sobre a questão do aborto no Brasil. Essa artificialidade nas relações permanece quando o filme prefere gastar seu tempo mais com festinhas com a estética periférica que o cinema brasileiro adora repetir e a pegação da protagonista com uma colega de time, opções que por vezes deixam o filme emperrado. O pior é que a parte do esporte deixa muito a desejar, não convencendo nem um pouco nas cenas de quadra e mais ainda que Sofia é uma atleta promissora. São alguns deslizes que começam a pesar conforme o filme se estende. A sorte é que Levante tem um final que realmente impressiona e deixa a sensação que é um filme melhor elaborado do que se mostrou até ali.

Levante (Brasil - 2024) de Lillah Halla com  Ayomi Domenica, Rômulo Braga, Grace Passô, Suzy Lopes e Glaucia Vandeveld.

domingo, 8 de setembro de 2024

Pódio: Marcélia Cartaxo

Bronze: a amiga fiel.


3º Madame Satã (2002) Desde a primeira vez em que assisti este jovem clássico do cinema nacional, tive a impressão que qualquer outra atriz teria deixado Laurita menos interessante. Na pele da amiga e companheira do lendário malandro da Lapa, Marcélia está luminosa e, mesmo que tenha pouco tempo de tela, sua presença é marcante e mantêm o interesse da plateia por sua personagem do início ao fim. Ela é a principal figura feminina de um grupo de pessoas que se configura enquanto uma família incomum na periferia do Rio de Janeiro. Pelos trabalhos marcantes, ela e Lázaro Ramos foram premiados no Grande Prêmio Cinema Brasileiro. 

Prata: a bailarina aposentada
2º Pacarrete (2020) na pele da professora de dança aposentada que sonha em se apresentar no aniversário da cidade onde vive, Marcélia Cartaxo apresenta um trabalho bastante diferente das personagens introspectivas que viveu desde o início de sua carreira nos cinemas. Usando um tom de voz mais elevado, o maior desafio da atriz foi ficar convincente como uma bailarina experiente (as dores nos pés que o diga). Pelas transições constantes da personagem, a atriz recebeu mais um prêmio no GP do Cinema Brasileiro, agora devidamente rebatizado de Troféu Grande Otelo. 
 
Ouro: a ingênua perdida.
1º A Hora da Estrela (1985) Nascida em Cajazeiras em 1962, a paraibana se tornou a primeira atriz brasileira a ganhar o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim pelo seu trabalho como a antológica personagem da obra de Clarice Lispector. Marcélia tinha dezoito anos quando foi descoberta pela diretora Suzana Amaral em uma peça de teatro. A forma como a atriz desaparece no papel se tornou um marco no cinema brasileiro e uma verdadeira referência na carreira da atriz.  Diante das histórias que conta sobre as vezes em que ensaiava escondida da família e pegava dinheiro emprestado com o santo padroeiro da cidade já dão mostras de que vale fazer um filme sobre a própria Marcélia.