Cinco filmes assistidos em setembro que merecem destaque:
segunda-feira, 30 de setembro de 2024
domingo, 29 de setembro de 2024
4EVER: Kris Kristofferson
22 de junho de 1936 ✰ 28 de setembro de 2024 |
PL►Y: Imaculada
Sweeney: entre a fé e o corpo. |
Lançado no primeiro semestre com algum destaque entre os filmes de terror do ano, Imaculada também foi envolto de polêmicas. Obviamente que qualquer longa metragem que tenha alguma menção religiosa que não seja edificante gera comentários raivosos, motivo pelo qual algumas pessoas criticaram bastante o filme. No entanto, em suas entrelinhas existem algumas questões importantes que merecem ser debatidas e estas estão além da sanguinolência, sustos e jump scares que a maioria dos fãs do gênero se acostumaram. Imaculada pretende ter mais do que isso. É verdade que em alguns momento o filme se acovarda de ser mais incisivo em suas questões, pelo menos essa é a impressão até chegar ao seu final bombástico. O filme conta a história da jovem Cecilia (Sydney Sweeney), que decide ser freira e parte para um convento na Itália. Vítima de um trauma na infância, a moça sempre considerou que permaneceu viva por algum propósito maior. Convidada para o convento distante, ela está certa de que seu destino é se dedicar à fé junto com as irmãs. Claro que aos poucos o filme irá se render à cartilha daquele ambiente em um filme de terror. Corredores escuros. Barulhos. Salas secretas e a suspeita de que existe algo macabro por debaixo de todo o discurso de fé pregado ali. Acho que não é um SPOILER dizer que do nada, Cecilia aparece grávida e jura que não manteve relações com um homem, antes ou depois de chegar lá. Alguns exames depois e não resta dúvida: estão diante de um milagre. Acontece que Cecilia tem fé, mas sabe que existe algo estranho naquela situação. Na segunda parte o enredo envereda por alguns absurdos, mas qual filme de terror que não o faz (o gênero parece ter uma licença para usar qualquer tipo de argumento para que o se vê na tela)? O clima pesa conforme se pensa sobre a autoridade que Cecilia tem sobre seu próprio corpo e o que algumas pessoas são capazes de fazer em nome da fé. São dois pontos de discussão bastante atuais que convergem aqui com uma certa fúria, de um lado e de outro. Acontece que o filme precisa de um desfecho e o filme opta pela opção mais radical. Acho que vale dizer que o filme escorrega aqui e ali, mas tem uma boa ambientação e bons trabalhos do elenco, sobretudo de Sweeney e de Álvaro Morte (sempre estranho este sobrenome, mas cai feito uma luva para um filme assim), o ator, mais conhecido como o professor de La Casa de Papel, tem outro bom trabalho por aqui. Quando os dois estão em cena eu até esqueço como o filme fica muito perto de cair no ridículo.
Imaculada (Immaculate / EUA - Itália / 2024) de Michael Mohan com Sydney Sweeney, Álvaro Morte, Benedetta Porcarolli, Simona Tabasco e Dora Romano. ☻☻☻
PL►Y: As Três Filhas
Olsen, Carrie e Natasha: ressentimentos em luto. |
A saúde de Vincent (Jay O. Sanders) sofreu um golpe severo e agora ele fica deitado em seu quarto ligado aos aparelhos, de lá, ele deve ficar um tanto decepcionado com as discussões de suas três filhas perante o infortúnio. Se antes ele tinha apenas a companhia de Rachel (Natasha Lyonne), agora suas outras meninas, Katie (Carrie Coon) e Christina (Elizabeth Olsen) também vieram para ajudar. Ou pelo menos deveria ser assim, a convivência das três após tanto tempo tem o efeito incômodo de que somente os ressentimentos guardados pela vida é capaz de proporcionar. Eu sei, você já deve ter se deparado com dezenas de filmes que partem de uma premissa parecida (o recente Tia Virgínia/2023 com vera Holtz bebe na mesma fonte), mas a diferença está na forma como o cineasta Azazel Jacobs resolve contar os conflitos presentes neste reencontro. Como tanto, ele o faz bebendo diretamente nos estereótipos para apresentar aquelas três mulheres para depois desconstruí-las aos olhos do espectador. Isso é material de sobra para o trio de atrizes que abraçaram o projeto. Se pelos olhos das irmãs, Rachel nos é apresentada como a irresponsável do trio, aos poucos sua postura arredia ganha novas camadas, especialmente pelo trabalho de Natasha Lyonne (que ficou conhecida por seus trabalhos em outras produções da Netflix como Orange is The New Black e Boneca Russa), que aqui repete alguns de seus trejeitos habituais para depois revelar a profundidade de sua personagem (que tem rendido comentários de que está cotada para o Oscar de coadjuvante no próximo ano). Talvez ela seja a que tem a história mais destacada pelo roteiro, afinal a trama avança conforme conhecemos um pouco dos detalhes da inserção de Rachel naquela família. A rigidez apresentada por Katie desde a primeira cena, deixa o trabalho de Carrie Coon um tanto amarrado pela amargura da personagem, tendo seu conflito com a filha ao telefone sendo praticamente esquecido a partir de certo ponto. O mais curioso é que sua preocupação como o pai se mistura com um certo desejo de que ele parta de uma vez para que ela tenha que ir embora dali - mesmo que seja para viver uma vida que, talvez ela mesmo não se dê conta, não a agrada. Já Elizabeth Olsen consegue oferecer até um certo ar cômico para sua personagem, que é fã de Grateful Dead, tem um passado hippie e procura ser zen entre o casamento, a criação da filha pequena e as rixas entre as duas irmãs. Sua serenidade parece cada vez mais uma máscara, assim como a rigidez de Katie é uma ilusão de controle. Misturar as três sob o mesmo teto durante o processo de luto é uma experiência para percebermos como as nossas emoções no luto podem facilmente transbordar para a vida do outro, sem que seja notado como tudo isso torna o processo ainda mais doloroso e difícil. Digo isso por experiência própria, já que após dois meses acompanhando meu pai no hospital antes de sua morte, presenciei e vivenciei situações inimagináveis que o filme me fez recordar (e imaginei onde eu estava com a cabeça quando resolvi assistir este filme). Quando as lágrimas já eram inevitáveis e a cena de despedida se instaura, tive aquela sensação de que a catarse diante de uma tela é necessária para que possamos seguir em frente. As Três Filhas tem lá seus tropeços (principalmente pela estranha sensação que estamos diante do material para uma peça de teatro), mas funciona principalmente pelo trabalho de suas atrizes em uma ambientação claustrofóbica que só aumenta o peso da morte que se aproxima. Acho que passará em branco nas premiações, mas merece atenção entre o catálogo da Netflix.
As Três Filhas (His Three Daughters / EUA - 2024) de Azazel Jacobs com Carrie Coon, Natasha Lyonne, Elizabeth Olsen, Rudy Galvan, Jose Febus, Jovan Adepo e Jay O. Sanders. ☻☻☻
sábado, 28 de setembro de 2024
PL►Y: A Garota de Miller
Freeman e Jenna: talentos desperdiçados. |
sexta-feira, 27 de setembro de 2024
4EVER: Maggie Smith
28 de dezembro de 1934 ✰ 27 de setembro de 2024 |
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
NªTV: Feud - Capote vs The Swans
Naomi e Hollander: entre a amizade e a fofoca. |
Finalmente terminei de assistir a segunda temporada de Feud dedicada à pendenga Capote Vs The Swans. A demora para conferir os oito episódios se deve ao gostinho de decepção após uma longa espera desde que a série criada por Ryan Murphy se debruçou sobre a treta entre Joan Crawford e Betty Davis nos tempos de O Que Terá Acontecido à Baby Jane (1962). Particularmente eu amo a primeira temporada de Feud (2017) não apenas por retratar os bastidores de um dos meus filmes favoritos, mas também por inserir várias camadas ao explorar os conflitos entre as duas divas do cinema. No entanto, quando o texto se volta para as desventuras do cultuado escritor Truman Capote com suas amigas da alta sociedade de Nova York, a impressão é que falta assunto para dar conta de oito capítulos (talvez quatro seria o máximo que renderia). Baseado no best seller Capote's Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era de Laurence Leamer, a série vale principalmente pela curiosidade de ver um outro lado do escritor que ficou de fora de longas como Confidencial (2006) e Capote (2005), nos quais era vivido respectivamente por Toby Jones e, o oscarizado pelo papel, Phillip Seymour Hoffman. Como estes, Tom Hollander encarna o brilhantismo de Capote com trejeitos e voz afetada, mas revela uma queda indisfarçável pela fofoca e a maledicência. Ele tenta disfarçar tudo isso com uma postura de crítica à alta sociedade, mas sua postura é facilmente questionável a partir do momento em que colhe segredos perante as socialites de quem se aproxima e as revela sem seu texto sem pudores. Tudo gira em torno do processo criativo de Truman sobre seu livro nunca concluído (e publicado mesmo assim), o famigerado Súplicas Atendidas, que gerou escândalo quando teve uma amostra publicada em forma de artigo na revista La Côute Basque em 1965. Mesmo alterando os nomes, quem conhecia as festas da alta roda de NY e era atraído por colunas sociais sabia identificar quem eram as pessoas que o escritor retratava (e vendo quem estava perto dele, ficava mais fácil ainda). Estas mulheres influentes eram as chamadas Cisnes, com destaque para Babe Palley (vivida por Naomi Watts), a mais próxima de Capote e sua grande musa na criação do polêmico texto. Foi ela que o inseriu no grupo de amigas formado por CZ Guest (Chloe Sevigny), Slim Keith (Diane Lane) e Lee Radziwill (Calista Flockhart), a irmã de Jaqueline Kennedy. Para além do quarteto, a série ainda oferece destaque à amizade de Capote com Joanne Carson (Molly Ringwald) e as mágoas guardadas pela ex-amiga Anne Woodard (Demi Moore), que é alvo de fofocas sobre o assassinato do próprio marido. Embora tenha muitos personagens interessantes para dar conta e um elenco impressionante para ajudar (destaque ainda para Jessica Lange como a fantasmagórica mãe de Truman), o programa se perde nas várias voltas em torno de um mesmo ponto (o ressentimento das cisne e o ostracismo de Capote). Lá pela metade você já percebe que os episódios não sabem muito para onde ir com o casamento de Babe, com os amantes de Capote e um livro que nunca fica pronto. A sensação é tão estranha que o sétimo episódio parece ter a estrutura de uma season finale, para o oitavo episódio retroceder e repetir o que já vimos por quase uma hora. No fim das contas, Feud: Capote Vs The Swans vale pelas atuações, especialmente de Hollander e Naomi. Sobre a atriz é sempre bom ressaltar que ela merecia estar em mais projetos interessantes, mas faz um tempo que ela assumiu as marcas do tempo em seu rosto e hoje, aos 55 anos, Hollywood a deixou de lado. De certa forma é a naturalidade de suas feições que torna sua personificação de Babe tão interessante, atravessando décadas na vida da personagem, ela segue belíssima, elegante e interessante.
Feud - Capote Vs The Swans (EUA-2024) de Ryan Murphy com Tom Hollander, Naomi Watts, Diane Lane, Chloë Sevigny, Calista Flockhart, Treat Williams, Demi Moore, , Molly Ringwald, Russell Tovey e Joe Mantello. ☻☻
domingo, 22 de setembro de 2024
PL►Y: Eu vi o Brilho da TV
Justice e Brigette: a vida é (ou não?) uma série de TV. |
Owen (Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Payne) são amigos desde 1996, ano em que eram adolescentes e compartilhavam o interesse por uma série de TV, a Pink Opaque. Na verdade foi Maddy que deixou o menino interessado pelo programa, já que ele nunca havia assistido por conta do horário em que o pai estabeleceu como limite para ir para cama. Pink Opaque passava no canal Jovens Adultos e começava dez horas da noite no domingo, terminando dez e meia, horário em que o canal começava a passar as reprises em preto e branco. Foi Maddy que o fez perceber as nuances e camadas que a maioria das pessoas não percebiam no estranho programa de duas garotas que se conheceram em um acampamento e tinham aventuras em um mundo psíquico em que enfrentavam o monstro de cada dia e os interesses do Sr. Melancolia. Além do seriado, os dois amigos também tinham outras coisas em comum, a começar pela sensação de estarem sempre deslocados. Maddy já havia se dado conta de que gosta de meninas e da influência disso em sua vida e personalidade, mas Owen estava mais preocupado com a doença de sua mãe, a postura ausente de seu pai e como veria o novo episódio de Pink Opaque na próxima semana. Afinal, diante de tudo isso, em que ponto ele poderia ser ele mesmo? A amizade entre os dois irá passar por alguns percalços envoltos em mistérios e coincidências com o tal programa, o que irá deixar Owen sempre desconfiado de que algo estranho está acontecendo em sua vida. Em seu segundo trabalho na direção Jane Schoenbrun foge mais uma vez do óbvio para abordar as mudanças da vida de seus personagens adolescentes, se em We're All Going to the World's Fair (2021) ela usava um jogo de RPG online para abordar estas mudanças, aqui ela utiliza um programa de televisão para expor a identificação de seus protagonistas e suas escolhas. Pode se dizer que existe muitas referências aqui, tem um clima de Videodrome (1983) de David Cronenberg, uma vibe meio David Lynch em alguns momentos e até do clássico Poltergeist (1982), resultando num parente noventista underground de Stranger Things/2016 (e a nova temporada sai quando hein?). Schoenbrun costura tudo com uma certa nostalgia dos tempos em que esperávamos o episódio semanal de nossa série de televisão favorita e nossa frustração quando ela era cancelada após o clímax de uma temporada. Era como perder um amigo muito próximo. Esta parte da adolescência de Owen e Maddy está muito bem amparada em sua lentidão no filme, até mesmo quando pontua alguns mistérios para que a trama avance por outros caminhos a partir de determinado momento. No entanto, o filme se torna cada vez mais hermético e delirante a partir de certo ponto, deixando as ideias um tanto confusas, especialmente quando propõe uma mistura entre a realidade e o programa. Resta então ver Owen (um ótimo trabalho de Justice Smith, ator que conheci com meu sobrinho assistindo Detetive Pikachu/2019) envelhecendo ao longo de uma vida que ele não sabe muito bem como viver (e neste ponto, a metáfora com o sombrio último episódio de Pink Opaque ganha força com o destino da personagem Isabel). Eu Vi o Brilho da TV não tem medo de ser divisivo e demonstra isso com bastante criatividade, visual inclusive, se apropriando de elementos dos filmes de terror para provocar estranhamento e reflexões com suas metáforas e simbolismos. Talvez eu devesse assistir de novo para compreender melhor a experiência que ele me ofereceu, mas talvez eu tenha a mesma impressão de Owen ao revisitar seu programa favorito e ver que ele não era tão ameaçador quanto ele imaginava. Ame ou odeie, o filme é uma das obras mais instigantes (e estranhas) do ano.
Eu Vi o Brilho da TV (I Saw the TV Glow / EUA - Reino Unido / 2024) de Jane Schoenbrun com Justice Smith, Brigitte Lundy-Payne, Helena Howard, Ian Foreman, Lindsey Jordan, Danielle Deadwyler, Fred Durst, Conner O'Malley, Emma Porter e Albert Birney. ☻☻☻☻
PL►Y: Assassino por Acaso
Adria e Glen: brincando com os signos do film noir. |
Parece que Glenn Powell está realmente aplicado em se tornar o maior astro de Hollywood da atualidade, após décadas tentando um lugar ao sol no mundo do cinema, parece que ele finalmente encontrou seu rumo - ou seria o público que finalmente o encontrou. Ele se tornou o protagonista de um dos primeiros sucessos do ano com Assassino Por Acaso, longa dirigido por Richard Linklater (com quem já havia trabalhado em Jovens, Loucos e Mais Rebeldes/2026), produzido pela Netflix e que deixou os produtores tão animados que ganhou uma carreira bastante rentável nas salas de cinema. O filme conta a história de Gary (Powell) um professor de faculdade que leciona filosofia e sociologia e que começou a trabalhar com escutas policiais para ganhar um dinheiro extra. Um dia ele é escalado para substituir um agente que se passa por assassino profissional para prender possíveis mandantes de crimes. Gary descobre que é muito bom nesse tipo de trabalho e além de ser bastante convincente em sua primeira missão, ele busca se aperfeiçoar cada vez mais encarnando o tipo de persona que acredita que seria o matador sob medida para quem deseja contratar um. Logo ele se consagra como o melhor do ramo (e a brincadeira de viver vários tipos diferentes deixa claro o quanto Glen está se divertindo com o papel). Eis que um dia ele recebe o pedido de uma mulher (Adria Arjona) que sofre com um marido abusivo, mas ao invés de "aceitar o serviço" e prender a contratante, ele resolve convencê-la a desistir da ideia e procurar seguir outro rumo em sua vida. A esta altura eu me perguntava porque o filme recebeu tantos elogios por sua trama simpática, mas bastante simples. Bem... é neste ponto que a moça poderia só aceitar a dica e ele poderia continuar som seus serviços, mas os dois resolvem se encontrar, manter contato e a coisa começa a complicar. Não vale contar muito mais do que isso para não estragar algumas das reviravoltas mais bacanas que assisti em uma comédia recente, ao ponto de você até perdoar que o filme patina um bocado para se esquivar do tom sombrio das mortes que começam a aparecer no caminho. Richard Linklater oferece aqui uma direção esperta e sem firulas que mantêm o ritmo sempre de maneira eficiente, além disso sabe como conduzir o elenco de forma mais do que eficiente para fazer graça e tornar a história inacreditável em algo crível. Se Glen Powell tem aqui uma performance memorável, ele é seguido de perto por Adria Arjona que brinca com a figura de uma femme fatale clássica que é capaz de levar o mocinho por caminhos inesperados. Assassino Por Acaso parece uma brincadeira com os signos de um film noir e torna-se uma grata surpresa em tempos de tantas ideias recicladas e, o mais interessante, é baseado em uma história real - que não envolve romance ou mortes de verdade - mas que faz a cabeça de qualquer um ferver de ideias para um filme interessante.
Assassino por Acaso (Hitman - EUA / 2023) de Richard Linklater com Glen Powell, Adria Arjona, Austin Amelio, Retta, Evan Holtzman, Mike Markoff e Sanjay Rao. ☻☻☻☻
PL►Y: Instinto
Marwan e Carice: estranha atração. |
Nicoline (Carice Van Houten) é uma experiente psicóloga que começa a trabalhar em um presídio, entre seus pacientes está Idris (Marwan Kenzadri), que está prestes a receber a permissão para poder sair sem supervisão e, provavelmente, em breve, poder estar em liberdade condicional. Ele foi preso por ter cometido crimes sexuais e pelas consultas com Nicoline, ela percebe que não é uma boa ideia deixar o moço solto por aí. Este é um dos principais pontos do filme, o outro é a estranha atração mútua que começa a existir entre os dois. Em seu primeiro trabalho como diretora a atriz Halina Reijn faz um trabalho na medida para gerar polêmica e provocar discussões, isso acontece porque, propositalmente, ela deixa muitas pontas soltas, várias intenções subentendidas e carrega as entrelinhas com intenções que muitos realizadores evitariam. Há quem diga que o filme é bastante inconsequente na forma como aborda a relação da protagonista com seu paciente, há quem considere que tudo passa pelo território da fantasia que se torna perigosa quando se torna real e há quem ressalte que desde o início tudo é um plano arriscado para que Nicoline chegue aos seus objetivos. Seja como for, Instinto pode gerar várias interpretações e tanto seus méritos quanto suas fragilidades nascem das mesmas provocações. No entanto, se Idris pode sempre ser visto como um maníaco a procura de sua próxima vítima (e o jogo de poder com uma figura de autoridade não o deixa intimidado, pelo contrário, o deixa ainda mais excitado), Nicoline se torna a figura mais complexa da narrativa. Não apenas pela sua dificuldade de estabelecer relacionamentos, mas a forma complicada como vivencia o sexo e a suspeita constante de que já vivenciou situações de abuso em sua trajetória - esta perspectiva paira principalmente pelo seu estranho relacionamento com a mãe (que poderia render um filme somente para abordar isso). Se Idris é um enigma para Nicoline, para o espectador, é a psicóloga que levanta mais indagações, afinal, para Idris resta sempre a pergunta se ele está regenerado ou não, mas a resposta não demora muito a aparecer, já o que se passa na mente da protagonista é bem mais complicado de supor. Até o nome do filme gera dúvidas na mente do espectador, afinal, a que a palavra Instinto se refere? Seria à sexualidade de seus personagens? Ao instinto de sobrevivência? Ou seria ao instinto de defesa? Halina Reijn não gasta tempo exibindo explicações, mas enfileira possibilidades que permanecem na mente do espectador até o final da sessão. A proposta parece ter funcionado muito bem, já que o filme fez sucesso nas bilheterias de seu país e ganhou o prestigiado posto de disputar uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro em 2020 representando a Holanda. A indicação não veio, mas Halina engatou uma carreira interessante em Hollywood, realizou o irônico Morte! Morte! Morte! (2022) e recentemente rendeu o prêmio de melhor atriz em Veneza para Nicole Kidman pelo seu novo filme, Babygirl (2024), em que mais uma vez explora os meandros da sexualidade de sua protagonista.
Instinto (Instinct/) de Halina Reijn com Carice Van Houten, Marwan Kenzari, Pieter Embrechts, Robert De Hoog, Betty Schuurman e Kuno Bakker. ☻☻☻
PL►Y: Garra de Ferro
Harris, Zac, Stanley e Jeremy: a maldição dos Von Erich. |
quinta-feira, 19 de setembro de 2024
PL►Y: Uma Mulher Terrível
Amanda e Anders: como ser refém de uma relação. |
O dinamarquês Cristian Tafdrup ganhou fama mundial com os pesadelos de Speak no Evil (2022) que recebeu recentemente um remake que já está em cartaz nos cinemas brasileiros (curiosamente o original permanece sem distribuição por aqui). No filme, uma família sofre na mão dos anfitriões que os recebem para passar um final de semana prolongado. A certa altura, o pai da família visitante pergunta o motivo de fazerem tudo aquilo e o anfitrião responde: "Porque vocês permitiram". Esta ideia da permissão em nome dos modos polidos e boas maneiras também está presente neste filme anterior do diretor: Uma Mulher Terrível (também conhecido como Uma Mulher Horrível em algumas plataformas). A grande diferença é que ao invés do filme se render ao horror, ele conta a história de amor (?) entre Rasmus (Anders Juul) e Maria (Amanda Collin) com um minucioso senso de crueldade que flerta o tempo inteiro com um humor desconcertante. Rasmus é um rapaz que está sempre cercado pelo seu grupo de amigos e em uma das festas promovidas por eles, ele conhece a amiga da namorada de um deles, Maria. O encantamento entre os dois é quase imediato e os dois começam a namorar pouco depois. Não demora muito para que Maria vá morar com Rasmus e o rapaz percebe a necessidade de deixa-la a vontade no apartamento dele, que passa a ser dos dois. No intuito de construir uma vida em comum e minimizar conflitos, ele está sempre disposto a entender e acatar os pedidos da namorada, ele até aceita vender a sua preciosa coleção de CDs para que os livros tomem conta da estante e que o pôster de seu filme favorito saia da parede para dar espaço à uma obra abstrata. Não há nada demais em você ceder espaço para o outro, o problema é quando o outro quer o espaço todo para ele e não sobra nada para você. Sempre na tentativa de agradar Maria, Rasmus se torna uma espécie de refém que considera bastante natural ter que sempre ceder em nome do amor. Mas isso seria amor mesmo? Uma Mulher Terrível pergunta isso ao espectador o tempo inteiro enquanto aguardamos o momento em que Rasmus irá traçar algum limite naquela relação. Se depois de tantos acontecimentos você ainda achar que a postura de Maria não é nada grave, existe aquele momento no museu em que ela destrói qualquer fagulha de simpatia que sua personagem possa despertar no espectador. Lembro de poucas vezes ter visto uma personagem dizer coisas tão cruéis ao seu parceiro com tanta desenvoltura, como se fosse uma metralhadora de ofensas. O pior é o que vem depois. A plateia se pergunta: como alguém pode se sujeitar a um relacionamento assim? Ontem estava indo para o trabalho e tocou Como Eu Quero do Kid Abelha no carro, lembrei automaticamente do filme e como as pessoas escutaram esta música por décadas sem se dar conta que o refrão "eu quero você como eu quero" não usava uma repetição para dar ênfase ao bem querer, mas para dizer que "eu quero você não do jeito que você é, mas do jeito que eu quero que você seja". Ao longo do filme Rasmus deixa de ser ele e nitidamente desaparece em nome do que ele imagina que seja amor. Talvez alguém diga que Maria é uma narcisista, pode ser, mas eu digo que ele tem, no mínimo, Síndrome de Estocolmo. Tafdrup faz aqui um filme interessante que permanece em nossa mente por vários dias e já demonstra sua preocupação com a passividade de seus personagens diante do que não deveriam aceitar.
Uma Mulher Terrível (En frygtelig kvinde / Dinamarca - 2017) de Christian Tafdrup com Anders Juul, Amanda Collin, Rasmus Hammerich, Nicolai Jandorf, Vibeke Hastrup e Christian Tafdrup. ☻☻☻☻
CATÁLOGO: O Livro da Vida
PJ e Donovan: de volta ao mundo. |
Na virada do ano de 1999 para o ano 2000 o canal francês Art convidou dez diretores de nacionalidades diferentes para criar uma série de filmes chamada "2000 seen by" em que cineastas deveriam retratar a atmosfera do fim do milênio e início. Entre os longas produzidos está o ótimo O Primeiro Dia do brasileiro Walter Salles, O Muro do belga Alain Berliner, A Última Noite do canadense Don McKellar e este O Livro da Vida do novaiorquino Hal Hartley. Pode se dizer que Hartley era o nome mais cult do cinema independente americano no início dos anos 1990, embora muita gente torcesse o nariz para a pretensão filosófica de tramas como Amateur (1994) e Flerte (1995), o rapaz estava entre o mais badalado de sua geração. Em O Livro da Vida ele manteve a pretensão intacta ao trazer Jesus Cristo (Martin Donovan, ator favorito do cineasta) para a Nova York do ano de 1999 ao lado de sua assistente, Madalena (a cantora PJ Harvey) para anunciar o apocalipse. No entanto, ele se depara novamente com seus sentimentos de esperança perante a humanidade. Quem também circula pela cidade e está sempre por perto é Lúcifer (Thomas Jay Ryan), que aguarda ansiosamente o fim dos tempos para recolher os pecadores que considera estar na sua cota de direito. Enquanto os esses personagens famosos circulam entre os mortais, os noticiários assumem o tom alarmista de que o fim está cada vez mais próximo na virada do ano. Como os demais filmes da coleção, O Livro da Vida é curto (tem uma hora de duração), mas mesmo assim, deixa a impressão que não possui história para tanto. Mesmo que o diretor invista num tom de reflexão que era bem comum no período, ele parece não saber muito bem o que fazer com a premissa interessante que tem em mãos. Existe até boas ideias, como tratar todos como homens de negócios (em que o negócio em questão é o futuro da humanidade), mas entre cenas desfocadas e interpretações contidas, tudo parece um tanto emperrado. Confesso que minha maior curiosidade era ver PJ Harvey em sua primeira (e unica até o momento) experiência como atriz. Pode se dizer que ela confere charme ao papel que lhe coube e isso traz até um diferencial para a produção que soa um tanto fria diante das possibilidades fantásticas que tinha em mãos. Confesso que fiquei um tanto decepcionado com o filme (principalmente se comparado a outros lançados na mesma cinessérie), mas vale pela curiosidade de revisitar os pensamentos que habitavam o mundo com a proximidade do século XXI. No entanto, vale ressaltar, que se você se deparar com algum do filmes da coleção, vale a pena conferir, já que se tornaram artigos raros nos streamings por aqui.
O Livro da Vida (The Book of Life/ EUA - 1999) de Hal Hartley com Martin Donovan, PJ Harvey, Thomas Jay Ryan, Miho Nikaido, Dave Simonds, DJ Mendel e James Urbaniak. ☻☻
KLÁSSIQO: Uma Mulher Sob Influência
Gena: tentando não surtar. |
Mês passado nos despedimos de Gena Rowlands, uma das grandes atrizes do cinema, ao longo da carreira, Gena se consolidou como a grande musa dos filmes indies na segunda metade do século XX, principalmente por conta de sua parceria de longa data com o esposo, John Cassavetes. Os dois tinham uma química incrível dentro e fora das telas e fizeram história com uma parceria que rendeu vários filmes e prêmios para ambos. Um dos frutos mais celebrados dessa parceria é o clássico Uma Mulher Sob Influência que rendeu à ela sua primeira indicação ao Oscar de melhor atriz (a segunda veio com Gloria/1984, também dirigido por Cassavetes). A trama gira em torno de Mabel Longhetti (Gena Rowlands) que vive com o marido, Nick (Peter Falk) e os três filhos pequenos em uma casa confortável numa vida aparentemente tranquila em uma casa no subúrbio. Se à primeira vista aquela vida parece perfeita, Cassavetes resolve virar tudo do avesso ao revelar os bastidores daquela família. Aos poucos percebemos que Mabel não é uma mulher convencional. Dona de uma energia irrepreensível, ela é muito amorosa com os filhos, recebe às visitas com plena simpatia, mas por vezes ela ultrapassa o limite do que se considera convencional com posturas e comentários que nem sempre são bem vistos. Tudo indica que Mabel esteja com a saúde mental comprometida, mas nada que pareça incontornável. No entanto, a coisa se agrava sempre que o esposo está por perto e a tensa dinâmica entre os dois deixa a crise no casamento cada vez mais evidente. Já li várias resenhas sobre o filme, mas o mais interessante é que nenhuma delas me advertiu que o maior problema de Mabel parece ser o esposo. É visível que Mabel precisa de acompanhamento e de cuidados, mas a postura de seu marido é totalmente inadequada. Agressivo, grosseiro e ameaçador, a interpretação de Peter Falk me deixava preocupado sempre que ele aparecia em cena, ao ponto de questionarmos quem está mais à beira da loucura nessa história. Existe um contraste impressionante nos trabalhos de Falk e Rowlands, longe dele, as atitudes de Mabel possuem até uma leveza e desperta até a compreensão pelo desafio daquela mulher se manter na rotina de dona de casa, mas sempre que Nick está em cena, a tensão se eleva até às raias da explosão completa. É visível que ele só queria sossego quando chega do trabalho, mas a pressão exercida para que Mabel sufoque tudo o que está sentindo é bastante violenta. O trabalho de Gena Rowlands se torna o grande destaque por conta do misto de força, estranheza e vulnerabilidade que imprime à personagem, o que torna fácil para o espectador compreender as dores daquela mulher, especialmente naquele último ato em que ela retorna para a casa e toda a expectativa e cobrança que existe sobre ela se torna palpável em uma cena de partir o coração. Então vem aquele confronto final com as crianças tentando evitar o pior perante as ameaças do pai. A impressão é que vemos uma família se desintegrar diante da câmera - e o desespero impresso por Cassavetes (indicado ao Oscar de melhor direção pelo trabalho) só intensifica isso. Realista em seu tom cada vez mais áspero, Uma Mulher Sob Influência se tornou um clássico do cinema independente e colocou a performance de Gena entre uma das maiores da história do cinema. É de sufocante aquela última cena em que a câmera se afasta entre as cortinas como se anunciasse a perpetuação de um ciclo disfarçado na resolução de um final aparentemente feliz.
Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence/EUA -1974) de John Cassavetes com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, George Dunn e Matthew Labyorteaux. ☻☻☻☻
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
Ciclo Verde e Amarelo: Terra Estrangeira
Fernandinha e Fernando: perdidos em uma terra em branco e preto. |
quinta-feira, 12 de setembro de 2024
CICLO VERDE E AMAELO: Morto Não Fala
Daniel e seus fantasmas: falando com gente morta. |
quarta-feira, 11 de setembro de 2024
Ciclo Verde e Amarelo: Tia Virgínia
Holtz: a ovelha solteira da família. |
Virgínia (Vera Holtz) é a irmã do meio de uma família de três irmãs. Foi a única que não casou e não teve filhos, seguindo a vida da forma que considerasse melhor. No entanto, nos últimos tempos, devido ao quadro de saúde da mãe (Vera Valdez), ela se tornou responsável por cuidar da matriarca e da casa, afinal, as irmãs já pareciam estar muito ocupadas cuidando de seus maridos, filhos e netos. Embora a vida de Virgínia tenha uma rotina sob controle, a chegada das festas de fim de ano com as manas chegando para visitar, já cria-se uma tensão por si só. Depois piora. Valquíria (Louise Cardoso) é a primeira que chega acompanhada pelo filho (Iuri Saraiva), que está cada vez mais parecido com o avô. Depois chega a irmã mais velha, Vanda (Arlete Salles), ao lado do esposo (Antonio Pitanga) e da filha (Daniela Fontan). Obviamente que a rotina de Virgínia muda completamente naqueles dias, mas o maior desconforto da personagem fica por conta dos comentários das irmãs sempre em tom de alfinetadas. Existe sempre um subtexto em Tia Virgínia, um que fermenta conforme uma conversa avança, uma crítica é realizada resultando num processo de combustão pela química entre as três personagens. Se Valquíria tem uma certa arrogância que lhe permite a capacidade de considerar que está sempre com razão, à Vanda cabe o posto de se desculpar pela ausência constante. Para ambas, o papel que coube à Virgínia foi o de cuidadora da mãe e da casa, nada mais do que isso. É possível que já tenhamos visto várias reuniões familiares (na tela ou fora dela) semelhantes a que temos aqui, mas a proposta do diretor e roteirista Fábio Meira é avançar a tensão até que sua personagem principal chegue ao limite. Colabora muito para que a coisa funcione o tom impresso ao filme, que sabiamente foge da histeria e opta por um humor sutil e uma dramaticidade contida que oferece ainda mais complexidade às personagens (o que não impede que o filme reserve momentos bastante duros em cena). Premiada no Festival de Gramado e com o Troféu Grande Otelo de melhor atriz, Vera Holtz está espetacular em cena, deixando transparecer o tempo inteiro a insatisfação perante a forma como as irmãs a enxergam - de forma que quando Virgínia verbaliza o que sente, já sabíamos exatamente o motivo de todo seu desconforto. Arlete Salles e Louise Cardoso também estão ótimas em cena e defendem suas personagens com um senso de ironia que torna tudo ainda mais interessante. Antonio Pitanga tem um papel pequeno, mas algumas cenas marcantes, como aquela do jantar em que praticamente pedimos para ele apresentar aquela reação perante a postura de Virgínia. Ou seja, que coisa boa ver um elenco tão experiente reunido em uma mesma cena! O desfecho, embora libertador, também carrega um tanto de melancolia e um certo questionamento que poderia ser respondido se no ano seguinte fôssemos convidados novamente a participar da ceia ao lado daquela família. A ocasião serviria para que a trama amarrasse algumas situações que ficam um tanto soltas (como a postura instável do sobrinho), um deslize que já está perdoado, já que a vida teima em seguir pelo mesmo caminho.
Tia Virgínia (Brasil - 2023) de Fábio Meira com Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso, Antônio Pitanga, Vera Valdez, Amanda Lyra, Iuri Saraiva e Daniela Fontan. ☻☻☻
terça-feira, 10 de setembro de 2024
Ciclo Verde e Amarelo: Bem-Vinda Violeta
Débora: terapia ao contrário. |
Ana (Débora Falabella) é uma escritora que resolve participar de um famoso laboratório literário na Cordilheira dos Andes. Chegando por lá, a ambientação rústica é frequentada por um grupo de escritores que pretendem escrever com mais vigor e complexidade, para isso, buscam as orientações de Holden (Darío Grandinetti), um autor que se tornou cult por conta de seu livro A Cordilheira, mas que se tornou recluso e agora ganha fama compartilhando de seu método com seus aprendizes. Conforme avança no processo, Ana fica confusa sobre o que está acontecendo, especialmente quando percebe que para desenvolver seu livro plenamente, ela precisa se render cada vez mais à personalidade de sua personagem, a agressiva Violeta - que considera ser o seu total oposto. Mas será que é mesmo? Parte da proposta de Holden é fazer com que a insegura Ana perceba o quando criador e criatura são semelhantes. Assim como o processo é vivido pela escritora, ele também é vivenciado pelos demais presentes e os efeitos desta jornada (uma espécie de fusão entre vida e arte) podem ser tão libertadores quanto perigosos. Em determinado momento de Bem-Vinda, Violeta! tive a estranha sensação de que eu nunca havia assistido um filme como ele. É verdade que existe ao longo da narrativa uma série de elementos que já vimos utilizados em outras produções, mas a forma como são encaixados e apresentados em cena, criam a sensação de que estamos diante de uma obra bastante original, o que não significa que seja um filme fácil de digerir. A atmosfera de suspense psicológico calcado no árduo processo criativo da escrita oferece ao filme uma complexidade que é muito bem representada pela ambientação claustrofóbica. Enquanto lá fora as belas naturais sejam arrebatadoras (o longa foi filmado em Ushuaia na Patagônia argentina), dentro daquela casa tudo parece sombrio e pesaroso. Estes fatores me deixaram surpreso ao lembrar que o diretor Fernando Fraiha é o mesmo do divertido La Vingança (2016), que curiosamente, também restabelece os laços do nosso cinemas com o país vizinho, embora os dois filmes não pudessem ser mais diferentes. Há de se destacar que Fraiha filma muito bem, preocupado com os closes em seus personagens, os planos e movimentos de câmera amparados por uma edição precisa, o que confere ao filme uma identidade visual marcante ao lado da fotografia gélida. Com relação ao elenco, Débora Falabella está excelente na pele da protagonista, optando por um trabalho contido que tem as mudanças da personagem transmitidas pelo olhar intenso em cena, ela contrasta muito bem com o argentino Darío Grandinetti que constrói um mestre tão imponente quanto assustador, dando a impressão que todo o processo vivenciado por seus alunos trata-se de uma seita literária que funciona feito uma terapia ao contrário (em que ao invés de melhorarem a forma como lidam com suas emoções, o efeito é o oposto). Meu único problema com Bem-Vinda, Violeta! (que é inspirado no romance Cordilheira do paulista Daniel Galera) foi o final que se revela exatamente como eu imaginei. Diante do método criativo imprevisível que vimos até ali, um final que já era esperado deixou um sabor de insatisfação ao final da sessão. No entanto, até o desfecho o filme consegue ser bastante interessante pela dinâmica entre os personagens, seja com os outros ou com eles mesmos.
Bem-Vinda, Violeta (Brasil/Argentina - 2022) de Fernando Fraiha com Débora Falabella, Darío Grandinetti, Germán de Silva, María Ucedo, Pablo Sigal, Germano Melo e Jenny Moule. ☻☻☻☻
segunda-feira, 9 de setembro de 2024
4EVER: James Earl Jones
Ciclo Verde e Amarelo: Levante
Ayomi: filme com causa. |
Sofia (Ayomi Domenica) é uma jovem jogadora de volley que se dedica ao esporte por conta de um projeto social de sucesso que começa a chamar atenção da mídia. Ela está prestes a ser contratada por um grande time quando descobre que está grávida. Diante da situação não planejada, ela começa a pensar em resolver a situação em um país onde a interrupção da gravidez é ilegal. Quando ouvi falar de Levante pela primeira vez ele havia sido escolhido para ser exibido em uma mostra paralela do Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio Fripesci dado pela Federação Internacional de Críticos que participam do Festival. Some o prêmio ao filme ter como pano de fundo um esporte que não aparece muito nas telonas e a ideia de um tema polêmico no Brasil (o aborto)... minhas expectativas foram nas alturas. Por conta da decisão da protagonista, o filme segue seus caminhos para alcançar seu objetivo. Ela tenta realizar o procedimento em outro país, as amigas se organizam para conseguir o dinheiro que ela precisa, ela pondera os riscos de uma clínica clandestina e, por fora de tudo isso, começa a se formar uma polêmica em torno do desejo da personagem de realizar um aborto. Assim, o filme agrega toda a insatisfação com o discurso conservador que emergiu no Brasil nos últimos anos, chegando até um desfecho irônico e esperto que compensa aqueles momentos em que o filme demonstra dificuldade em aprofundar seus personagens. Levante é um filme que gira em torno de uma ideia e espera que todo o resto faça sentido por conta disso, não é bem assim. Entendo que a diretora Lilla Hallah se esquive de qualquer traço de melodrama em sua narrativa, que foge dos lugares comuns (o roteiro não se preocupa com quem é o pai da criança) e que pretende construir em torno da protagonista um universo em que todo mundo compreende plenamente suas intenções, deixando que a oposição fique por conta de "pessoas de fora" do seu ciclo social, estes assumindo o posto de vilão da história. O efeito disso é um tanto maniqueísta na tela. O pai (Rômulo Braga), as amigas, a treinadora (a ótima Grace Passô em um papel miudinho), todos estão dispostos a apoiar a personagem como se ela pertencesse a um universo paralelo em que todas as pessoas mais próximas fossem super esclarecidas sobre a questão do aborto no Brasil. Essa artificialidade nas relações permanece quando o filme prefere gastar seu tempo mais com festinhas com a estética periférica que o cinema brasileiro adora repetir e a pegação da protagonista com uma colega de time, opções que por vezes deixam o filme emperrado. O pior é que a parte do esporte deixa muito a desejar, não convencendo nem um pouco nas cenas de quadra e mais ainda que Sofia é uma atleta promissora. São alguns deslizes que começam a pesar conforme o filme se estende. A sorte é que Levante tem um final que realmente impressiona e deixa a sensação que é um filme melhor elaborado do que se mostrou até ali.
Levante (Brasil - 2024) de Lillah Halla com Ayomi Domenica, Rômulo Braga, Grace Passô, Suzy Lopes e Glaucia Vandeveld. ☻☻
domingo, 8 de setembro de 2024
Pódio: Marcélia Cartaxo
Bronze: a amiga fiel. |
Prata: a bailarina aposentada |
Ouro: a ingênua perdida. |